'Parque Mayer' é o 11.º
filme realizado por António-Pedro Vasconcelos e estreia esta
quinta-feira. O filme, como o título indica, presta homenagem à revista,
ao Parque Mayer e a todos aqueles que por lá têm passado nas mais
diversas funções. Uma homenagem que tem um valor ainda maior se tivermos
em conta o período focado nesta longa-metragem: a década de 30, os
primeiros anos do Estado Novo, a censura que invadiu a sociedade e a
cultura de então.
Na conversa que teve com o
Notícias ao Minuto,
António-Pedro Vasconcelos fala sobre o novo filme que, embora sendo de
época, faz um paralelismo com a atualidade e aborda a sua longa carreira
como realizador, marcada por trabalhos que procuraram captar a
realidade portuguesa.
O estado do cinema em Portugal foi outro dos
temas desta entrevista. "O cinema português não existe, nunca existiu",
afirma António-Pedro Vasconcelos, desiludido com a falta de apoio dos
sucessivos governos à Sétima Arte.
Encontrámos o realizador no
Âmbito Cultural do El Corte Inglés, em Lisboa, espaço onde, entre outras
iniciativas de cariz cultural, estão a decorrer vários cursos (cuja
inscrição é gratuita) sobre história, história da arte, ciência ou
história do cinema. Este último está a ser leccionado por António-Pedro
Vasconcelos. São 11 aulas nas quais o cineasta traça o percurso das
diferentes décadas do cinema, passando pelo cinema mudo e pela mudança
para o sonoro, e salientando os caminhos que o cinema europeu e
americano seguiram.
Como surgiu a ideia para fazer o ‘Parque Mayer’?
É
a primeira vez que é uma ideia proposta pelo produtor, o Tino Navarro. É
uma ideia que vai ao encontro de dois filmes que eu queria fazer. Há
muito tempo que eu queria fazer um filme que se passasse em Lisboa
durante a Segunda Guerra Mundial, durante o fascismo mas que se passasse
no meio do fado. Não queria uma personagem muito conhecida. Não quis
fazer um filme sobre a Amália nem sobre o Alfredo Marceneiro. Quis fazer
sobre uma personagem secundária, um autor de letras, um guitarrista.
Quis fazer um filme que fosse ao mesmo tempo uma homenagem ao fado, de
que gosto muito e sobretudo nessa época, mas também que fosse uma forma
de falar sobre o que foi o fascismo em Portugal, da ditadura, da
cumplicidade com a Alemanha, a ambiguidade do Salazar durante a guerra,
as perseguições. Por outro lado, queria fazer um filme sobre uma jovem
actriz que se apaixona por um encenador mais velho.
O Tino Navarro
perguntou-me ‘Porque é que não fazemos um filme sobre o Parque Mayer,
que é algo que foi importantíssimo em Portugal e nunca foi feito?’,
sendo que os autores e actores da comédia portuguesa, que é o melhor do
cinema durante quase meio século de salazarismo, vinham todos de lá. Ele
sugeriu que nos focássemos no período de consolidação do Estado Novo,
em 1933, com a aprovação da Constituição. Ele deu-me a ideia de fazer um
filme que também tivesse algum eco nas pessoas actualmente, porque o
que se está a passar no mundo é extremamente inquietante e é muito
parecido com o que se passou naquela altura. As pessoas sem darem por
isso um dia acordaram e tinham a PIDE e a censura. O Parque Mayer era o
sítio onde havia a tradição da sátira política, da crítica de costumes e
que era muito popular, interclassista, democrático e onde havia um
sentido de liberdade muito grande. De repente, a Constituição de 1933
foi aprovada de forma anti-democrática, com uma grande máquina de
propaganda e sem oposição. Quisemos mostrar como de uma maneira
não-violenta se instalou a violência. O filme tem essas duas
componentes.
O filme passa-se durante a produção de uma nova
revista, desde o processo inicial, a escolha dos actores, o processo de
escrita, os ensaios, até à apresentação. E obviamente há conflitos e
relações entre os principais protagonistas. O filme tem este contexto
mas tem as histórias das relações de pessoas que acontecem sempre.
Situações de amor, de ódio, de ruptura, são ingredientes comuns a quase
todos os filmes.
A
revista conseguiu manter uma certa irreverência apesar da censura.
