sábado, 24 de dezembro de 2016


INTERMEZZO
Hoje não posso ver ninguém:
sofro pela Humanidade.
Não é por ti.
Nem por ti.
Nem por ti.
Nem por ninguém.
É por alguém.
Alguém que não é ninguém
mas que é toda a Humanidade.
António Gedeão

domingo, 18 de dezembro de 2016


Homem comum – Ferreira Gullar



Homem comum
Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.

Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas
1963
Via: voar fora da asa http://bit.ly/2hiKXC1
Os Lusíadas: 1ª Edição de 1572 Digitalizada !!!
Para quem possa desejar ter em casa, guardada no seu computador, a primeira edição de 1572 de Os Lusíadas.
http://http://objdigital.bn.br/…/div_obras…/or633602/or633602.html…
A misericórdia dos mercados
Nós vivemos da misericórdia dos mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta.
Luís Filipe Castro Mendes

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Uma Sepultura em Londres – Jorge de Sena

Uma Sepultura em Londres
No frio e no nevoeiro de Londres,
numa daquelas casas que são todas iguais,
debruça-se sobre todas as dores do mundo,
desde que no mundo houve escravos.
As dores são iguais como aquelas casas
modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping
De Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis, dos
civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e as perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. – Eu quero ver publicadas
as suas obras completas – diz-lhe o discípulo.
– Também eu – responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura – Mas é preciso
escrevê-las primeiro -.
Como têm sido escritas e rescritas! Como
não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite – creiam – a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu – ó Spártacus –
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião do amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo.
Que mais precisamos de saber?
1962
Em seu “Discurso Diante do Túmulo de Marx”, Engels escrevia que “o maior pensador denossos dias parou de pensar”. Poema de Peregrinatio ad loca infecta (Poesia III), “Uma Sepultura em Londres” vem acompanhado por uma nota do autor: “Em 1969, na 1a. edição desta Peregrinatio, não podia anotar-se, para notícia dos distraídos, que esta sepultura era obviamente a de Karl Marx”. Hoje, não havendo qualquer dúvida sobre o homenageado, o poema-lápide dedicado a Marx permanece como monumento da presença de seu pensamento na poesia seniana e do esforço de Sena em manter sempre vivo o diálogo com as testemunhas da História, para que, mesmo que na mente e na obra de outros, não parem de pensar nunca.
Via: voar fora da asa http://bit.ly/2gqqLxh
(do livro: O Amor Natural. autor: Carlos Drummond de Andrade. editora: Record.)
 
 
AMOR — POIS QUE É
PALAVRA ESSENCIAL
 
Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
 
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
 
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
 
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?
 
Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
 
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.
 
E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.
 
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.
 
Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
 
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
 
 
A MOÇA MOSTRAVA A COXA
 
                                          Visu, colloquio
                                          Contactu, basio
                                              Frui virgo dederat;
                                                  Sed aberat
                                          Linea posterior
                                               Et melior
                                                    Amori.
                                                               (Carmina Burana)
 
 
A moça mostrava a coxa,
a moça mostrava a nádega,
só não me mostrava aquilo
— concha, berilo, esmeralda —
que se entreabre, quatrifólio,
e encerra o gozo mais lauto,
aquela zona hiperbórea, 
misto de mel e de asfalto,
porta hermética nos gonzos
de zonzos sentidos presos,
ara sem sangue de ofícios,
a moça não me mostrava.
E torturando-me, e virgem
no desvairado recato
que sucedia de chofre
à visão dos seios claros,
sua pulcra rosa preta
como que se enovelava,
crespa, intata, inacessível,
abre-que-fecha-que-foge,
e a fêmea, rindo, negava
o que eu tanto lhe pedia,
o que devia ser dado
e mais que dado, comido.
Ai, que a moça me matava
tornando-me assim a vida
esperança consumida
no que, sombrio, faiscava.
Roçava-lhe a perna. Os dedos
descobriam-lhe segredos
lentos, curvos, animais,
porém o máximo arcano,
o todo esquivo, noturno,
a tríplice chave de urna,
essa a louca sonegava,
não me daria nem nada.
Antes nunca me acenasse.
Viver não tinha propósito,
andar perdera o sentido,
o tempo não desatava
nem vinha a morte render-me
ao luzir da estrela-d’alva,
que nessa hora já primeira,
violento, subia o enjôo
de fera presa no Zôo.
Como lhe sabia a pele,
em seu côncavo e convexo,
em seu poro, em seu dourado
pêlo de ventre! mas sexo 
era segredo de Estado.
Como a carne lhe sabia
a campo frio, orvalhado,
onde uma cobra desperta
vai traçando seu desenho
num frêmito, lado a lado!
Mas que perfume teria
a gruta invisa? que visgo,
que estreitura, que doçume,
que linha prístina, pura,
me chamava, me fugia?
Tudo a bela me ofertava,
e que eu beijasse ou mordesse,
fizesse sangue: fazia.
Mas seu púbis recusava.
Na noite acesa, no dia,
sua coxa se cerrava.
Na praia, na ventania,
quanto mais eu insistia,
sua coxa se apertava.
Na mais erma hospedaria
fechada por dentro a aldrava,
sua coxa se selava,
se encerrava, se salvava,
e quem disse que eu podia
fazer dela minha escrava?
De tanto esperar, porfia
sem vislumbre de vitória,
já seu corpo se delia,
já se empana sua glória,
já sou diverso daquele
que por dentro se rasgava,
e não sei agora ao certo
se minha sede mais brava
era nela que pousava.
Outras fontes, outras fomes,
outros flancos: vasto mundo,
e o esquecimento no fundo.
Talvez que a moça hoje em dia…
Talvez. O certo é que nunca.
E se tanto se furtara
com tais fugas e arabescos 
e tão surda teimosia,
por que hoje se abriria?
Por que viria ofertar-me
quando a noite já vai fria,
sua nívea rosa preta
nunca por mim visitada,
inacessível naveta?
Ou nem teria naveta…
 
