O "Quarteto para o fim dos tempos" (Quatuor pour la fin du temps) é uma obra composta por Olivier Messiaen em 1941, quando estava preso pelos nazistas, para ser tocada por um quarteto de piano, clarinete, violino e violoncelo. Composta em oito movimentos e inspirada pelo Apocalipse, a peça foi estreada no campo de concentração de Görlitz. 


TURNER, o pintor proto modernista

 

  • Ficheiro:Joseph Mallord William Turner - Snow Storm - Steam-Boat off a Harbour's Mouth - WGA23178.jpg
  • Criação: 1842
  • Harbour's Mouth, (1842)

    sábado, 9 de agosto de 2025

     

    Quarteto do fim dos tempos

     

    Não sabia o que era aquilo. Mas sabia que já estivera ali. Em todas as fotos que publicava no Instagram escrevia uma legenda sempre a mesma : Eu estive aqui. Náo reconheceu a avenida porque encontrava-se coberta de escombros de casas. Um vento do inferno passara por ali. E, no entanto, ele sentia que aquele lugar era idêntico a outros que já visitara, e dos quais publicara as suas imagens e que sob elas escrevera : Estive aqui. Procurou um supermercado para comprar alguma coisa para comer, apetecia-lhe uma bifana, não encontrou nenhum em cima ou por baixo dos escombros. Restaurantes ou Cafés nem sombra deles. Restavam deles sob montes de tijolos, uns dísticos com os seus nomes. E era assim por todas as ruas, as quais, de resto, mal se distinguiam. Pisou sem o ter visto um homem que já estava mais que morto e perguntou a outro que se arrastava numas chinelos onde se podia comer e o indivíduo apontou para lá de uma paredão meio derrubado. Moisés entendeu que para lá haveria onde comer. E foi. Rodeou a parede gigante meio derrubada , pisou outro corpo já tão morto que nem se queixou, observou mais uns dísticos que identificavam  ruínas de lojas de roupas, de sapatos, de bicicletas... Foi então que viu a multidão a correr por arrasada avenida abaixo, o que fora antes uma avenida, em direção a um ponto indefinido. Deixou a multidão passar e foi atrás dela. Eram tantos - crianças, jovens que já não eram crianças, mulheres velhas e novas, homens de todas as idades - a preencher todo o espaço, gritando enlouquecidas, que desistiu, deu meia volta e continuou o seu caminho sem destino e sem pão. Era, parecia-lhe, um caminho muito longo que iniciara há muito tempo e desconhecia quando terminaria. Já subira a altas montanhas nevadas e atravessara vales estreitos como gargalos de garrafa, e não encontrara ninguém que lhe fornecesse uma meta. O que num dia tinha como certo, esquecia-se no dia seguinte e tudo retomava a sua repetição. Como num círculo tudo regressava ao ponto de partida. Havia à sua frente um horizonte que se afastava a cada passo que ele dava. Na verdade não estava sozinho, via gentes dentro de enormes camiões, dos automóveis utilitários, de comboios cada vez mais rápidos, mas não vislumbrara um corpo que materializasse uma ideia, ou uma força social que realizasse a força transcendente do ideal. Dado que não se lembrava de nada, admitiu a hipótese de se encontrar sob o efeito de ressacas sucessivas. Quiçá fosse alcoólico e que, portanto, não era real o que via, a caminhada, a vida, mas somente os delírios de um doente. Para tirar dúvidas beliscava-se, molhava o rosto frequentemente nas fontes que encontrava à beira das estradas , chegou ao ponto drástico de se colocar à frente de um automóvel que circulava : não foi atropelado por por causa daqueles reflexos a que chamamos milagres. Caminhava como aquelas aves que atravessam metade do mundo para passarem o verão na outra metade. Sim. E quando chegasse a velhice? Ou uma doença a necessitar cuidados? Atravessara, julgava ele, os lugares mais inóspitos e nunca perdera o fôlego. Postas estas circunstâncias, começou a suspeitar que era um nativo doutro planeta. Aliás, a bem dizer, não podia ser ressaca alguma, porque não se recordava de bebedeira nenhuma. Perguntou-se se o destino da sua caminhada sem metas definidas não seria exatamente reencontrar o sítio onde descera do firmamento. Não se lembrava do desembarque, nem do dia e ano, não guardava recordação alguma, um fragmento fugaz que fosse, de alguma nave invulgar. O que ele sentia, e unicamente suspeitava, é que não era dali. Não podia ser dali. Não porque não fossem encantadoras muitas das planícies floridas que calcara e fantásticas muitas das montanhas que escalara, as lagoas com nenúfares, os rios sulcados por canoas primitivas mas eficientes, ribeiras com raparigas a enxaguarem os peitos tesos, bandos de crianças a correrem felizes atrás de uma bola de trapos, choupanas de barro seco e palha nos telhados com velhos muito escuros e muito velhos sentados no chão à porta, mulheres de saiotes subidos a guiarem búfalos em campos de arroz. Sim. Sentia, porém, uma espécie de nostalgia, uma saudade, como se tivesse perdido alguma coisa preciosa, talvez um beijo, um colo e um abraço, um lugar. Sem nenhuma memória do que fosse.. Se ele se recordasse, saberia que os nativos do seu planeta não possuíam memória de longa duração, somente de curta duração. Isto é, viam uma coisa bonita ou feia e esqueciam-na escassos minutos depois. Certo dia fez um amigo ( não se recordava já) e esse amigo ao fim de algum tempo disse-lhe: “Ouve lá, acho que tu estás sempre ressacado!”. “Quê?”, retorquiu ele a começar a esquecer-se do significado da palavra. Na verdade até que não bebia demasiado. Doutra vez fez uma amiga que gostou muito dele, até lhe dava beijinhos na ponta do nariz e mordiscadelas nas orelhas e fazia-lhe festas no cabelo que ele raramente cortava ; contudo esqueceu-se dela, ou melhor, na realidade esquecia-se dela passados uns minutos, talvez uma hora, depois relembrava-se, ou ela relembrava-o com novas mordiscadelas, até que se cansou dos esquecimentos dele e descobriu rapidamente um senhor que nunca se esquecia dela. Pelo menos foi a explicação que ela deu.

