quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 

Ludwig van Beethoven foi um gênio revolucionário

17/12/2020

Por
Simon Behrman

Tradução
Caue Seignemartin Ameni

250 anos após seu nascimento, a música de Beethoven ainda tem um poder subversivo estimulante. Sua revolução artística estava intimamente ligada à sua simpatia pelas revoluções políticas de seu tempo.

Retrato de Ludwig van Beethoven ao compor a Missa Solemnis. (Joseph Karl Stieler / Casa de Beethoven)

Por que ainda estamos ouvindo e, de fato, escrevendo sobre Ludwig van Beethoven? Dois séculos se passaram desde que sua música foi escrita e tocada pela primeira vez. Mesmo seus contemporâneos mais próximos, como Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart e Franz Schubert, não foram tão consistentemente populares, nem tiveram sua música tão analisada e reinterpretada.

Ao contrário da música de Gustav Mahler ou Anton Bruckner, a música de Beethoven nunca precisou ser resgatada da obscuridade: ela tem sido uma constante nos concertos desde seu nascimento. Sua música foi radical para a época, e ainda hoje existem peças suas, como a Grosse Fuge e alguns dos últimos quartetos de cordas, que permanecem desafiadores para o intérprete e o ouvinte. No entanto, essas peças têm um lugar seguro no repertório do concerto, ultrapassando em muito as de modernistas como Arnold Schoenberg e Igor Stravinsky.

A música de nenhum outro compositor clássico ocidental é tão característica em eventos públicos ou propaganda política quanto a de Beethoven. Veja uma de suas obras mais importantes e famosas, a Nona Sinfonia. As apresentações foram organizadas por sindicatos na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial e, em seguida, durante o Terceiro Reich no aniversário de Hitler. O governo de supremacia branca da Rodésia o adotou como um hino, assim como fez mais recentemente a União Europeia. Leonard Bernstein conduziu uma orquestra composta por músicos da Alemanha Oriental e Ocidental durante a apresentação para marcar a queda do Muro de Berlim.

Compositor da modernidade

Não se trata apenas de suas composições serem interessantes como belas obras de arte. Adoro a música de Haydn e Mozart, mas seu mundo sonoro nunca me faz sentir que estou em outro lugar que não seja o final do século XVIII. Ouvindo muitas das obras de Beethoven, há momentos ou períodos inteiros que parecem modernos, evocando experiências que permanecem imediatas.

Isso se deve em grande parte ao fato de que Beethoven testemunhou as dores do parto no mundo moderno. Em um grau inigualável por qualquer de seus contemporâneos, ele conseguiu expressar a alegria e o dinamismo daquele período revolucionário, juntamente com suas contradições, seus momentos de desespero e derrota.

Quase toda a vida de Beethoven foi moldada pela Revolução Francesa e suas consequências. Nascido em 1770, ele estava no final da adolescência quando a Bastilha foi invadida. A revolução atingiu seu apogeu com os jacobinos e entrou em sua fase reacionária quando ele passava dos 20 anos. Suas cartas neste período contêm muitas declarações de apoio à revolução, afirmando sua própria identificação como democrata.

Beethoven tornou-se famoso em toda a Europa ao mesmo tempo que os exércitos de Napoleão destruíam a velha ordem em todo o continente. Mas ele também viveu o declínio da revolução e a dura reação contra ela.

Ele passou por duas grandes crises artísticas e pessoais em sua vida. A primeira coincidiu com a coroação de Napoleão como imperador, sinal de que os ideais republicanos da Revolução haviam sido traídos. A segunda foi após a derrota final de Napoleão em 1815 e o triunfo da reação.

A dinâmica dessas duas crises na revolução foi muito diferente, assim como a resposta de Beethoven a elas. Beethoven sintetizou a relação entre o artista e a dinâmica da revolução e ele traçou um caminho que outros como Richard Wagner e Dmitri Shostakovich seguiram.

