Faleceu o último dos mestres do cinema italiano no século XX. Deixa-nos filmes inesquecíveis, como O conformista1900, O último imperador ou O último tango em Paris.
O realizador Bernardo Bertolucci foi o presidente do Júri do 70.º Festival de Cinema de Veneza, realizado entre 28 de Agosto e 7 de Setembro de 2013. Foto de Arquivo.
O realizador Bernardo Bertolucci foi o presidente do Júri do 70.º Festival de Cinema de Veneza, realizado entre 28 de Agosto e 7 de Setembro de 2013. Foto de Arquivo. CréditosEPA/CLAUDIO ONORATI / LUSA
Bernardo Bertolucci faleceu hoje na sua casa de Roma, aos 77 anos. Encontrava-se doente «há muitos anos», referiu a agência italiana ANSA, em notícia distribuída esta manhã.
Poeta, documentarista, produtor, grande autor do cinema italiano, tornou-se mundialmente conhecido pela realização de obras-primas como O conformista1900, O último tango em Paris ou O último imperador, filme que recebe vários óscares e o consagra internacionalmente. Em 2007 foi-lhe conferido o Leão de Ouro de carreira cinematográfica, no Festival de Veneza, e em 2011 recebeu a Palma de Ouro honorária no Festival de Cannes.
Bernardo Bertolucci nasceu em Parma, em 16 de Março de 1941. O seu pai, o poeta Attilio Bertolluci, era amigo de Pier Paolo Pasolini, Alberto Moravia e Elsa Morante. Dois familiares de Bernardo estiveram ligados ao cinema: o irmão Giuseppe foi realizador e autor teatral e o primo Giovanni produtor cinematográfico.
Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini
Em casa respirava-se literatura e cinema, ambiente ao qual não foi estranha a sua precocidade artística. Inicialmente, o jovem Bernardo parece seguir o caminho paterno, interessando-se pela poesia e inscrevendo-se no curso de licenciatura em Humanidades da Universidade de Roma La Sapienza. Aos 20 anos, encorajado pelo pai, virá a publicar um livro de poesia, In cerca del mistero (1962), que recebeu o Prémio Viareggio desse ano, mas foi o cinema a sua forma privilegiada de expressão artística.
Começou a realizar curtas-metragens aos 15 anos e aos 19 estreou-se no cinema, como assistente de Pasolini no filme Accatone (1960-61). A amizade com o realizador será decisiva para a sua carreira e a sua estreia na realização será em 1962, num policial com argumento e cenário de Pier Paolo Pasolini, La Commare Secca.
Bernardo Bertolucci e Vittorio Storaro durante as filmagens de «O Conformista» (1970). Créditos
Antes da Revolução (Prima della rivoluzione) estreia em 1964 e é o seu primeiro filme galardoado: recebe, no Festival de Cannes do mesmo ano, o Prix de la Nouvelle Critique e o Prix de l'Association Internationale de la Jeunesse (o autor tem então 22 anos).
Em 1968 Bertolucci assina, com Dario Argento e Sérgio Leone, o argumento de Era uma Vez no Oeste, uma das obras-primas do chamado Western Spaghetti.
Obteve notoriedade internacional com O conformista, de 1970, a sua primeira encomenda de uma das majors do cinema, a Paramount Pictures. No mesmo ano o filme recebe o Prémio Interfilm e o Prémio Especial dos jornalistas do Festival de Berlim, bem como o Sutherland Trophy do British Film Institute. Em 1971 recebeu o David di Donatello da Academia do Cinema Italiano e o Grande Prix do Sindicato Belga da Crítica Cinematográfica, ambos para o melhor filme. Em 1972 foi a vez do National Society of Film Critics Award, para a melhor direcção e melhor fotografia.
É também em 1972 que chega o seu primeiro clamoroso sucesso, O último tango em Paris, com Marlon Brando e Maria Schneider nos principais papéis. O drama erótico despertou «aplausos intermináveis do público», segundo a ANSA, e a fúria dos censores. Bertolucci foi condenado a quatro meses de prisão por obscenidade mas, refere a agência italiana, «a História do Cinema mudou para sempre». O filme recebeu o Nastro d’argento do Sindicato Nacional dos Jornalistas Cinematográficos Italianos e rendeu outros prémios aos seus protagonistas.