Havia muitas piscadelas de olho e as pessoas faziam passar as mensagens
por subentendidos que os censores na primeira sessão não percebiam
Como
referiu, o filme centra-se num período inicial da ditadura que não tem
sido muito explorado no cinema nacional. Sendo o Parque Mayer um palco
de revista, que tem uma dimensão tão social, pode-se dizer que ilustra
de forma muito fidedigna Portugal na década de 30?
Ilustra
de uma certa maneira como era a comédia desses anos. A revista teve
períodos de maior esplendor. Acho que isso teve a ver com gerações, as
primeiras gerações dos grandes actores. O Vasco Santana, António Silva,
Estêvão Amarante, várias cantoras como a Amália, a Hermínia, que nessa
primeira época dos anos 30 foram muito famosos e que depois foram
desaparecendo. Voltou uma nova geração com o José Viana, o Raul Solnado,
a Mariema. Houve vários períodos e a revista conseguiu manter uma certa
irreverência apesar da censura. Havia muitas piscadelas de olho e as
pessoas faziam passar as mensagens por subentendidos, por pequenas
marotices que os censores na primeira sessão não percebiam.
Para o
regime também acabava por ser um escape porque era uma crítica a rir,
não era política. Mas obviamente alguns números foram cortados pela
censura, foram cortadas certas partes. Foi uma luta muito dura e o filme
é dedicado a todos aqueles que durante esse anos mantiveram o Parque
Mayer vivo e com alguma rebeldia.
Em
'Parque Mayer', António-Pedro Vasconcelos debruça-se sobre os primeiros
anos do Estado Novo. Um período pouco abordado no cinema nacional© El Corte Inglés
Este
filme surge num contexto global em que a democracia e a liberdade são
valores ameaçados. Tendo em conta os temas que ‘Parque Mayer’ aborda,
era importante traçar um paralelo com o momento que estamos a viver?
Foi
a ideia do Tino Navarro, a minha e a do argumentista, o Tiago Santos.
Também quisemos aproveitar este período. Podíamos ter feito um filme
sobre o que se passa hoje, mas era mais difícil. Em relação ao fascismo
temos a memória histórica, sabemos que aquilo se passou num clima em que
muitas pessoas estavam fartas dos partidos, da democracia, da
balbúrdia, do parlamentarismo. Só viam esse lado negativo e acolheram
com alguma passividade e até com alguma euforia, em certos casos, as
novas ditaduras. Isso aconteceu aqui, em Itália, na Alemanha, Espanha,
em muitos países. Era mais interessante para mim recordar esses tempos e
as pessoas que façam o paralelo com a actualidade. Porque hoje, apesar
de tudo, o fascismo ainda não aconteceu, vivemos em liberdade. Mesmo com
estes monstros que surgiram agora como o Trump ou o que aconteceu no
Brasil, que foi monstruoso e não sabemos ainda no que vai dar.
Alguns
países da Europa também sentem essa tentação, governos de
extrema-direita que são cada vez mais populares. Há essa ameaça mas pelo
menos ainda continua a haver democracia, há separação de poderes,
eleições. Em Portugal concretizou-se e achei que era mais interessante
falar dessa época porque não se costuma falar no cinema português e ao
mesmo tempo alertar, digamos assim.
A seguir a Salazar, o Governo de Passos Coelho e Paulo Portas foi a coisa mais terrível que se abateu sobre Portugal
Realizou
‘Perdido Por Cem’ e ‘Os Imortais’, filmes que abordam o tema da guerra
colonial, as suas consequências. Tal como acontece em ‘Parque Mayer’,
com a questão da ditadura, são temas que não são muito abordados no
cinema português, apesar do longo período do Estado Novo. Porque é que o
faz?
Faço-o porque é da minha índole, faço-o
espontaneamente. Os meus primeiros filmes são mais pessoais, mais
confessionais. É normal. A saída da adolescência, a juventude, enfim.
Mas com o passar do tempo comecei a interessar-me mais por problemas
concretos que se passam à minha volta. Ainda assim, o meu primeiro
filme, sendo muito concreto, muito confessional - de certa forma as
minhas personagens principais nos meus três primeiros filmes, ‘Perdido
Por Cem’, ‘Oxalá’ e ‘Lugar do Morto’, são uma espécie de alter ego - mas
mesmo assim é um filme sobre aquela época, o lado negro do país, a
vontade de ir embora e a guerra colonial. Tudo isto com os problemas que
a censura inevitavelmente iria levantar e portanto são dados de maneira
não muito directa, é todo um clima.