O período “heróico”

Em 1802, Beethoven passou por uma crise pessoal por causa de sua crescente surdez e profunda solidão. As profundezas de seu desespero ficam claras em uma carta aos irmãos, conhecida como Testamento de Heiligenstadt. De alguma forma, ele conseguiu sair dessa depressão, e a primeira obra que escreveu em seguida foi a Terceira Sinfonia.

Isso marca o surgimento total do que se tornou conhecido como a essência do estilo “heróico” de Beethoven. É difícil exagerar o quanto essa peça transformou a música ocidental como um todo. É concebido em uma escala maior do que qualquer obra anterior: a primeira parte sozinha é mais longa do que a maioria das sinfonias inteiras do século XVIII.

A forma sinfônica há muito tempo lidava com tensão e luta. No entanto, nesta sinfonia, esses aspectos são dramaticamente acentuados. Em vez de uma introdução suave, obtemos dois acordes muito altos e abruptos que, nas palavras de Leonard Bernstein, destruíram a elegância do século XVIII. O resto do movimento tem uma sensação de propulsão constante, mas muitas vezes é harmonicamente instável – uma combinação que se encontra ao longo de suas obras mais maduras.

Notoriamente, Beethoven dedicou essa sinfonia a Napoleão e, em seguida, riscou a dedicatória ao ouvir que Napoleão havia se coroado imperador. O título final dado à peça foi a Eroica (“The Heroic”).

É impressionante que Beethoven tenha expressado sua saída da depressão profunda não de uma forma introspectiva ou puramente pessoal, como se tornou comum entre os compositores românticos do século XIX, mas por meio da esperança oferecida pela promessa de mudança revolucionária na Europa. Os estudiosos costumam presumir que a crença de Beethoven nos ideais revolucionários morreu com a extinção da dedicatória a Napoleão, mas essa narrativa está longe de ser o caso. Há muitas referências esparsas em suas cartas ao longo de sua vida que sugerem que ele ainda acreditava no fim do poder aristocrático e da igreja.

Na verdade, ainda em 1822, quando Beethoven soube da morte de Napoleão, ele teria dito: “Já compus a música adequada para essa catástrofe.” É provável que se referisse à grande marcha fúnebre que é o segunda parte da Eroica, embora também seja possível que tivesse em mente o imenso cenário da Missa Solemnis. A evidência da contínua simpatia radical de Beethoven também está presente em muitas obras que ele produziu ao longo dos anos.

Revolução da forma

Na década seguinte à Eroica, ele produziu uma série de outras obras-primas, incluindo sua quinta, sexta e sétima sinfonias; sua única ópera, Fidelio; várias grandes aberturas; os últimos três concertos para piano; e seu Concerto para violino, os quartetos Razumovsky, a sonata para piano Appassionata; e muitos outros. Todas essas peças de uma forma ou de outra revolucionaram as formas musicais. As peças para grandes orquestras e Fidelio frequentemente expressam temas como liberdade da opressão.

Fidelio é um exemplo importante de uma “ópera de resgate”, um gênero intimamente associado à Revolução Francesa, que normalmente envolve o resgate de um herói das mãos da tirania numa situação de confinamento ou de execução. A ópera é baseada em um libreto de Jean-Nicolas Bouilly, que havia sido um dos principais juristas do governo republicano francês. Baseado, supostamente, em uma história real, trata-se de uma mulher que se disfarça de homem para ajudar seu marido, um prisioneiro político, a escapar da prisão.

As primeiras apresentações da ópera foram realizadas em Viena, durante a ocupação pelas forças de Napoleão. Na verdade, a história conturbada desta ópera, que falhou em suas primeiras apresentações e teve que ser drasticamente revista para apresentações futuras, talvez possa ser explicada, em parte, pelo seus aspectos políticos mais radicais.