Um enorme fresco político e social

Em 1976 chegou ao cinema o épico 1900 (Novecento), um enorme fresco que é visto como uma «metáfora de meio século» da história social italiana, entre o primeiro dia do século XX e o dia 25 de Abril de 1945, para os italianos o dia da Libertação italiana do nazi-fascismo.
Rodado nas planícies da Emilia-Romagna (incluindo Parma, a terra natal do realizador), região por excelência do latifúndio italiano, a história desenvolve-se e os protagonistas movimentam-se sobre o pano de fundo das contradições de uma comunidade rural formada por grandes proprietários e proletários rurais, e dos confrontos que grassaram nos campos italianos nos primeiros 25 anos do século.
Não será por acaso que, em 2016, no 40.º aniversário da apresentação do filme em Cannes, o realizador tenha declarado, em entrevista à jornalista Arianna Finos, que o filme «nasceu para homenagear a cultura camponesa», acrescentando: «queria fazer um filme espectacular sobre os camponeses com os quais cresci: em Parma havia a casa do avô, casa burguesa, e a casa dos camponeses, casa rústica, separadas por 50 metros de distância, e aquele sentimento que experimentei quando via os camponeses comer, aquela sensação de dívida para com eles, levaram-me a fazer o filme» (La Reppublica, 7 de Junho de 2016).
A tela inicial do filme principia com um detalhe do conhecido quadro O quarto estado (Il quarto stato), de Giuseppe Pellizza da Volpedo (1850-1893). A obra, concluída em 1901, ano em que se inicia a narrativa de 1900, descreve um grupo de trabalhadores marchando em protesto. O avanço do desfile não é violento, mas lento e seguro, para sugerir uma sensação de inevitável vitória.
No filme retrata-se a grande esperança na Reforma Agrária que a Revolução Soviética despertou no campo italiano e de como essa esperança foi liquidada pela chegada dos esquadrões fascistas de combate, destruindo os organismos camponeses e liquidando os seus dirigentes, instaurando um regime de terror e de opressão que apenas veio a ser contestado com o estabelecimento, durante a Segunda Guerra Mundial, de destacamentos armados da resistência (os partigiani), a quem os campos da Reggio Emilia forneceram numerosos combatentes.
A primeira parte de 1900 (o filme teve duas partes na sua versão original) situa-se nos anos 20 e termina com com o funeral dos camponeses mortos num incêndio pelos fascistas da Casa do Povo, e a segunda, passada no final da Segunda Guerra Mundial, termina com o julgamento do patrão pelos camponeses e deu origem a um episódio picaresco com a direcção do Partido Comunista Italiano (PCI), com o qual Bertolucci colaborou em vários projectos. É o próprio realizador que nos conta a cena, na entrevista citada: «No final do primeiro acto […] Pajetta1 estava muito contente. No fim do segundo acto, ao invés, fez-se um silêncio gelado. Disse-me: “É melhor não se fazer o debate, o filme não me agradou». Não sei como sobrevivi. Ele não tinha apreciado a cena do processo do patrão, para a qual nos tínhamos inspirado nas fotos dos camponeses chineses de Mao [após a vitória da Revolução Chinesa, em 1949]. O PCI ficou aterrorizado, tanto mais que se caminhava para o compromisso histórico».
Bertolucci reuniu, para 1900, «um cast monstruoso» de actores italianos e internacionais. Os dois papéis principais, o do latifundiário Alfredo Berlinghieri e do camponês Olmo Dalcò, amigos na infância e inimigos na vida adulta, foram entregues, respectivamente, a Roberto de Niro e  a um jovem Gérard Depardieu (muitas crianças receberam o nome de Olmo, na Itália que acolheu o filme), e outros papéis foram atribuídos a Burt Lancaster, Donald Sutherland, Dominique Sanda, Alida Valli, Sterling Hayden, Stefania Sandrelli, e a um numeroso leque de actores, entre os quais se encontrava o português Paulo Branco, antes de se tornar o conhecido e importante produtor de cinema que é hoje.
Com cinco horas na versão original, 1900 foi «uma grande epopeia do seu tempo». Apesar do seu carácter reconhecidamente ideológico, «o excelente plantel de actores, o argumento, a fotografia de Vittorio Storaro e a banda sonora de Ennio Morricone convertem esta película [...] numa obra de arte cinematográfica», afirmou-se.
Nos cinemas de Itália foi exibido nas duas partes inicialmente previstas, Novecento Atto I e Novecento Atto II, e teve bastante êxito, mas noutros países, como os EUA, a película foi reduzida a quatro horas e teve menos sucesso público, segundo algumas fontes, «pela sua matriz ideológica e pela presença das bandeiras vermelhas».
Na referida entrevista, Bertolucci comenta o facto com humor: «sabia que havia três grandes companhias americanas que poderiam distribuir o filme e disse para mim próprio, vou mandar-lhes um filme cheio de bandeiras vermelhas, mas acabei punido porque o filme teve uma vida atribulada na América».
A recepção da crítica do seu tempo foi fria, sobretudo entre «sectores especializados». O único galardão que recebeu foi o Prémio Bodil, da Associação de Críticos de Cinema de Copenhaga, mas hoje 1900 é reconhecido como um verdadeiro filme de culto, único no género.

