domingo, 19 de junho de 2016
quinta-feira, 9 de junho de 2016
Raduan Nassar – Lavoura Arcaica (Capítulo 27 e 24)
Posted by Abril Novo Magazine ⋅
CAPITULO 27
A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo.
Família na mesa. Cena do filme Lavoura Arcaica
de Luiz Fernando Carvalho
de Luiz Fernando Carvalho
—
Meu coração está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, meu filho;
essa é a colheita de quem abandona a casa por uma vida pródiga.
— A prodigalidade também existia em nossa casa.
— Como, meu filho?
— A prodigalidade sempre existiu em nossa mesa.
— Nossa mesa é comedida, é austera, não existe desperdício nela, salvo nos dias de festa.
— Mas comemos sempre com apetite.
— O apetite é permitido, não agrava nossa dignidade, desde que seja moderado.
— Mas comemos até que ele desapareça; é assim que cada um em casa sempre se levantou da mesa.
—
É para satisfazer nosso apetite que a natureza é generosa, pondo seus
frutos ao nosso alcance, desde que trabalhemos por merecê-los.
Não
fosse o apetite, não teríamos forças para buscar o alimento que torna
possível a sobrevivência. O apetite é sagrado, meu filho.
—
Eu não disse o contrário, acontece que muitos trabalham, gemem o tempo
todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível, mas não conseguem
apaziguar a fome.
—
Você diz coisas estranhas, meu filho. Ninguém deve desesperar-se,
muitas vezes é só uma questão de paciência, não há espera sem
recompensa, quantas vezes eu não contei para vocês a história do
faminto?
—
Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto,
que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que
de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo
alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à
custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo.
—
Você sempre teve aqui um teto, uma cama arrumada, roupa limpa e
passada, a mesa e o alimento, proteção e muito afeto. Nada te faltava.
Por tudo isso, ponha de lado essas histórias de famintos, que nenhuma
delas agora vem a propósito, tornando muito estranho tudo o que você
fala. Faça um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não
esconda nada do teu pai, meu coração está apertado também de ver tanta
confusão na tua cabeça. Para que as pessoas se entendam, é preciso que
ponham ordem em suas idéias. Palavra com palavra, meu filho.
—
Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de
obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo. Eu poderia ser
claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o instante em que decidi o
contrário, eu tinha pensado em deixar a casa; eu poderia ser claro e
dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido, eu pensei
que pudesse encontrar fora o que não me davam aqui dentro.
— E o que é que não te davam aqui dentro?
— Queria o meu lugar na mesa da família.
— Foi então por isso que você nos abandonou: porque não te dávamos um lugar na mesa da família?
—
Jamais os abandonei, pai; tudo o que quis, ao deixar a casa, foi
poupar-lhes o olho torpe de me verem sobrevivendo à custa das minhas
próprias vísceras.
—
O pão contudo sempre esteve à mesa, provendo igualmente a necessidade
de cada boca, e nunca te foi proibido sentar-se com a família, ao
contrário, era esse o desejo de todos, que você nunca estivesse ausente
na hora de repartir o pão.
—
Não falo deste alimento, participar só da divisão deste pão pode ser em
certos casos simplesmente uma crueldade: seu consumo só prestaria para
alongar a minha fome; tivesse de sentar-me à mesa só com esse fim,
preferiria antes me servir de um pão acerbo que me abreviasse a vida.
— Do que é que você está falando?
— Não importa.
— Você blasfemava.
— Não, pai, não blasfemava, pela primeira vez a vida eu falava como um santo.
—
Você está enfermo, meu filho, uns poucos dias de trabalho ao lado de
teus irmãos hão quebrar o orgulho da tua palavra, te devolvendo depressa
a saúde de que você precisa.
—
Por ora não me interesso pela saúde de que o senhor fala, existe nela
uma semente de enfermidade, assim como na minha doença existe uma
poderosa semente de saúde.
—
Não há proveito em atrapalhar nossas idéias, esqueça os teus caprichos,
meu filho, não afaste o teu pai da discussão dos teus problemas.
—
Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em
troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca
enxerga a outra.
—
Conversar é muito importante, meu filho, toda palavra, sim, é uma
semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do
verbo em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no fundamento de
toda prática, vinga, e se expande, e perpetua, desde que seja justo.
—
Admito que se pense o contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os
resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios, quando
colhidos.
