domingo, 29 de março de 2015
quarta-feira, 25 de março de 2015
HERBERTO HELDER
O Amor em Visita
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.
Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.
Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.
Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.
Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura, não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz
sobre as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.
Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.
Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.
Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.
Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.
Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.
Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
a cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.
Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.
As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.
Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.
E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.
De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.
E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.
Herberto Helder, in 'O Amor em Visita'
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.
Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.
Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.
Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.
Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura, não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz
sobre as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.
Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.
Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.
Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.
Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.
Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.
Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
a cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.
Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.
As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.
Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.
E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.
De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.
E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.
Herberto Helder, in 'O Amor em Visita'
in O Citador
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O texto "Grávidos de literatura" é de João Pedro Jorge e foi publicado no Observador, 7 Março 2015
domingo, 8 de março de 2015
domingo, março 08, 2015
Grávidos de literatura
in Anovis Anophelis. blogspot.com
Há muito que me interrogo sobre a origem da delirante criatividade dos escritores portugueses. Qual será a fonte da fecundidade literária de um António Lobo Antunes ou da sofisticada imaginação de um António Mega Ferreira? Como é que as histórias e as personagens dos livros de Margarida Rebelo Pinto, Maria João Lopo de Carvalho, José Riço Direitinho, João Tordo ou Valério Romão foram geradas?
Lendo as declarações de alguns deles, é possível tirar curiosas e invulgares conclusões acerca dos processos da escrita em Portugal. “Porquê José Agostinho de Macedo?”, perguntou Paula Moura Pinheiro a Mega Ferreira, autor de Macedo: Uma biografia da infâmia. Resposta: “Por acidente, como eu penso que acontece com os escritores. Eu não sei se nós escolhemos os temas se os temas nos escolhem a nós.” Coisa idêntica se passa com Margarida Rebelo Pinto. Questionada pelo Correio da Manhã sobre os novos projectos que tem em mãos, a autora de Sei Lá afirmou: “Tenho uma lista. O mais certo é que um deles me apanhe na curva. São as histórias que nos apanham, e não o contrário.”
Para António Lobo Antunes, os seus romances “estavam ali à espera”, por isso “não posso dizer muito bem que sou o autor dos livros” (entrevista ao extinto A Capital, 2004), tese que corroborou mais tarde no diário espanhol El País, quando afirmou que “os livros fazem-se sozinhos […] a mão caminha sozinha”. Já Maria João Lopo de Carvalho, autora de um romance histórico sobre a Marquesa de Alorna, foi mais específica e declarou ao Notícias Magazine que tinha sido escolhida (nada mais, nada menos) pela própria Marquesa para contar a sua história: “Na eternidade, onde ela está – tenho fé, sou católica –, Leonor escolheu-nos [a ela Lopo de Carvalho e Maria Teresa Horta, que também escreveu uma biografia da Marquesa] para a estudarmos de maneiras diferentes e complementares.”
Poucos têm escapado a este paleio capaz de adormecer várias pessoas ao mesmo tempo, nem sequer os saudosos Rosa Lobato Faria e Manuel António Pina. A primeira, numa entrevista de 2007, afirmou que “O livro escolhe-nos, não somos nós que o escolhemos a ele” e que “O romancista não escolhe os temas. São os temas que o escolhem”; o segundo, questionado sobre “Quando é que descobriu que escrevia poesia”, declarou noutra entrevista referente a 2011: “Não escolhi ser poeta; ser poeta é que me escolheu a mim.”
Lá fora, o ofício de escrever depende da planificação e do método, implica ler e estudar muito, exige passar várias horas por dia a escrever. Os escritores portugueses não vão nisso. Trabalho, aprendizagem, disciplina, esforço, estudo? Isso seria cair no óbvio e na redundância, deixar-se encurralar nos lugares comuns e no tédio das frases feitas, das fórmulas gastas.
Este surto incontrolável de revelações sobre o mistério do génio criador, por muito que isto custe, está a fazer escola, frutificou entre os mais novos. João Tordo, o jovem vencedor do Prémio José Saramago de 2009, disse numa entrevista aoDiário de Notícias: “Eu descobri a Catarina Eufémia [tema do romance Anatomia dos Mártires] porque ela me foi acontecendo. Acho que foi mais ela que me descobriu a mim” (no princípio do segundo capítulo do livro, o narrador confessa também que “No princípio de Dezembro comecei a investigar a fundo a história de Catarina Eufémia. Uma vez mais, temo estar a mentir porque, em abono da verdade, foi a história de Catarina que me começou a investigar”).
José Riço Direitinho, escritor e crítico literário do Público, afina pela mesma cartilha. A jornalista Diana Garrido, do jornal i, perguntou-lhe: “Faz algum esboço das suas personagens e trama?” O escritor, peremptório, garganteou: “Não, elas vão aparecendo. Deixo-as entrar, ou não.” “Como é que dá o nome às suas personagens”, continuou a jornalista. “Baptizam-se elas próprias. Quando chegam é como se já tivessem nome”, asseverou o escritor, com uma gravidade digna de Prémio Nobel. Mais recentemente, na mesma toada, Valério Romão, convidado do programa “Nas Nuvens”, do canal Q (temporada 2, episódio 21), a propósito do livro de contos Da Família, referiu: “Bem, enfim, eu acho que fundamentalmente não são os escritores que escolhem os temas, os temas é que escolhem os escritores.”