Beethoven estava longe de ser o único compositor de seu tempo a acolher a Revolução Francesa e a expressar seus ideais na música. Na verdade, houve contemporâneos que expressaram isso de maneiras muito mais óbvias. Por exemplo, François-Joseph Gossec, Luigi Cherubini e Étienne Méhul escreveram canções e óperas patrióticas que celebravam explicitamente o republicanismo. No entanto, embora intelectualmente esses compositores celebrassem o novo, eles o faziam no estilo do antigo, e essa é uma das razões pelas quais suas obras não sobreviveram o passar do tempo.

Em contraste, Beethoven expressou o dinamismo de sua época não apenas na superfície, com declarações de virtudes republicanas, mas sim desenvolvendo um estilo musical radicalmente novo que refletia os novos tempos. São poucas as suas obras em que o elemento político é particularmente evidente – principalmente Fidelio, a Eroica e a Nona Sinfonia. Beethoven conjurou mundos sonoros que, na época, pareciam revolucionários. Na verdade, eles transformaram radicalmente a música europeia, da mesma forma que o republicanismo estava transformando a sociedade do velho continente.

Ele conseguiu isso, em parte, por meio de um maior senso de escala, não apenas em termos de duração das peças, que exigiam arquiteturas musicais mais complexas, mas também em termos do tamanho da orquestra, da gama de instrumentos usados e do esforço técnico e habilidades dos músicos que estavam além do que se esperava. Quando um violinista reclamou com ele sobre a dificuldade técnica de uma de suas composições, Beethoven respondeu: “Não me importo sua relação com o violino!”

Estilisticamente, ele tinha uma tendência a se concentrar em temas minúsculos, muitas vezes banais, que impulsionam implacavelmente grandes extensões de música, mas que são transmitidos aos diferentes instrumentos e constantemente transformados. Este estilo é sintetizado no primeiro movimento da Quinta Sinfonia, que começa com um dos motivos mais famosos de toda a música. Quase todas as barras dessa parte, que dura cerca de sete minutos, repete esse motivo de alguma forma. Na verdade, ele aparece no segunda parte, também domina a terceira, e mais uma vez pode ser ouvido no final.

Isso cria uma sensação de unidade e de transformação constante em toda a sinfonia, em vez de ser apenas uma sucessão de movimentos frouxamente mantidos juntos, se é que o são, o que era típico das sinfonias até então. É esse impulso – a escala heróica, a grande narrativa, o sentido na música de uma unidade de propósito e transformação radical – que dá vida a um período de fervor revolucionário.

Reação e o período tardio

A segunda grande crise na vida de Beethoven começou por volta de 1813. Seu irmão mais novo, Kaspar, morreu de tuberculose e ele então se envolveu em uma longa e desagradável batalha legal com a viúva de Kaspar pela guarda de seu filho. Após a sucessão de obras-primas na década anterior, sua produção despencou.

A única obra em grande escala que ele completou durante este período foi uma peça encomendada para celebrar a vitória de Wellington sobre Napoleão na Batalha de Vitória. Esta Sinfonia de Batalha é, sem exagero, um lixo musical: bombástico, com falta de desenvolvimento musical e sustentado por truques baratos como o uso de um órgão mecânico ultramoderno que pode reproduzir os sons da batalha. Não tem nenhuma das ambigüidades ou invenção que se ouve em outras partes de sua obra.

Beethoven caminhando na natureza. (Michael Martin Sypniewski / Wikimedia Commons)

No entanto, isso rendeu a Beethoven mais dinheiro do que qualquer outra coisa que ele produziu em sua vida. Uma das “obras” menos ilustres de Beethoven é a descoberta de que o entretenimento barato geralmente produz recompensas maiores do que a arte revolucionária sob o capitalismo. Mas esse episódio talvez seja mais uma prova de sua profunda desmoralização pessoal e política.

Se Beethoven não tivesse produzido nada mais significativo durante os quatorze anos restantes de sua vida, ele ainda seria considerado um dos grandes nomes da música ocidental. Em vez disso, já tendo sido uma daquelas raras pessoas que transformam sua arte uma vez, ele se tornou aquele artista ainda mais raro que o faz uma segunda vez. O seu “período tardio” tornou-se um modelo para muitos artistas subsequentes em diferentes áreas, como um período em que um gênio reconhecido tem a confiança e a capacidade de estender o horizonte de possibilidades artísticas para as gerações futuras.