—
É egoísmo, próprio de imaturos, pensar só nos frutos, quando se planta;
a colheita não é a melhor recompensa para quem semeia; já somos
bastante gratificados pelo sentido de nossas vidas, quando plantamos, já
temos nosso galardão só em fruir o tempo largo da gestação, já é um bem
que transferimos, se transferimos a espera para gerações futuras, pois
há um gozo intenso na própria fé, assim como há calor na quietude da ave
que choca os ovos no seu ninho. E pode haver tanta vida na semente, e
tanta fé nas mãos do semeador, que é um milagre sublime que grãos
espalhados há milênios, embora sem germinar, ainda não morreram.
— Ninguém vive só de semear, pai.
—
Claro que não, meu filho; se outros hão de colher do que semeamos hoje,
estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de nós. É assim
que o mundo caminha, é esta a corrente da vida.
—
Isso já não me encanta, sei hoje do que é capaz esta corrente; os que
semeiam e não colhem, colhem contudo do que não plantaram; deste legado,
pai, não tive o meu bocado. Por que empurrar o mundo para frente? Se já
tenho as mãos atadas, não vou por minha iniciativa atar meus pés
também; por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem, eu já não
vejo diferença, tanto faz que as coisas andem para frente ou que elas
andem para trás.
— Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu filho.
—
Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa
do carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os membros, seria
absurdo exigir um abraço de afeto; maior despropósito que isso só mesmo a
vileza do aleijão que, na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir
o seu algoz; age quem sabe com a paciência proverbial do boi: além do
peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre os canzis. Fica mais
feio o feio que consente o belo…
— Continue.
—
E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno
que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e assim por
diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam,
acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo
como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que
aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa
pantomima atirada por seu cinismo.
— É muito estranho o que estou ouvindo.
—
Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre
acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que
o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.
—
Não vejo como todas essas coisas se relacionam, vejo menos ainda por
que te preocupam tanto. Que é que você quer dizer com tudo isso?
— Não quero dizer nada.
— Você está perturbado, meu filho.
— Não, pai, eu não estou perturbado.
— De quem você estava falando?
—
De ninguém em particular; eu só estava pensando nos desenganados sem
remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são
supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava.
— Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada.
—
Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as
palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde me contradigo,
piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há farelo
nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro.
Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que
estou dizendo.
— Mas sonega clareza para o teu pai.
—
Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou
convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva
só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de
onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se
com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao
mundo sua fragilidade.
—
Corrija a displicência dos teus modos de ver: é forte quem enfrenta a
realidade; e depois, estamos em família, que só um insano tomaria por
ambiente hostil.
—
Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma para todos, e o
senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é galado; o tempo
é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não nasceram; aos
derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem
terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o
mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo; de minha parte,
a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito
à vida.
—
Você me assusta, meu filho, sem te entender, entendo contudo teus
disparates: não há hostilidade nesta casa, ninguém te nega aqui o
direito à vida, não é sequer admissível que te passe esse absurdo pela
cabeça!
— É um ponto de vista.
—
Refreie tua costumeira impulsividade, não responda desta forma para não
ferir o teu pai. Não é um ponto de vista! Todos nós sabemos como se
comporta cada um em casa: eu e tua mãe vivemos sempre para vocês, o
irmão para o irmão, nunca faltou, a quem necessitasse, o apoio da
família!
— O senhor não me entendeu, pai.
—
Como posso te entender, meu filho? Existe obstinação na tua recusa, e
isto também eu não entendo. Onde você encontraria lugar mais apropriado
para discutir os problemas que te afligem?
—
Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa
convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos
limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma
semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva
no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.
— Não receba com suspeita e leviandade as palavras que te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa com nosso amor!
—
O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele
não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não
passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o
amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum
disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que
se imagina.
—
Já basta de extravagâncias, não prossiga mais neste caminho, não se
aproveitam teus discernimentos, existe anarquia no teu pensamento, ponha
um ponto na tua arrogância, seja simples no uso da palavra!
—
Não acho que sejam extravagâncias, se bem que já não me faz diferença
que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim que o senhor percebe, de
que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu depositasse um
ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele
simplesmente um ramo de urtigas.
—
Nesta mesa não há lugar para provocações, deixe de lado o teu orgulho,
domine a víbora debaixo da tua língua, não dê ouvidos ao murmúrio do
demônio, me responda como deve responder um filho, seja sobretudo
humilde na postura, seja claro como deve ser um homem, acabe de uma vez
com esta confusão!
— Se sou confuso, se evito ser mais claro, pai, é que não quero criar mais confusão.