O ‘Oxalá’ já é feito em
liberdade mas é uma reflexão. Aliás, o filme podia chamar-se ‘A Ressaca’
porque é a ressaca do 25 de Abril. Foi uma época em que algumas ilusões
se esbateram e o país entrou numa espécie de normalidade. Por um lado
ainda bem, mas na Esquerda ainda havia alguns resquícios de sonhos
revolucionários. É um cinema político. Mesmo o ‘Lugar do Morto’ é um
filme muito focado naquela época. Foi um período em que as coisas
mudaram, os hábitos de consumo mudaram, começam a haver muitos mais
divórcios, as famílias a desagregarem-se, as pessoas começam a ter dois
empregos.
A partir daí, e com a excepção do ‘Aqui d’El Rei!’, os
meus filmes são muito marcados pela realidade à minha volta. ‘Os
Imortais’ é uma reflexão sobre a guerra, sobre os efeitos da guerra.
Depois fiz um filme sobre a ascensão do neo-liberalismo e a corrupção, o
‘Call Girl’.
Durante o Governo de Passos Coelho e Paulo Portas,
que a seguir a Salazar foi a coisa mais terrível que se abateu sobre
Portugal, foi um ataque directo às pessoas com fins completamente
políticos e que serviu de biombo para vender o país, com privatizações
feitas à pressa e por valores absolutamente irrisórios, fiz ‘Os Gatos
não Têm Vertigens’ que é uma reflexão sobre isso. Não foi um filme
panfletário, eu não quero fazer isso, mas foi ao encontro da
sensibilidade e da preocupação das pessoas. Queria transmitir-lhes uma
mensagem de solidariedade. O filme foi bem recebido pelas pessoas,
porque trata-as bem e naquela altura as pessoas estavam a ser
mal-tratadas. Dos meus trabalhos mais recentes, o ‘Amor Impossível’ é o
que tem um lado social menos vincado.
Acho que é quase impossível um filme corresponder a 100% ao que se planeia
Quando percebeu que estava apaixonado pelo cinema e que a sua vida tinha de estar ligada a esta arte?
Relativamente
novo, direi. Entre os 18 e os 20 anos. Acho que a minha vida se decidiu
aí. Os meus pais sempre perceberam que eu tinha uma costela artística,
fantasista, criativa. Nós tínhamos de escolher no 6º ano de então se
íamos para a área de ciência ou de letras, obviamente escolhi as letras e
ou ia para professor universitário ou para advogado ou juiz. O meu pai e
o meu avô eram juízes, portanto acharam que eu devia seguir essa
carreira mas simplesmente não tinha vocação para isso. Andei três anos
em Direito e acho que ao todo fiz três cadeiras. Ia para as aulas e
levava jornais para ler por debaixo da mesa e queria que as aulas
acabassem para ir ao cinema.
Tinha muito jeito para o desenho e
cheguei a fazer capas para livros de banda desenhada mas não era o que
me interessava. Queria contar histórias. A opção era escrever ou o
cinema e o cinema foi uma novidade para mim. Quando era pequeno vi muito
poucos filmes, quando vim para Lisboa para a faculdade é que comecei
verdadeiramente a ir ao cinema.
A minha primeira atracção pelo
cinema nem foi pela realização. No caso dos livros, eu lia-os por causa
dos autores mas nos filmes via-os por causa dos actores porque
representavam um determinado tipo de carácter. Por exemplo, o James
Dean, o James Stewart, o Montgomery Clift. O facto de ser possível
contar histórias sem ser por intermédio da escrita mas directamente,
filmando-as, mostrando-as na realidade e em carne e osso, nos décores
reais, foi isso que me atraiu. Depois encontrei um grupo de colegas
muito cinéfilos e começámos todos a ver cinema. Mais tarde, tive a sorte
de ir para Paris e ficar fechado na cinemateca durante dois anos e ver
uma média de mil filmes por ano. Fiquei com essa paixão.
Uma mulher bonita não pode ser boa actriz, isso é um preconceito horrível
É muito autocrítico relativamente ao seu trabalho?
Sou.