Não há muitas peças significativas desse período. Além de várias composições menores, há apenas uma sinfonia, cinco quartetos de cordas, meia dúzia de sonatas para piano e um cenário da missa. Mas cada uma dessas peças permanece, mais de duzentos anos depois, entre as mais importantes na história da música ocidental.

Os chamados “Late Quartets” têm uma profundidade emocional nunca ouvida antes desta forma e raramente igualada desde então. Esta qualidade pode ser ouvida de forma mais notável no Quarteto de Cordas No. 13. O editor de Beethoven se opôs a uma parte desta peça, argumentando que ela ameaçava sua viabilidade comercial. Beethoven publicou-a separadamente como uma peça autônoma, conhecida como Grosse Fuge.

O Grosse Fuge confundiu os críticos e o público quando foi apresentado pela primeira vez e, ainda hoje, continua a ser um desafio para os ouvintes. Uma fuga envolve pelo menos dois temas sendo jogados um contra o outro e tem sido uma forma padrão para compositores durantes séculos. Mas, nesta peça, essa dinâmica é feita com uma tensão tremenda, algo que ela mantém, com apenas um breve lançamento, por todo o seu período de uns quinze minutos. Stravinsky, o arquimodernista do século XX, descreveu-a como uma peça que “sempre permaneceria contemporânea”.

Para o mundo inteiro

Essas peças, junto com a sonata Hammerklavier e a Missa Solemnis, sugerem que as dificuldades pessoais e a desmoralização política levaram Beethoven a se retirar quase completamente para um mundo interior, muito distante das tentativas de um engajamento dinâmico com o mundo ao seu redor que marcou o período heróico dos anos 1800.

A narrativa padrão afirma que Beethoven fez as pazes com a reação política, ou pelo menos deixou para trás o fervor revolucionário de sua juventude. Mas sua Nona Sinfonia, concluída apenas três anos antes de sua morte, dá uma impressão totalmente oposta.

O que torna a Nona Sinfonia ainda tão atraente como uma obra de arte ou uma declaração política? Sua abertura é diferente de qualquer outra ouvida antes em uma grande obras. Sons emergem de algum lugar misterioso e difuso, aos poucos, convocando as forças da orquestra. Esta técnica de abertura com um “horizonte longo” não seria totalmente explorada novamente até as sinfonias de Bruckner e Mahler muitas décadas depois.

No meio dessa primeira parte, há uma passagem cataclísmica em que a violência e a ansiedade se expressam com uma força e dissonância que pressagia a música de um século depois, composta por volta da Primeira Guerra Mundial e do colapso dos impérios europeus. A sinfonia nunca se recupera totalmente desse trauma até o clímax “Ode à alegria”, mais de meia hora depois.

Mesmo assim, a conclusão triunfante é conquistada com dificuldade, com harmonias instáveis e um conjunto de variações que parecem estar continuamente em busca de uma vitória final. Os momentos finais da sinfonia, embora emocionantes e, em última análise, triunfantes, também transmitem uma sensação de desespero maníaco.

Em suma, toda a sinfonia é uma exploração musical de luta, mas desta vez muito mais extrema e precária do que na Eroica de 20 anos antes. Em contraste com muitos dos românticos que vieram depois de Beethoven, a escala em que a música é escrita deixa claro que não é apenas uma luta de uma pessoa solitária, mas uma luta que se desenvolve em uma escala totalmente maior.

As palavras de Friedrich Schiller que se encontram no final tornam isso ainda mais claro, com as declarações de que “Todos os homens serão irmãos” e “Sejam abraçados, milhões! Esse beijo é para o mundo inteiro! ” Esses sentimentos também estavam em conflito com um período que viu a restauração da monarquia na França e a repressão do movimento republicano em toda a Europa.