       Conhecera nas suas viagens exploratórias lugares inesquecíveis (não para ele) : vales atapetados de relva muito verde, pincelada com o vermelho das papoilas e o azul das malvas, nomes que teria gostado de decorar, mas, infelizmente. esquecia de um momento para o outro. Fora desses lugares sublimes, porém, cruzara-se a miúde com terrestres ( admitindo que ele próprio o não fosse) a matarem-se uns aos outros, envolvidos em zaragatas por motivos fúteis ( para ele que esquecia tudo). Passou ao pé de uma cidade onde existia uma praça que ninguém atravessava a menos que quisesse levar um tiro de uns tipos armados que vigiavam escondidos nas colinas sobranceiras com uns binóculos ao longe (felizmente para ele esqueceu-se depressa daquela estupidez que se poderia converter para ele num tremendo pesadelo). Vira igualmente outros atos de igual estupidez : belas e grandes cidades cujos habitantes foram chacinados com bombas sem culpa formada, cidades com nomes esquisitos como Dresden, Kiev e Estalinegrado na mesma época, Hiroshima e Nagasaki e Seul. Se ele se lembrasse, lembrar-se-ia de dezenas e dezenas de aldeias e cidades incineradas que vira ao passar ao longe, por hordas sanguinárias de etnias, tribos e impérios. Reteria na memória o caos. O horror. Assistia hoje, para amanhã despertar de uma noite agitada completamente esquecido do que vira. Por isso sobrevivia. Por isso caminhava em busca do que esquecera.

      Não possuindo bússola, nem memórias, guiava-se pelo movimento aparente do sol e por determinadas estrelas das quais ele se esquecia de dia para se lembrar de novo à noite. E , com a saudade de palavras que não dizia, de atitudes que não tomava, adormecia de mansinho, nem triste, nem contente. Esquecia-se depressa do que o contentava e do que o entristecia.

       Certo dia cansou-se do que via ( foi naquele dia em que viu uma cidade cheia de gente a ser bombardeada com canhões no solo e nos céus, com máquinas aterradoras a esmagar cadáveres naquela faixa de terra a que ouviu chamar de Gaza), deitou-se na areia húmida da praia ao pé de uma montanha de cadáveres de crianças, num sítio onde o sangue escorria para o mar. E adormeceu. Como a sua memoria era curta, esqueceu-se de acordar.