Sou muito autocrítico na altura e também quando revejo os filmes. São
dois momentos diferentes. O momento que se segue à conclusão do filme é
mais a quente e temos presente aquilo que foram as filmagens, a
preparação. Há coisas que aprendo e digo ‘Epá isto para a próxima há
certas circunstâncias que têm de se evitar, certos riscos’. Vendo depois
é diferente. Porque é outra época, temos outra idade, outra forma de
olhar para os filmes, portanto eu procuro ser crítico mas tendo em conta
que o filme foi feito num determinado período da minha vida, da
história do cinema, de Portugal.
Custa-me muito quando há pequenas
coisas que não beneficiaram o filme e que teria sido fácil evitar. Mas
acho que não há nenhum realizador, mesmo os mais rigorosos, que fiquem
100% satisfeitos. Acho que é quase impossível um filme corresponder a
100% ao que se planeia. Às vezes saem coisas melhores do que se previu,
mas ser rigorosamente o que se planeou é impossível porque um filme é
muito caro, o dinheiro é algo muito condensado na fase da realização e
cada hora de filmagem custa uma fortuna, nos Estados Unidos então nem se
fala.
Há muitos condicionalismos, dependemos de muitas pessoas.
Nas filmagens exteriores dependemos de vários factores, como o clima,
por exemplo. Tem que haver um sentido de compromisso, soluções e planos B
para momentos em que não temos as condições ideais para filmar e
fazemos algo que não nos envergonhe nem nos desagrade.
O
filme enquanto está numa lata ou numa pen é como ‘A Bela Adormecida’,
fica à espera do beijo do príncipe e o príncipe é o público
Dos filmes que realizou até hoje, qual é o seu preferido?
Eu
fiz 11 filmes e é como se tivesse 11 filhos. Há alguns com os quais
temos mais afinidades, mas gosto de todos com os defeitos que têm.
Muitas pessoas gostam mais do meu primeiro filme, o ‘Perdido Por Cem’,
eu gosto mais do segundo. O ‘Oxalá’ é um dos filmes de que mais gosto. O
‘Lugar do Morto’ foi um caso de popularidade incrível. Gosto muito do
‘Aqui d’El Rei!’ porque é o primeiro filme em que amadureço e foi feito
com condições profissionais, com meios e actores fora de série. Foi um
desafio e um filme muito bem conseguido. Gosto muito d’ ‘Os Imortais’
também. Eu estou a reparar que é praticamente um filme em dois. ‘Perdido
Por Cem’ e ‘Oxalá’, prefiro o ‘Oxalá’. ‘Lugar do Morto’ e ‘Aqui d’El
Rei’, gosto mais do segundo. ‘Jaime’ e ‘Os Imortais’, gosto mais d’ ‘Os
Imortais’. ‘Call Girl’ e ‘A Bela e o Paparazzo’, gosto mais do último.
Acho que é dos meus melhores filmes. Foi um pouco desconsiderado porque é
uma comédia que é um género desprezado. Há dois preconceitos no cinema
português que me fazem confusão. Um é relativo à comédia e o outro
contra as mulheres bonitas e sexys. Uma mulher bonita não pode ser boa
actriz, isso é um preconceito horrível. Fiz cinco filmes com o Nicolau
Breyner que era um actor muito popular, mas considerado um actor cómico.
Quis provar que ele era um actor que podia fazer tudo. Com a Soraia
Chaves fiz três filmes. As pessoas consideram-na bonita de mais para ser
actriz.
Se tivesse de escolher, acho que escolho o ‘Oxalá’, ‘Os
Imortais’, ‘Os Gatos não Têm Vertigens’ e provavelmente o ‘Parque
Mayer’. Mas este ainda não posso saber. As pessoas perguntam-me se estou
contente e eu digo que estou, mas só sei verdadeiramente depois do
filme ser projectado e depois de as pessoas verem. Sempre defendi que o
público faz parte da banda sonora e um filme só ganha vida depois de ser
projectado. O filme enquanto está numa lata ou numa pen é como ‘A Bela
Adormecida’, fica à espera do beijo do príncipe e o príncipe é o
público. Normalmente, depois da estreia vou sempre a duas ou três
sessões, de forma anónima, entro no escuro. Para ver se as pessoas se
riem no momento certo, se fazem silêncio nos momentos mais emotivos e
nós sentimos a sala. Quando há coisas que se repetem, percebemos se
temos o público na mão, se o conquistámos. Há uma altura em que eu
próprio consigo ver o filme como se fosse um espectador.
Eu costumo dizer que a história do cinema português é a história dos filmes que não se fizeram
Há algum tema, algum projeto antigo que ainda não tenha concretizado?