Um ícone de terra

Beethoven morreu em março de 1827. Estima-se que cerca de 30 mil pessoas compareceram ao seu cortejo fúnebre em Viena, uma cidade cuja população total era de apenas 200 mil na época. Logo depois disso, a divinação se instalou. Monumentos a Beethoven, como o erguido em sua cidade natal, Bonn, em 1845, ou a escultura de Max Klinger para a famosa exposição secessionista de 1902, retratam-no no estilo de um grande líder político ou um deus da antiguidade.

Escultura de Beethoven de Max Klinger para a famosa exposição secessionista de 1902. (Arquivo da secessão)

Ainda no início do século XX, os compositores lutavam para emergir de sua sombra. O nome e a imagem de Beethoven passaram a representar muito mais do que apenas sua própria vida e música: eles se tornaram um avatar para a própria tradição clássica ocidental. Quando Chuck Berry quis sinalizar a chegada iconoclasta do rock ‘n’ roll, ele deu a seu single de sucesso o título “Roll Over Bach“.

E, no entanto, em vida, Beethoven era mal-cuidado e, às vezes, um tanto desleixado quando se tratava de publicar suas obras e organizar concertos de sua música. Ele é o primeiro grande compositor a nunca ter aparecido em retratos de peruca e a ter ganhado a vida como músico independente ao longo de sua carreira, em vez de servir à igreja ou a uma família aristocrática.

O maior problema com a imagem “prometeica” de Beethoven é que ele realmente lutou muito para produzir suas obras-primas. Está claro em suas cartas e no testemunho de seus amigos que ele era um personagem muito terreno. Isso também transparece em sua música, que muitas vezes é definida por seu estilo heróico, mas que também nos fala em um nível muito humano. Muitas de suas músicas expressam um tempo de luta entre a esperança de uma mudança progressista radical e as forças da reação. Esse era o mundo de Beethoven e, de muitas maneiras, também é o nosso.

Trailer de Miss Marx (HD)

sábado, 5 de dezembro de 2020

Sobre a grande pintora ARTEMISIA

 

Jornal Pùblico-ÍPSILON- Vasco Câmara

Devia ter inaugurado em Abril mas só abriu em Outubro por causa da pandemia. Um mês depois voltou a fechar pelas mesmas razões. Reabriu ontem na National Gallery de Londres a retrospectiva de Artemisia Gentileschi (Roma, 1593-Nápoles, c.1656), a primeira grande exposição dedicada à pintora num museu deste prestígio e dimensão. São mais de 30 os quadros expostos, cerca de metade do total da obra de Artemisia, mas é o suficiente para impressionar quem a vir. As críticas não podiam ser mais entusiastas. No Guardian, Jonathan Jones chamou-a uma “revolutionary exhibition” e, sobretudo, “the most thrilling exhibition I have ever experienced at the National Gallery”.

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Qualquer ideia de “delicadeza” dos traços e temas femininos — estereótipo tão repetido pela crítica de arte nos séculos XIX e XX — é subvertida pela intensidade e força de uma Judite a degolar um Holofernes com a ajuda de uma “criada” que, não tendo direito a nome, nada tem de subalterno Eamonn M. McCormack/Getty Images

A exposição começou a ser pensada em 2018 quando a National Gallery comprou o auto-retrato da artista representada como Catarina de Alexandria. Pintado entre 1615 e 1617, foi a primeira obra de Artemisia a fazer parte de uma coleção pública britânica. Mas é apenas a oitava obra de uma mulher artista exposta no principal museu de Trafalgar Square, que conta com 700 pintores. Tamanha disparidade não é proporcional à realidade. Como têm demonstrado muitos estudos e exposições nos últimos anos, são muitas mais — e melhores — as artistas mulheres do passado do que aquilo que a história da arte nos dá a conhecer através das várias dimensões em que se constrói enquanto disciplina — museus, exposições, livros, revistas académicas e de divulgação, ou programas universitários.