Trabalho, aprendizagem, disciplina, esforço, estudo? Os escritores portugueses não vão nisso. Isso seria cair no óbvio e na redundância, deixar-se encurralar nos lugares comuns e no tédio das frases feitas, das fórmulas gastas. Lá fora, em França, nos Estados Unidos, na Guatemala, em Inglaterra, na Colômbia, na Nigéria, no Egipto, no Chile, etc., o ofício de escrever depende da planificação e do método, implica ler e estudar muito (para se nutrirem das mais variadas heranças literárias), exige passar várias horas por dia a escrever (como os campeões de pingue-pongue chineses, que treinam diariamente dez horas). Por isso escrevem e reescrevem, comparam, corrigem, revêem, voltam a rever, cortam, rasuram, excluem, acrescentam, compõem, recompõem, etc. Há aqueles que se dedicam a observar e a escutar com atenção os outros, que registam os acontecimentos e dão notícia do seu tempo, que viajam, correm daqui para ali, vão a África caçar leões e comem baleia guisada ao pequeno-almoço, tentam alargar as suas faculdades inventivas e infundir-se de novas possibilidades criativas, porque, enfim, é da experiência da vida e do contacto com os outros seres humanos que nasce a grande literatura.
Em Portugal, pelos vistos, o único talento necessário para escrever livros é ser possuído, como aconteceu com a Virgem Maria, por uma espécie de sopro que engendra, sem os próprios escritores darem bem por isso, vindos não se sabe donde, romances, livros de poemas, temas, estilos, intrigas, personagens, diálogos, comparações, intertextualidades, polifonias.
Pois os escritores do nosso pequenino país dispensam isso tudo, preferem ficar à espera, como na missa, de ouvir a trombeta da inspiração. Escrever, lá na cabeça deles, é um estímulo que resulta do imprevisível; é algo inexplicável que não tem nada que ver nem com o trabalho, nem com o método, nem com a memória. É um dom sobrenatural concedido apenas a alguns, limitado a meia dúzia de eleitos, um impulso projectado na alma, ou um princípio de acção que lhes foi comunicado do Alto, lhes iluminou a inteligência e lhes moveu a vontade. E a literatura, afinal, uma matéria obscura, um fenómeno que diz respeito não se sabe bem a quê – à graça divina?, a uma emanação proveniente dos astros? –, um mistério no qual ninguém consegue penetrar e cujo processo não podemos compreender (como a Trindade de Pessoas em Deus, a Incarnação do Verbo Divino, etc.). Neste canto do planeta acredita-se, portanto, que a literatura desce do céu como o espírito que iluminou os apóstolos, contendo segredos que só o Altíssimo conhece (e mais eles).
Em Portugal, pelos vistos, o único talento necessário para escrever livros é ser possuído, como aconteceu com a Virgem Maria, por uma espécie de sopro que engendra, sem os próprios escritores darem bem por isso, vindos não se sabe donde, romances, livros de poemas (incluindo edições de autor, edições críticas, edições definitivas, edições póstumas, etc.), temas, estilos, intrigas, personagens, diálogos, comparações, intertextualidades, polifonias, etc. Por exemplo,Caminho Como Uma Casa Em Chamas, o último romance de Lobo Antunes, apareceu-lhe há meses quando estava a descer o estore da sala (ao mesmo tempo que coçava os dedos dos pés na alcatifa, fazendo estalar as articulações). António Lobo Antunes sentiu uma reverberação, um repentino arrebatamento de energia. Algo golpeou-lhe depois a retina, os olhos moveram-se debaixo das pálpebras e lacrimejaram. Sem conseguir controlar a sua expressão e os músculos faciais, o corpo do escritor português começou a aumentar. Lobo Antunes empalideceu, benzeu-se e o suor correu-lhe pela cara. Sentiu uma vertigem e desmaiou. Quando despertou – “onde estou eu?!”, bradou –, viu em cima da secretária o novo livro.
Com Mega Ferreira aconteceu algo semelhante: apareceu grávido de Macedo: Uma biografia da infâmia. Enquanto dava o nó na gravata, Mega Ferreira sentiu-se subitamente agitado por um torvelinho interno, os seios aumentaram de volume, a pigmentação da pele mudou, a frequência respiratória e as trocas gasosas elevaram-se, os ligamentos e as cartilagens tornaram-se mais elásticos… Após uma série de contracções da musculatura do diafragma e da parede abdominal, Mega Ferreira fez uns trejeitos medonhos, deu uma bofetada na própria cara e expulsou finalmente, duma assentada, a Biografia da Infâmia, O essencial sobre Camus eO essencial sobre Proust.