Há
muitos, nomeadamente sobre a guerra colonial. Há outro projecto que no
fundo acabou por ser transformado neste do ‘Parque Mayer’, mas não é
exactamente a mesma coisa. É um filme sobre os anos duros do fascismo e
aquela fase da guerra. Depois há uma adaptação de uma história da vida
do Stendhal que quero fazer muito, há um projecto a partir de um romance
que se passa durante a guerra civil espanhola, outro sobre as invasões
napoleónicas.
Há muitos projectos que gostava de concretizar e
depois há outros que vão surgindo. Quando foi a época do Passos Coelho, o
período mais duro da democracia portuguesa, surgiram-me várias ideias
para filmes como ‘Os Gatos não Têm Vertigens’. Hoje em dia se calhar não
faria aquele filme, os tempos são outros. É sobretudo a percepção do
futuro, não tanto em termos de Portugal, mas em termos do estado do
mundo. Fenómenos como o Trump, o Bolsonaro, os ditadores dos países mais
orientais, a China, a Rússia, o Kim Jong-un, o Bashar al-Assad. As
ameaças ao planeta, tenho uma ideia para fazer um filme sobre isso.
Tenho já alguns scripts desenvolvidos. Há ainda uma ou outra adaptação
de romances portugueses que gostava de fazer. Não vou fazer nem um
décimo dos projectos que tenho, mas são os que surgem na altura e que me
parecem ter mais viabilidade.
O cinema português é uma verdadeira tragédia. Não há como disfarçar isto
Como analisa o panorama do cinema em Portugal atualmente?
Ui,
meu Deus! Não é actualmente, o cinema português não existe, nunca
existiu! Costumo dizer que a história do cinema português é a história
dos filmes que não se fizeram. Durante quase 50 anos por causa do
fascismo, depois do 25 de Abril porque foi o único campo onde a
democracia não chegou. Manteve-se o paradigma do António Ferro e depois
do Marcello Caetano de que o Estado obriga a investir no cinema. Mas
depois chama a si a decisão de quem pode filmar ou não. Isto é uma coisa
própria de ditadura, não de uma democracia. Ninguém imaginaria que o
Governo, o ministro da Cultura, decidisse todos os anos quem é que
escreve ou quem é que toca. Este ano o júri que eles escolhem não gosta
do Lobo Antunes ou não gosta da Lídia Jorge, portanto não os deixam
escrever. É evidente que o cinema é outra coisa porque precisa de
dinheiro, mas ninguém imagina que o Estado chame a si a decisão final
sobre os destinos do cinema, dos cineastas e daquilo que o público tem
direito a ver.
Nós somos, provavelmente, a cinematografia mais
pobre do mundo, seguramente a mais pobre da Europa, a que tem menos
espectadores para os filmes portugueses, dez vezes menos, somos o único
país em que o Estado não mete um tostão no cinema nem na televisão.
Nunca ganhámos um grande prémio em Cannes, Berlim ou Veneza, quando a
Mauritânia e o Camboja já ganharam, por exemplo. Nunca tivemos sequer
uma nomeação para um Óscar.
Os nossos filmes não se vendem e não
têm receitas no estrangeiro, portanto o cinema português é uma
verdadeira tragédia. Não há como disfarçar isto. Apesar de alguma
crítica querer lançar nuvens para parecer que somos muito prestigiados
lá fora, o que desde logo é uma coisa extraordinária, então e cá dentro?
Cá dentro os primeiros espectadores deviam ser os nossos, como acontece
em todo o lado. E depois isso dar-nos-ia uma projecção no exterior, que
é o que todos aspiram. Mas é uma mentira, que os números comprovam.
Espero que esta ministra abra os olhos e consiga fazer qualquer coisa ou
pelo menos lançar as bases para o próximo Governo fazer qualquer coisa
porque isto é uma tragédia.
Não faltam ideias para futuros filmes ao realizador© El Corte Inglés
Ainda
assim, nos últimos anos tem surgido uma nova vaga de realizadores que
têm tido sucesso, como, por exemplo, o João Salaviza e a Leonor Teles.
Considera que o futuro da realização em Portugal está em boas mãos?
Muito
mal, com muita apreensão. Não gosto de falar de colegas em particular,
mas há algo que é gravíssimo. Esta nova geração alheou-se do público. O
público é visto como uma espécie de inimigo. Criou-se esta dicotomia
completamente bárbara entre cinema de autor e cinema comercial, que é
algo completamente arbitrário e absurdo. Não faz sentido.