Em 2018, outro grande museu de “arte antiga”, o Museu do Prado, iniciou um questionamento sobre o lugar das mulheres artistas nas suas colecções e exposições. Uma das consequências foi ter retirado das reservas o Nascimento de São João Baptista de Artemisia Gentileschi. Mesmo assim, entre as 1700 obras do maior museu da Península Ibérica apenas 7 são de mulheres. Mas o efeito mais visível deste repensar do cânone foi a exposição sobre duas pintoras italianas, antecessoras de Gentileschi, inaugurada em Madrid em Outubro de 2019: Historia de dos pintoras. Sofonisba Anguissola y Lavinia Fontana. O mesmo trabalho de reflexão sobre a disciplina da história da arte resultou na exposição recentemente inaugurada em Madrid, Invitadas. Fragmentos sobre mujeres, ideología y artes plásticas en España (1833-1931).

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VCG Wilson/Corbis via Getty Images

Mesmo assim, e antes desta iniciativa da National Gallery, Artemisia era a artista feminina da “arte antiga” sobre a qual mais se tinha escrito e mais exposições individuais se tinham realizado. Isto poderá dever-se a três razões principais: em primeiro lugar, existe uma quantidade substancial de obras assinadas e documentos escritos, nomeadamente em grandes colecções italianas, apesar da atribuição da sua obra continuar em revisão. Em segundo lugar, a sua história de vida, marcada pela violação que sofreu e o processo judicial que se seguiu, atraiu sobre ela uma curiosidade inusitada e tornou-se indissociável da construção da sua personalidade artística. Por último, ao privilegiar mulheres fortes e temas bíblicos onde personagens masculinas se convertem nas vítimas, mortais, dos seus actos de violência, favoreceu uma leitura em espelho entre vida e obra, bem como a identificação da própria pintora como feminista, vários séculos antes de a palavra existir.

Já foi escrito inúmeras vezes, e também a propósito de Artemisia, que é preciso ter cuidado com as interpretações espelhadas entre vida e obra. Mas como não o fazer no caso da pintora? As Judites e Holofernes são pintadas logo depois da violação e há na iconografia da pintora uma persistência de homens abusadores e predadores e de mulheres que se vingam da violência, ou que pelo menos lhe resistem. Mulheres que matam ou que se matam, mulheres que não aceitam passivamente serem vítimas, mulheres onde Artemisia converge alegoria e auto-retrato, ficção e realidade — como no extraordinário La Pittura [imagem da capa desta edição], na colecção real da Rainha Isabel II de Inglaterra, em que uma enorme pintora (ela própria?) transborda a tela enquanto pinta, como se a vida nunca lhe chegasse. E assina: Arte-mi-sia — “que a arte me seja”.

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Artemisia, um nome de guerra

Tentei fazer um exercício semelhante ao que têm feito muitas instituições culturais em todo o mundo — quando e onde é que ouvi, li ou vi o nome ou a obra de Artemisia Gentileschi? Licenciei-me em Lisboa, em História e História da Arte, entre 1990 e 1994, mas aí nunca ouvi falar de Artemisia, tal como nunca ouvi falar de nenhuma mulher artista. Mais problemática, no entanto, não foi a total ausência de nomes femininos nos cânones que me foram sendo transmitidos na universidade “da Idade Média ao início do século XX”. Mais grave foi eu não ter reparado nisso. A masculinidade do conhecimento está tão naturalizada que dificilmente nos apercebemos dela.

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A sua obra, onde há uma persistência de homens predadores e de mulheres que se vingam da violência, ao privilegiar mulheres fortes e temas bíblicos onde personagens masculinas se convertem nas vítimas dos seus actos de violência, favoreceu a identificação da pintora como feminista, vários séculos antes de a palavra existir Fine Art Images/Heritage Images via Getty Images 

 

Só quando fui estudar para Londres, em 1994, é que fui confrontada com abordagens feministas à história da arte e pela primeira vez ouvi falar de mulheres artistas dos séculos XIX e início do XX. Mas também não foi em Inglaterra que ouvi falar de Artemisia nem a vi em nenhum museu. Em 1638-39 Artemisia passara uma temporada em Londres a visitar o pai, Orazio, então pintor da corte do rei Charles I, grande coleccionador e mecenas. Mas as encomendas que nesse período foram feitas a Artemisia pela nobreza inglesa permaneceram todas em colecções privadas, e inacessíveis ao público. Até agora.