 
EM TEU CRESPO JARDIM,
ANÊMONAS CASTANHAS
 
Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas
detêm a mão ansiosa: Devagar.
Cada pétala ou sépala seja lentamente
acariciada, céu; e a vista pouse,
beijo abstrato, antes do beijo ritual,
na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.
 
 
A BUNDA, QUE ENGRAÇADA
 
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
 
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora — murmura a bunda — esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
 
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
 
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita. 
 
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
 
A bunda é a bunda,
redunda.
 
 
O CHÃO É CAMA
 
O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.
 
E para repousar do amor, vamos à cama.
 
 
A LÍNGUA LAMBE
 
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
 
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
 
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
 
 
MIMOSA BOCA ERRANTE
 
Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delícias 
que fruto e boca se permitem, dádiva.
 
Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereces
a seu volume e jato apaixonados,
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?
 
Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a líquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual se fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.
 
Já sei a eternidade: é puro orgasmo.
 
 
BUNDAMEL BUNDALIS
BUNDACOR BUNDAMOR
 
Bundamel bundalis bundacor bundamor
bundalei bundalor bundanil bundapão
bunda de mil versões, pluribunda unibunda
                      bunda em flor, bunda em al
                      bunda lunar e sol
                      bundarrabil
 
Bunda maga e plural, bunda além do irreal
arquibunda selada em pauta de hermetismo
                        opalescente bun
                        incandescente bun
meigo favo escondido em tufos tenebrosos
a que não chega o enxofre da lascívia
e onde
a global palidez de zonas hiperbóreas
concentra a música incessante
do girabundo cósmico.
 
Bundaril bundilim bunda mais do que bunda
bunda mutante/renovante
que ao número acrescenta uma nova harmonia.
Vai seguindo e cantando e envolvendo de espasmo
o arco de triunfo, a ponte de suspiros
a torre de suicídio, a morte do Arpoador
                  bunditálix, bundífoda
bundamor bundamor bundamor bundamor.
 
 
QUANDO DESEJOS OUTROS É QUE FALAM
 
Quando desejos outros é que falam
e o rigor do apetite mais se aguça,
despetalam-se as pétalas do ânus
à lenta introdução do membro longo.
Ele avança, recua, e a via estreita
vai transformando em dúlcida paragem.
 
Mulher, dupla mulher, há no teu âmago
ocultas melodias ovidianas.
 
 
A CARNE É TRISTE DEPOIS DA FELAÇÃO
 
A carne é triste depois da felação.
Depois do sessenta-e-nove a carne é triste.
É areia, o prazer? Não há mais nada
após esse tremor? Só esperar
outra convulsão, outro prazer
tão fundo na aparência mas tão raso
na eletricidade do minuto?
Já se dilui o orgasmo na lembrança
e gosma
escorre lentamente de tua vida.
 
 
A OUTRA PORTA DO PRAZER
 
A outra porta do prazer,
porta a que se bate suavemente,
seu convite é um prazer ferido a fogo
e, com isso, muito mais prazer.
 
Amor não é completo se não sabe
coisas que só amor pode inventar.
Procura o estreito átrio do cubículo
aonde não chega a luz, e chega o ardor
de insofrida, mordente
fome de conhecimento pelo gozo.
 