    ----------------------Nozes Pires --------------2025

    quinta-feira, 7 de agosto de 2025

     

    Estrangeiros na terra do amor: sobre “Too Much”, nova série de Lena Dunham

    Imagem: Divulgação

    Por Cauana Mestre

    Lena Dunham, a gênia por trás de Girls — que se tornou ícone da geração millenial — decide travar guerra contra o declínio da comédia romântica, provando que romance e conservadorismo são coisas diferentes (embora a gente os tenha misturado por muito tempo). Assim nasce a série Too Much, disponível na Netflix.

    Imagem: Divulgação

    A protagonista Jess (Megan Stalter) decide deixar Nova Iorque depois de ser abandonada pelo namorado, que a manipula como se sua demanda de amor fosse uma patologia. Diferentemente das personagens de Girls, Jess é bem-sucedida e adora o seu trabalho como produtora de comerciais de TV. Qualquer desajuste no campo profissional, por maior que seja, é elaborado e resolvido enquanto, no terreno do amor, as coisas ficam mais difíceis. A série reflete bem certos impasses dos jovens adultos hoje, que sofreram a pressão da necessidade de uma carreira sólida e de uma vida financeira estável sem ter a menor ideia de como conciliar o sucesso com o amor ou mesmo que condições podemos impor ao sucesso.

    Assim que chega em Londres para assumir um novo trabalho, Jess conhece Felix (Will Sharpe), idealista músico de bar que tenta reparar a vida depois de um longo período de abuso de drogas. O óbvio a dizer aqui é que os dois são psiquicamente quebrados (e quem não é?), o que, para Lena Dunham, é condição criativa. Mas o que interessa mesmo é observar como as coordenadas da fratura subjetiva mudam de acordo com as demandas culturais do tempo em que vivemos.

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    Em outras palavras: como, apesar de termos alcançado considerável liberdade sexual, pluralidade de experiência e uma infinidade de nomeações para as diversas formas de amar, alguns sofrimentos permanecem quase os mesmos, ainda que mudem de roupa.

    Duhanm continua explorando as famílias desfuncionais (e que família não é?); a efetividade sempre atualizada dos traumas passados; o deslocamento social e político do mundo polarizado; a dificuldade na dissolução dos ideais que paralisam; a busca do amor como fonte de salvação e sofrimento. Mas agora parece haver maior naturalidade, menos truncamento nas experiências, o que torna as perguntas sobre o amor mais consentidas.

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    Afinal, se há uma coisa que ganhamos desde 2017 — ano em que estreou a temporada final de Girls — foi a capacidade de legitimar nossas questões sobre o amor, e a confissão de que não importa em que tempo estejamos, queremos ser amados e protegidos do desamparo.

    Enquanto a série Girls precisava ampliar o debate sobre sexo (quem não se lembra da icônica cena entre Marnie e Desi, interpretados por Allison Willians e Ebon Moss-Bachrach?), Too Much se dedica a explorar o amor — e talvez esse seja o traço disruptivo nos tempos atuais.

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    Jess e Felix formam um casal improvável e cheio de furos (e que casal não é?), mas, justamente por isso, cativante. A loucura de cada um não fecha a loucura do outro, mas acolhe e diverte. Sentimos vergonha alheia ao mesmo tempo em que os amamos, pois sabemos que, no fundo, somos todos estrangeiros na terra do amor, forasteiros dentro das nossas próprias fantasias de final feliz: ele não existe, é claro, mas essa descoberta pode ser uma delícia.


    Sobre o amor, de Leandro Konder
    O amor através dos olhos dos grandes pensadores e escritores. O filósofo brasileiro explora as múltiplas facetas desse sentimento, desafiando convenções e expondo suas complexidades com erudição, clareza e humor fino.


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    Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

    segunda-feira, 4 de agosto de 2025

     

    A Irmandade Pré-Rafaelita (Pre-Raphaelite Brotherhood ou PRB em inglês), também chamada Fraternidade Pré-Rafaelita ou, simplesmente, Pré-Rafaelitas, foi um grupo artístico fundado em Inglaterra em 1848 por Dante Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Millais e dedicado principalmente à pintura. Este grupo, organizado ao modo de uma confraria medieval, surge como reação à arte acadêmica inglesa, que seguia os moldes dos artistas clássicos do Renascimento.


    Denominação

    Inseridos no espírito revivalista romântico da época, os pré-rafaelitas desejam devolver à arte a sua pureza e honestidade anteriores, que consideravam existir na arte medieval do final do Gótico e do início do Renascimento (Proto-Renascimento).