—
Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem destas trevas a
nossa luz, não é a tua palavra soberba que vai demolir agora o que levou
milênios para se construir; ninguém em nossa casa há de falar com
presumida profundidade, mudando o lugar das palavras, embaralhando as
idéias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem
demais os olhos acabam só por ficar com a própria cegueira; ninguém em
nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de
luz, capaz como a escuridão de nos cegar; ninguém ainda em nossa casa há
de dar um curso novo ao que não pode desviar, ninguém há de confundir
nunca o que não pode ser confundido, a árvore que cresce e frutifica com
a árvore que não dá frutos, a semente que tomba e multiplica com o grão
que não germina, a nossa simplicidade de todos os dias com um
pensamento que não produz; por isso, dobre a tua língua, eu já disse,
nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família! Não foi o
amor, como eu pensava, mas o orgulho, o desprezo e o egoísmo que te
trouxeram de volta à casa!
Quanta
amargura meu pai juntava à sua cólera! E que veleidade a minha,
expor-lhe a carcaça de um pensamento, ter triturado na mesa imprópria
uns fiapos de ossos, tão minguados diante da força poderosa de sua
figura à cabeceira. Encolhido, senti num momento a presença da mãe às
minhas costas, trazida à porta da cozinha pelo discurso exasperado ali
na copa, tentando com certeza interferir em meu favor; mesmo sem me
voltar, pude ler com clareza a angústia no rosto dela, implorando com os
olhos aflitos para o meu pai: “Chega, Iohána! Poupe nosso filho!”
—
Estou cansado, pai, me perdoe. Reconheço minha confusão, reconheço que
não me fiz entender, mas agora serei claro no que vou dizer: não trago o
coração cheio de orgulho como o senhor pensa, volto para casa humilde e
submisso, não tenho mais ilusões, já sei o que é a solidão, já sei o
que é a miséria, sei também agora, pai, que não devia ter me afastado um
passo sequer da nossa porta; daqui pra frente, quero ser como meus
irmãos, vou me entregar com disciplina às tarefas que me forem
atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do
dia, só os deixarei bem depois de o sol se pôr; farei do trabalho a
minha religião, farei do cansaço a minha embriaguez, vou contribuir para
preservar nossa união, quero merecer
de coração sincero, pai, todo o teu amor.
—
Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz nova
sobre esta mesa, sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa
a mágoa que você causou ao abandonar a casa, apagando depressa o
pesadelo que vivemos há pouco. Cheguei a pensar por um instante que eu
tinha outrora semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo
de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que estava cego e recuperou a
vista! Agora vai descansar, meu filho, a viagem foi longa, a emoção foi
grande, vai descansar, querido filho.
E
o meu suposto recuo na discussão com o pai logo recebia uma segunda
recompensa: minha cabeça foi de repente tomada pelas mãos da mãe, que se
encontrava já então atrás da minha cadeira; me entreguei feito menino à
pressão daqueles dedos grossos que me apertavam uma das faces contra o
repouso antigo do seu seio; curvando-se, ela amassou depois seus olhos, o
nariz e a boca, enquanto cheirava ruidosamente meus cabelos, espalhando
ali, em língua estranha, as palavras ternas com que sempre me brindara
desde criança: “meus olhos” “meu coração” “meu cordeiro”; largado
naquele berço, vi que o pai saía para o pátio, grave, como se todo
aquele transbordamento de afeto se passasse à sua revelia; empunhava o
mesmo facão com que entrara pouco antes ali na copa, ia agora reunirse
de novo às minhas irmãs perdidas numa azáfama animada em torno da mesa
tosca, lá debaixo do telheiro dos fundos, onde preparavam as carnes para
a minha festa; e eu tinha os olhos nessa direção, e me perguntava pelos
motivos da minha volta, sem conseguir contudo delinear os contornos
suspeitos do meu retorno, quando notei, além do pátio, um pouco
adentrado no bosque escuro, o vulto de Pedro: andava cabisbaixo entre os
troncos das árvores, o passo lento, parecia sombrio, taciturno.
Raduan Nassar —-(Pode descarregar este livro sublime AQUI)
Raduan Nassar —-(Pode descarregar este livro sublime AQUI)
“Lavoura
arcaica ocupa a mesa da grande literatura mundial. Disseram que o livro
de Raduan Nassar lembra O Grande Sertão Veredas (de Guimarães Rosa) e
Vidas Secas (de Graciliano Ramos). Lembra mesmo, são clássicos. Nas
vidas secas da lavoura arcaica há fartura de verbos ásperos e dores
arenosas. O embate de pai contra filho (trecho reproduzido acima) lembra
o explosivo diálogo dos irmãos karamazóvi (Ivã e Aliócha) nos capítulos
A Revolta e O Grande Inquisidor.”
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