 
ESTA FACA
 
“Esta faca
foi roubada no Savóia”
“Esta colher
foi roubada no Savóia”
“Este garfo…”
 
Nada foi roubado no Savóia.
Nem tua virgindade: restou quase perfeita
entre manchas de vinho (era vinho?) na toalha,
talvez no chão, talvez no teu vestido.
 
O reservado de paredes finas
forradas de ouvidos
e de línguas
era antes prisão que mal cabia
um desejo, dois corpos.
 
O amor falava baixo. Os gestos
falavam baixo. Falavam baixíssimo
os copos, os talheres. Tua pele
entre cristais luzia branca.
 
A penugem rala
na gruta rósea 
era quase silêncio.
Saíamos alucinados.
 
No Savóia nada foi roubado.
 
 
NO PEQUENO MUSEU SENTIMENTAL
 
No pequeno museu sentimental
os fios de cabelos religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.
 
Apalpo, acaricio a flora negra,
e negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.
 
Os movimentos vivos no pretérito
enroscavam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.
 
Vou beijando a memória desses beijos.
 
 
O QUE O BAIRRO PEIXOTO
 
O que o Bairro Peixoto
sabe de nós, e esqueceu!
 
Rua Anita Garibaldi
e Rua Siqueira Campos.
(Francisco Braga,
Décio Vilares
nos espiando,
fingem que não?)
 
O calçadão na penumbra
andança que vai e volta 
voltivai
a derivar para o túnel
em busca do hímen?
Volta:
banco de praça. Bambus.
Bambuzal de brisa em ais.
 
O bardo e a garota amavam-se
nas guerras da Dependência.
Seria brinco de amor
ou era somente brinco.
 
5 de Julho (fronteira
do reino escuro)
à face
de casas desprevinidas
jogávamos nos jardins
e nas caixas de correio
volumes indesculpáveis
de alheias dedicatórias
pedacinhos.
 
Se salta o cachorro? Credo.
Saltam quinhentos mastins.
Ganem a traça
de amor sem regulamento.
Prende mata esfola queima.
Viu? É dentro de mim, é dentro
do bardo que estão ganindo.
 
Bobeira de bobo besta.
Passa de nove mil horas,
urge voltar ao sacrário
de virgem.
Só mais um tiquinho. Não.
Sou eu, rei sábio, que ordeno.
Ri. Rimos de mim. Ficamos.
 
Dedos entrelaçados
e desejos geminados
no parque tão pueril.
Praça Edmundo, olá,
Bittencourt de berros brabos.
Se acaso nos visse aos beijos
babados, reincidentes,
protestava no jornal?
  
Menina mais sem juízo
rindo riso sem motivo
no jogo de diminutivos,
sabe o que estamos fazendo?
Amor.
Não é nada disso. Apenas
primícias cálidas. Calo-me.
 
Viajar nos seios. Embaixo.
Por trás.
Se vou mais longe, quem vai
me segurar?
Se fico por aqui mesmo,
quem vem
me resserenar?
 
Passo vinte anos depois
no mesmo Bairro Peixoto.
Ele que a tudo assistia,
nada lembra, no sol posto,
deste episódio canhoto.
 
 

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A merda – Hans Magnus Enzensberger

A merda
como se ela tivesse culpa de tudo.
vejam só como suave e modesta
ela que se senta debaixo de nós!
porquê conspurcarmos então
o seu bom nome
e o emprestamos
ao presidente dos usa,
aos chuis, à guerra
e ao capitalismo?
que efémera ela é,
e aquilo a que damos o seu nome
que duradouro!
ela, a flexível,
anda na nossa boca
e referimo-nos aos exploradores.
ela, que nós esprememos,
terá agora que exprimir ainda
a nossa raiva?
não nos aliviou?
de mole consistência
e singularmente mansa
é de todas as obras do homem
provavelmente a mais pacífica.
que mal é que ela nos fez?
(Poemas Políticos)
Tradução de Almeida Faria
Publicações Dom Quixote, 1975
(original de gedichte 1971)

Die Scheisse

Immerzu höre ich von ihr reden
Als wäre sie an allem Schuld.
Seht nur, wie sanft und bescheiden
sie unter uns Platz nimmt!
Warum besudeln wir denn
ihren guten Namen
und leihen ihn
dem Präsidenten der USA,
den Bullen, dem Krieg
und dem Kapitalismus?

Wie vergänglich sie ist,
und das, was wir nach ihr nennen,
wie dauerhaft!
Sie, die Nachgiebige
führen wir auf der Zunge
und meinen die Ausbeuter.
Sie, die wir ausgedrückt haben,
soll nun auch noch ausdrücken
unsere Wut?