Acho que
é uma tendência das novas gerações para fazer um cinema muito autista,
com preocupações estéticas e com desprezo pela narrativa e os resultados
estão à vista. Há filmes, este ano ou no ano passado, que fizeram 44
espectadores no país inteiro. O público não será tudo, não é o único
critério mas também não ter público não é certamente critério. Acho que
não há nem um quadro legal nem mentalidade para mudar as coisas. Tenho
uma grande experiência de ter tido alunos cheios de talento e que
desesperam porque não conseguem filmar. Há muito pouco dinheiro.
Qual
a importância de cursos como este para aproximar as pessoas do cinema,
para o promover, numa altura em que há cada vez menos pessoas a irem às
salas de cinema?
Dei aulas durante muitos anos em vários
sítios e workshops também, e esta é a experiência mais gratificante que
tive como professor. Muitas vezes nas escolas há alunos que estão lá e
podiam estar noutra coisa, a atenção não é a mesma. Aqui, de uma forma
geral, tenho tido alunos com um interesse enorme em aprender e é um
desafio porque tenho de explicar uma arte que tem mais de um século de
história, com os milhões de filmes que se fizeram, com as variedades de
cinematografias, de géneros, de autores, de épocas, e tenho de tentar ir
ao essencial.
No fundo, tenho 24 horas para dar o curso e não é
só conversa. Tenho de mostrar muitos excertos de filmes, mostrar
fotografias, documentos e preciso de ter um grande poder de síntese nos
grandes períodos da história do cinema e explicar porque é que
aconteceram, porque é que o cinema evoluiu desta forma, porque é que o
cinema americano atingiu a hegemonia que tem, porque é que houve
períodos em que a Europa teve um grande cinema e outros em que não teve,
porque é que os géneros se impuseram a partir de dada altura, a própria
evolução das tecnologias e o efeito que isso teve. Dar uma ideia às
pessoas de como o cinema evoluiu e porque evoluiu. E na última aula
chamo sempre a atenção para os grandes génios, os grandes mestres do
cinema.
A minha ideia é que os alunos vejam outros filmes e que o
façam com outros olhos e que isto seja apenas uma espécie de trailer,
que abra o apetite às pessoas para irem mais longe. Eu adoro ensinar,
adoro aprender quando as pessoas têm algo para me ensinar. Acho que faz
parte da minha obrigação transmitir aos outros o que aprendi.
O
programa do curso percorre as diversas décadas, os movimentos
importantes, os progressos técnicos e realça a separação entre o cinema
americano e o europeu. As diferenças entre o cinema americano e o
europeu têm-se acentuado cada vez mais?
A história do
cinema é a história da relação entre o cinema europeu e o cinema
americano. Genericamente europeu porque houve períodos em que foi o
cinema francês, o cinema alemão, o russo ou o italiano. Mas há uma forma
europeia de olhar para o cinema que é diferente da americana. Mas a
história do cinema, nos seus períodos mais ricos, foi precisamente
através de uma espécie de fusão entre os dois. Houve épocas em que o
cinema americano marcou muito o cinema europeu, outras em que o cinema
europeu marcou o americano. A geração dos anos 70 é completamente
marcada pelo cinema europeu e pelo japonês também.
Acho que está
cada vez mais acentuado na medida em que, do ponto de vista do mercado,
os americanos dominam completamente. Esse alheamento que o cinema
europeu em geral, e o cinema português em particular, teve relativamente
ao público foi fatal. Passaram a querer combater o cinema americano
através da guerrilha, em vez de ser no mesmo terreno, e deixaram o
cinema para os tarefeiros e para um cinema que têm um potencial muito
maior de falar aos espectadores que é o cinema americano.
Há muitos produtores europeus que não têm alma, os grandes autores
europeus desapareceram e há cada vez mais uma hegemonia do cinema
americano que tem efeitos negativos quer do ponto de vista comercial,
quer do ponto de vista criativo. Mas também porque vivemos de sonhos
importados. O cinema produz sonhos, faz as pessoas sonhar e nós estamos a
pensar da forma americana, o que não é propriamente muito bom. Em
Portugal, 90% ou mais dos filmes que estão no cinema são americanos. As
pessoas quase confundem cinema com o cinema americano. É um pleonasmo
para os jovens.