Por seu lado, José Riço Direitinho estava a descongelar meio frango quando as personagens dos contos A Casa do Fim lhe foram inseminadas (através de métodos não invasivos) no local onde normalmente ocorre a fecundação. De imediato, Riço Direitinho levantou as mãos e mexeu as pernas, sentindo-se atacado de uma acumulação de gases e outras indisposições corpóreas, que passo a relatar: visão turva, dor de estômago (aos jornalistas, mais tarde, o escritor descreveu-a como um pouco mais forte que as dores que as mulheres sentem durante o período menstrual), inchaço das mãos, dos pés, dos tornozelos e das gengivas, seguido de pequenas borbulhas que dão comichão, corrimento nasal (no nariz formou-se uma bolha de ranho, que aumentava, diminuía, depois voltava a aumentar e a diminuir) e tosse seca persistente. Extraídas dum óvulo masculino, saíram-lhe de rompante uma ninhada de personagens com nomes bíblicos (como Eva, Moisés, Abel, Caim ou Zebedeu). Sem saber bem como nem porquê, Riço Direitinho deparou-se com a obra feita e, de tão contente, começou a bater palmas com as orelhas.
Já Maria João Lopo de Carvalho estava a desenroscar o tubo da pasta de dentes quando foi penetrada – depois de muito pedir a Nossa Senhora – pelo romance Marquesa de Alorna. O corpo da escritora, em estado de beatitude, começou a segregar substâncias – que causam um cheiro característico, cujo nome prefiro não publicar –, seguido de algumas dificuldades de concentração e de um momentâneo ataque de miopia. Repentinamente, das plantas dos pés começou a sair-lhe um romance histórico.
Por último, Valério Romão estava de chinelos a envernizar os móveis quando foi acometido de uns estremecimentos internos, que incluíam muita vontade de urinar, enjoos e olfacto mais sensível do que o normal (por causa dos níveis elevados de estrogénio). Pungido pelo pressentimento da criação, Valério Romão (sempre de chinelos) teve desejos por comidas exóticas. Ao abrir o frigorífico, o tema “Família” saltou da gaveta das carnes e, antropofogamente, senhoreou-se de Valério Romão, o qual, trespassado de estranhos calafrios, expeliu os livros Da Família e O da Joana.
Perguntarão vocês: quem terá sido o precursor de tão original doutrina sobre as técnicas de criação literária? Qual será a procedência deste profundo e fascinante misticismo que os nossos escritores repetem tão fastidiosamente? O mesmo pergunto eu. Será um daqueles casos portuguesíssimos de mania das grandezas, um extremado exemplo do mito da literatura eleita (a nossa) por obra e graça do dedo divino? Nada disso! Depois de muito cavar, depois de desfolhar e tornar a desfolhar os livros que para aí se publicam (e de discutir o assunto em vários festivais de literatura), cheguei por fim à conclusão que se trata de um caso apaixonante de capilaridade literária.
Entre os escritores que mais têm influenciado a novíssima literatura portuguesa conta-se Paulo Coelho, que um dia afirmou sobre a sua obra: "Eu nunca penso nos temas. Eles me escolhem."
Na realidade, entre os escritores que mais têm influenciado a novíssima literatura portuguesa conta-se o autor brasileiro mais vendido em língua portuguesa de todos os tempos (mais de 100 milhões de livros): Paulo Coelho, o criador de O Alquimista (e o escritor que mais quilómetros percorreu entre o sul de França e Santiago de Compostela). Vejamos. Quando lançou o livro Zahir, uma das perguntas que os jornalistas fizeram ao escritor brasileiro foi se existia algum tema sobre o qual gostaria ainda de escrever, ao que Paulo Coelho respondeu: “Eu nunca penso nos temas. Eles me escolhem” (isto vem desmentir, diga-se de passagem, a ideia do incipiente intercâmbio entre a literatura portuguesa e a literatura brasileira, da pouca curiosidade que ambas inspiram uma na outra, do mútuo desconhecimento da literatura produzida nos dois países irmãos). Por outro lado, reconheceu que compra livros porque “são eles que me escolhem, me chamam da prateleira de uma livraria” (como vimos, os escritores portugueses concordam intensamente com Paulo Coelho).
Que Paulo Coelho é uma fonte copiosa de imitação já o sabia, agora que os nossos escritores se tivessem convertido fanaticamente aos devaneios do autor de Na Margem do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei causa alguma surpresa. Não há nada de mal em reter os ensinamentos dos precursores, mas aquilo que faz um escritor forte, como diz Harold Bloom em A Angústia da Influência, está na capacidade de fazê-los significar noutro sentido – através de uma correcção criativa, de uma mudança de ênfase, de uma distorção da doutrina original –, mostrando que eles (os precursores) não conseguiram ir suficientemente longe. Como os nossos escritores não o fizeram, e preferiram a subserviência subalterna, uma conclusão se impõe: têm ainda de encontrar a sua própria voz. Eis o que me parece ser o problema central da recente literatura portuguesa.
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