segunda-feira, 22 de março de 2021

ESTÉTICA, de G. LUKÁCS

 “Do ponto de vista moral eu considero a época inteira condenável; e a arte boa somente quando se contrapõe a este decurso das coisas. É aqui que na óptica de minha evolução, adquire significado o realismo russo. Na verdade, foram Tolstoi e Dostoievski que nos fizeram ver como na literatura se pode condenar em bloco todo um sistema. Para eles, a questão não é - como em alguns de seus críticos franceses - que o capitalismo tenha este ou aquele defeito, mas a opinião de Tolstoi e Dostoievski é que o sistema inteiro, assim como é, é desumano” (Lukács).

sexta-feira, 19 de março de 2021

ÓDIO À POESIA

 

Bem-vindos os poetas


Um anúncio publicitário, nos jornais, do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG), fornece matéria para a interminável discussão sobre os paradoxos da poesia: porque é que ela é ao mesmo tempo inútil e tão persistente? Que mistério se esconde no facto de os escritores de poemas serem muito mais numerosos do que os leitores de poesia? Não parece plausível que um estabelecimento de ensino superior de Economia se intrometa (ainda por cima, através de uma mensagem publicitária) nestes mistérios de uma anacrónica actividade do espírito, mas foi o que aconteceu na semana passada.

O anúncio, tentando construir uma imagem da instituição capaz de destruir estereótipos e alargar o universo dos potenciais clientes-alunos, continha esta frase de exortação (em inglês, com tradução em letras minúsculas): “Poets are welcome”. É uma expressão de indulgência e de hospitalidade, como as que se têm em relação aos estrangeiros. Os poetas são aqui evocados como “estrangeiros”. E, vindos de um país distante, abrem e alargam as fronteiras do Instituto. É uma visão ingénua, mas conforme às ideias vagas que circulam sobre poetas e poesia.

Os autores deste anúncio (criado certamente por uma agência publicitária, mas submetido à aprovação das instâncias directoras do ISEG) teriam sido menos ingénuos, mais convincentes e até irónicos se tivessem decidido citar o poeta americano Wallace Stevens: “Money is a kind of poetry”. Teriam assim encontrado maneira de poetizar a economia, com a caução de um grande poeta do século XX. Ou então, se não quisessem sair dos seus territórios disciplinares, poderiam ter recorrido às páginas de O Capital, onde Marx explica o que é a mercadoria e o seu carácter de fetiche. São páginas de grande densidade poética.

O anúncio do ISEG pode ser lido como um convite à deslocação do dinheiro (enquanto medium da economia) para os lados da poesia. Não é uma tarefa impossível. Muito mais difícil é fazer o contrário: converter a poesia em dinheiro e fazê-la sair da sua dimensão “heterológica”, exterior a uma economia da utilidade.

A razão capitalista conseguiu converter tudo ao mercado (imagens, sons, romances, teorias, etc.), excepto a poesia. Não existe nem nunca existiu mercado para a poesia. O grande poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger escreveu em tempos um artigo em que desenvolvia a ideia de que a poesia é o único produto da actividade intelectual dos homens que está imunizado contra a exploração comercial. E a sua conclusão era esta: “Ser invendável é um privilégio”.

O grande paradoxo, escreveu ele, é que essa actividade que não é rentável e com um público muito minoritário tem ao seu serviço um sumptuoso aparelho (composto por academias, fundações, festivais, institutos culturais) para acolher acontecimentos relacionados com a poesia e para os quais os poetas são chamados a fazer leituras públicas ou a falar da sua obra poética para um público que não os lê. E, no seu estilo iónico e divertido, Enzensberger formula uma lei a que ele chama precisamente “constante de Enzensberger”. Segundo essa lei de validade universal, isto é, independente das modas, dos tempos, e das diferenças entre as comunidades linguísticas, “o número de leitores que lêem um bom livro de poesia acabado de publicar é mais ou menos 1354”. Seja na Islândia, que tem 250 mil habitantes, seja nos Estados Unidos, que tem 250 milhões.

Esta declaração de amor aos poetas (e, presume-se, também à poesia), vinda do ISEG e publicitada nos jornais, tem atrás de si uma longa história em que um dos capítulos mais importantes é o ódio pela poesia (sobre este tema, há um livro já traduzido em Portugal, do poeta e ficcionista americano Ben Lerner, chamado Ódio à Poesia).

Um poema de Marianne Moore, chamado Poetry, é uma via de entrada para este capítulo inconveniente, que serviria para sabotar o belo anúncio do ISEG. É assim o primeiro verso desde poema: “I, too, dislike it”. Poesia e ódio pela poesia são, desde a modernidade, consubstanciais, inextricáveis. A excepção é talvez a União Soviética, sob Estaline, se acreditarmos no testemunho da mulher do poeta Ossip Mandelstam, que teria ouvido do marido estas palavras: “Não te podes queixar, em mais nenhum sítio há tanto respeito pela poesia, até se mata por causa dela”.