O último imperador e a consagração geral

O último imperador (1987), classificado como «colossal» e a «ponta de diamante da sua carreira», marcou a consagração completa de Bernardo Bertolucci e foi recebido entusiasticamente pela crítica e pelo público.
No argumento o realizador regressa à China que tanto o fascinava para contar a história de Pu Yi (1906-1967), o último imperador da dinastia Quing, coroado em 1908, quando era ainda uma criança. Pu Yi torna-se colaborador dos japoneses a partir dos anos 30 e será imperador do estado fantoche da Manchúria. É preso pelos soviéticos no final da Segunda Guerra Mundial e entregue às autoridades chinesas para ser reeducado num campo para criminosos de guerra japoneses, de onde foi libertado ao fim de dez anos, convertido ao comunismo.
De 1964 até à sua morte trabalhou como editor num departamento literário governamental, auferindo um modesto salário. É nos anos 60 que, encorajado por Mao Tse-Tung e Chu en-lai, e com o apoio do governo chinês, que escreve a sua autobiografia, A primeira metade da minha vida, que em línguas estrangeiras foi intitulada De imperador a cidadão.
Bertolucci apresentou o projecto do filme às autoridades chinesas e recebeu destas «total liberdade de filmagem na Cidade Proibida, que até então jamais fora aberta para uso num filme ocidental», aproveitando essa possibilidade para criar um inesquecível ambiente de esplendor visual.
Os galardões ao filme não se fizeram esperar. Ainda em 1987 recebeu o New York Film Critics Circle Award para a melhor fotografia e o Los Angeles Film Ctitics Association Award para a melhor fotografia e para a melhor banda sonora original.
Em 1988 o filme arrebatou a Academia e Hollywood e os festivais internacionais, recolhendo numerosos prémios. O último imperador recebeu nove óscares, entre os quais o de melhor filme e melhor realizador, quatro Globos de Ouro, entre eles o de melhor realizador, o Prémio Especial do Júri do European Film Award, quatro Nastro d’argento, oito David di Donatello, vários prémios para melhor filme estrangeiro, tais como o César, o Nikkan Sports Film Award, o Hochi Film Award e o Sant Jordi Award, o Ciak d'oro para o melhor filme e os prémios para a melhor montagem (American Cinema Editors), melhor cinematografia (British Society of Cinematographers), melhor fotografia (Boston Society of Film Critics Award) e melhor casting (Casting Society of America). Nesse ano Bernardo Bertolucci foi distinguido pela Directors Guild of America com o prestigiado DGA Award.
Em 1989 conquistou três Bafta, um Grammy, o prémio para o melhor filme estrangeiro atribuído pelas Academia Japonesa, Guild of German Art House Cinemas, Joseph Plateau Award e Kinema Junpo Award. No mesmo ano Bertolucci recebeu o Prémio para a Liberdade de Expressão, do National Board Review Award.
Tinha 47 anos quando inscreveu o seu nome no panteão do cinema.
  • 1. Giancarlo Pajetta, dirigente histórico do PCI e destacado partidário da corrente eurocomunista.

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