A primeira vez que vi o seu nome impresso foi num livro humorístico publicado em 1998 pelas Guerrilla Girls, o grupo de artistas-ativistas nova-iorquino e anónimo que, com humor, tem denunciado, desde há 35 anos, as desigualdades de género no mundo da arte. Susana e os Velhos — a história bíblica em que dois homens lascivos assediam uma jovem ameaçando-a com a acusação de adultério, caso ela não ceda aos seus avanços — é a primeira pintura assinada por uma Artemisia ainda adolescente e é também a obra que abre este compêndio de história da arte ocidental feito só de artistas mulheres, em jeito de paródia às histórias da arte só com nomes masculinos, ou seja, aquelas por onde estudei.

Em 2000, quando fui viver para Florença, pude ver, pela primeira vez, a obra de Artemisia. Era a única mulher artista exposta nos Uffizi, um dos museus mais visitados do mundo, onde os locais só vão quando os turistas dão algum descanso à cidade, entre Janeiro e Março. Qualquer ideia de “delicadeza” dos traços e temas femininos — estereótipo tão repetido pela crítica de arte sobretudo nos séculos XIX e XX — é logo subvertida pela intensidade e força de uma Judite a degolar um Holofernes com a ajuda de uma “criada” que, não tendo direito a nome, nada tem de subalterno. As duas aliadas para se vingarem do homem assírio que atacara os judeus. Como numa BD seiscentista, a cena seguinte — a cabeça de Holofernes já dentro de um cesto carregado pela mesma dupla, Judite e criada — encontra-se exposta na Galeria Palatina do Palazzo Pitti, a dez minutos a pé, do outro lado da Ponte Vecchio. Poucos anos depois, no Museo di Capodimonte, em Nápoles, voltei a ver uma pintura da artista, a sua primeira versão de Judite e Holofernes pintada antes daquela que está exposta nos Uffizi florentinos. Neste momento, as duas pinturas encontram-se expostas em Londres, lado a lado.

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Só em 2012, já depois de ter dedicado a Artemisia Gentileschi um capítulo do meu livro A Arte sem História. Mulheres e Cultura Artística (XVI-XX) é que tive a oportunidade de ver, no pequeno Musée Maillot em Paris, uma exposição retrospectiva: Artemisia. Gloire, pouvoir et passions d’une femme peintre. O fascínio que já tinha por ela — obra e vida — só aumentaram.

É verdade, é verdade, é verdade”... A vida faz parte da obra

Nasceu em Roma, em finais de 1593, onze anos depois da morte de Santa Teresa d’Ávila (1515-82) e umas décadas antes do nascimento de Josefa de Óbidos (1630-84). Morreu cerca de 1656, com sessenta e poucos anos, na cidade de Nápoles. Como acontece com grande parte das mulheres pintoras até ao século XIX, era filha de pintor e foi no atelier paterno que fez a sua formação. Quando as mulheres não tinham acesso a outros espaços de aprendizagem esta era a única forma de o talento artístico de uma mulher se manifestar. A mãe morreu de parto quando Artemisia contava 12 anos e a adolescência foi passada a pintar (e a tomar conta dos três irmãos mais novos). Ao contrário de pintoras suas antecessoras como Sofonisba Anguissola ou Lavinia Fontana, para quem a pintura fez parte de uma educação sofisticada, Artemisia não aprendeu a ler nem a escrever. O atelier do pai foi a sua escola. Não podendo, devido ao seu género, frequentar as academias de nu onde se aprendia anatomia, ou mesmo sair de casa, terá aprendido a copiar quadros do pai e gravuras, objectos baratos e acessíveis na sua Roma contemporânea. Aos 17 anos, quando o pai já lhe reconhecera o enorme talento e já assinava telas em nome próprio, foi violada por Agostino Tassi (1578-1644), pintor conhecido do pai que este contratara para lhe dar aulas. Sobre este acontecimento de Maio de 1611 nada saberíamos se Orazio Gentileschi não tivesse denunciado o seu colega de profissão (não sem antes ter tentado que este se casasse com a filha para encobrir o sucedido) e não se conhecesse o processo judicial que prova bem a humilhação — e mesmo a tortura — a que uma mulher seiscentista se tinha que sujeitar se, como Artemisia, se atrevesse a denunciar o seu agressor. O processo foi descoberto no século XIX, mas só publicado em 1981 por Eva Menzio, e depois traduzido do italiano para outras línguas. Pode agora ser visto, pela primeira vez, na exposição londrina.