    Ao se autodenominarem pré-rafaelitas, realçavam o fato de se inspirarem na arte anterior a Rafael, artista que tanto influenciou a academia inglesa e que era consequentemente criticado pelos pré-rafaelitas. A influenciar este grupo estão também os Nazarenos, uma confraria de pintores alemães que, no início do século XIX, estabeleceu-se em Roma visando recuperar a arte paleocristã.

    Arte pela arte

    Embora se tratando de um grupo de artistas unidos em prol do mesmo objetivo, o grupo não se revelou homogêneo nas suas produções podendo-se observar uma ramificação em dois gêneros diferentes dentro do movimento: por um lado alguns destes artistas (Millais, Holman Hunt) vão dedicar-se aos temas e problemas da sociedade atual cada vez mais materialista, utilizando para isso uma representação realista; por outro lado, outros artistas (Rossetti, Edward Burne-Jones) vão ligar-se mais a temas medievais inspirados em Dante (cujo nome inspirou o primeiro nome de Rossetti) na sua Divina Comédia, em lendas como a do Rei Artur, cenas religiosas, carregando as suas composições de misticismo numa versão mais visionária. Pode-se afirmar que esta segunda variante dominou o movimento.

    Independentemente do tema retratado, torna-se essencial que a obra de arte transmita uma ideia autêntica, fruto da individualidade do artista. Este não tem de se submeter a regras rígidas e castradoras de representação, deve antes ser livre na sua criação artística. A sua arte vai-se opor ao método tradicional de representação da natureza prescindindo do trabalho de ateliê e recusando a normalidade das composições acadêmicas, como, por exemplo, eliminando-se a linha do horizonte.

    John Everett Millais, Ophelia (pormenor), 1851-1852.
    Tate Britain, Londres.

    O artista aspira à beleza poética, à representação além da realidade visível: trabalha-se com a matéria da alma e a espiritualidade. Esta representação do “sonho” vai-se traduzir formalmente na busca da harmonia e equilíbrio entre os elementos. A pintura com base no desenho vai resultar em imagens quase ornamentais repletas de pormenores e detalhes fotográficos, onde o traçado fluido e gráfico busca realçar aspectos estéticos, independentemente da sua semelhança ou não com a realidade. Também na aplicação da cor se vão quebrar laços com as técnicas tradicionais, surgindo agora cores luminosas, esmaltadas, que ajudam à sensibilidade estética de pinturas poéticas onde o romance e o erotismo, unidos a uma certa inocência, têm lugar de destaque.

    O grupo

    O grupo pré-rafaelita vai ser composto maioritariamente por artistas saídos das academias reais que têm o objetivo comum de repor o conceito de arte pela arte, renegando a frivolidade da arte acadêmica. Considerando-se a si próprios como um movimento de reforma, embora sem ser considerado uma vanguarda na totalidade por fazer uso do historicismo e da representação da natureza pela observação, os pré-rafaelistas lançam um periódico denominado The Germ para promover as suas ideias.

    Reúnem-se no seu currículo algumas exposições geradoras de controvérsia pelo novo conceito de composição e tratamento de temas religiosos, assim como sucessos posteriores, quando seguidores do grupo, produzindo cada vez mais ao gosto vitoriano da época, acabam por vender obras a preços bem elevados.

    Além de Ford Madox Brown, que preferiu trabalhar como independente, mas se manteve em contato com o grupo, outros artistas vão ser influenciados pelo estilo linear dos pré-rafaelitas, como William Morris. Este movimento será de extrema importância para a arte dos finais do século XIX e despontar do século XX, nomeadamente para a Arte Nova e o Simbolismo.

    A partir de 1851 John Ruskin vai ser um defensor inicial e patrono da Irmandade Pré-Rafaelita e os seus escritos vão surtir grande influência nas ideias medievalistas do grupo.

    Artistas pré-rafaelitas

    Principais artistas Pré-Rafaelitas

    Artistas e figuras relacionadas



    Bibliografia

    • CALADO, Margarida, PAIS DA SILVA, Elker, Jorge Henrique, Dicionário de Termos da Arte e Arquitectura, Editorial Presença, Lisboa, 2005, ISBN 20130007
    • HINDLEY, Geoffrey, O Grande Livro da Arte - Tesouros artísticos dos Mundo, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1982
    • JANSON, H. W., História da Arte, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1992, ISBN 972-31-0498-9
    • KRAUßE, Anna-Carola, Geschichte der Malerei – Von der Renaissance bis heute, Tandem Verlag, Germany, 2005, ISBN 3-8331-1404-5

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