O julgamento teve lugar em 1612, na corte do Papa Paulo V, e, como aconteceu a tantas mulheres ao longo dos séculos, sujeitou a vítima a nova agressão. Artemisia foi submetida a um exame ginecológico descrito publicamente e sofreu a denominada tortura das Sibilas, para provar que não estava a mentir — “è vero, è vero, è vero” — repetiu enquanto as cordas apertavam os seus dedos até aos limites da dor. Tassi foi considerado culpado, mas como o Papa apreciava a sua pintura, a única condenação que sofreu foi a de ter de sair, temporariamente, da cidade. Uma pena que, de facto, nunca chegou a cumprir. As consequências deste evento na vida de Artemisia foram imediatas e profundas. Para tentar mitigar os danos e a vergonha do processo público e possibilitar-lhe um recomeço, o pai julgou oportuno trocar Roma por Florença e lá casar a filha com um pintor, desconhecido, da sua eleição.

A arte, a vida e a carreira: as cartas

Em Florença, Artemisia deixou telas, conhecimentos e cartas. Aprendeu a ler e a escrever, assistiu ao teatro, música, dança e todo o tipo de eventos performativos que os Medici promoviam na sua corte, recebeu encomendas de Cosimo II e foi a primeira mulher a inscrever-se na Accademia delle Arti del Disegno, em 1616. Mas se em Florença se fez pintora profissional, alcançou reconhecimento e prestígio e teve o seu primeiro atelier individual, também foi lá que contingências da vida pessoal a fizeram regressar a Roma anos depois. “Inquietação, inquietação”. O casamento arranjado do qual nasceram cinco filhos, quase todos mortos na primeira infância, cedo se tornou numa entente cordiale, que permitiu a Artemisia consumar a sua paixão pelo amante, um aristocrata florentino, que ajudou o casal materialmente em inúmeras ocasiões. As cartas que escreveu durante este período permitem-nos saber de uma intimidade que só o tempo — a história — pode legitimar. 

No catálogo da National Gallery, Francesco Solinas assina um artigo sobre toda a correspondência escrita por Artemisia, com destaque para as cartas de amor enviadas ao amante, que ele próprio descobriu apenas em 2011, no arquivo privado da família florentina Frescobaldi. São as únicas escritas pela sua própria mão — ou seja, com os erros gramaticais e a letra pueril a revelarem uma alfabetização tardia e frágil. As muitas outras cartas enviadas por Artemisia — a mecenas, príncipes, aristocratas, familiares e amigos — eram ditadas a secretários enquanto pintava, segundo ela própria explicou.

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Susana e os Velhos — a história bíblica em que dois homens lascivos assediam uma jovem ameaçando-a com a acusação de adultério, caso ela não ceda aos seus avanços — é a primeira pintura assinada por uma Artemisia ainda adolescente e é também a obra que abre um livro humorístico publicado em 1998 pelas Guerrilla Girls, o grupo de artistas-ativistas nova-iorquino que, com humor, tem denunciado, desde há 35 anos, as desigualdades de género no mundo da arte