Hat sie uns nicht erleichtert?
Von weicher Beschaffenheit
und eigentümlich gewaltlos
ist sie von allen Werken des Menschen
vermutlich das friedlichste.
Was hat sie uns nur getan?

H.M. Enzensberger

(1964)

Via: voar fora da asa http://bit.ly/2fkfy0F

terça-feira, 15 de novembro de 2016


O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.


A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.


A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.


O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.


A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.


Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.


Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.


No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.


O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.


Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.


A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.


Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

Manoel de Barros

sábado, 12 de novembro de 2016



Leonard Cohen morreu? Nem penses, velhos desses apenas adormecem

 
Velho demais Estou velho demais
Para decorar os nomes
Dos novos assassinos
Este aqui
Parece cansado e ataente
Devotado, profissional
Ele se parece muito comigo
No tempo em que ensinava
Uma forma radical de Budismo
Para os insanos sem salvação
Em nome da velha
Mágica sagrada
Ele ordena
Que famílias sejam queimadas vivas
E crianças mutiladas
Ele provavelmente conhece
Uma ou duas de minhas canções
Todas elas
Todos que banharam suas mãos em sangue
E os mastigadores de vísceras
E escalpeladores
Todos eles dançaram
Ao som dos Beatles
Todos adoraram a Bob Dylan
Prezados amigos
Poucos de nós restaram
Silenciados
Tremendo sem parar
Escondidos no  meio do sangue –
Fanáticos chocados
Enquanto testemunhamos uns aos outros
A velha atrocidade
A velha e obsoleta atrocidade
Que levou para longe
O apetite ardoroso do coração
E acanhou a evolução
E vomitou preces

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

“So Long Marianne” (1967)

Come over to the window, my little darling,
I’d like to try to read your palm.
I used to think I was some kind of Gypsy boy
before I let you take me home.
Now so long, Marianne, it’s time that we began
to laugh and cry and cry and laugh about it all again.
Well you know that I love to live with you,
but you make me forget so very much.
I forget to pray for the angels
and then the angels forget to pray for us.
Now so long, Marianne, it’s time that we began …
We met when we were almost young
deep in the green lilac park.
You held on to me like I was a crucifix,
as we went kneeling through the dark.
Oh so long, Marianne, it’s time that we began …
Your letters they all say that you’re beside me now.
Then why do I feel alone?
I’m standing on a ledge and your fine spider web
is fastening my ankle to a stone.
Now so long, Marianne, it’s time that we began …
For now I need your hidden love.
I’m cold as a new razor blade.
You left when I told you I was curious,
I never said that I was brave.
Oh so long, Marianne, it’s time that we began …
Oh, you are really such a pretty one.
I see you’ve gone and changed your name again.
And just when I climbed this whole mountainside,
to wash my eyelids in the rain!
Oh so long, Marianne, it’s time that we began …

So long, Leonard Cohen!

So Long, Leonard Cohen

quinta-feira, 3 de novembro de 2016


escrever

Pop xunga


Eu não gosto do que a Joana Vasconcelos (JV) produz actualmente. Mas isso não importa nada porque o gosto não pode ser um instrumento de apreciação e definição da política cultural.
A produção da artista standard é uma repetição em ciclo de uma receita estafada que começou por ser inovadora por pegar em tradições estéticas portuguesas e assumir a sua “piroseira” intrínseca numa abordagem construída com novos materiais, até com alguma audácia plástica. Hoje em dia, JV é uma empresária da arte, trabalha por encomenda numa espécie de produção em série em que a criatividade é apenas uma lembrança que jaz no seu historial.
Mas isso não importa nada porque o gosto não pode ser um critério político. 
Independentemente do que achamos, as elites ou as massas, o indivíduo ou o colectivo, a avaliação da política cultural não pode passar pela crítica do conteúdo artístico, pelo simples facto de que a produção artística é uma cadeia criativa que interliga todos os pontos de formas mais ou menos perceptíveis: a história da Arte é, ainda assim, História e, como tal, está sujeita precisamente às mesmas leis que a História. 
Portanto, o que nos cabe julgar não é a validade da produção artística, nem mesmo da mensagem ou inexistência dela. O que nos cabe julgar é se a política de cultura em Portugal e em Lisboa é a adequada a cumprir os objectivos constitucionais da “liberdade de criação e fruição artística e cultural”. Ou seja, a contratação sistemática de artistas, os mesmos artistas, principalmente dos que produzem uma arte despida de incómodos, de inquietação, aqueles que produzem uma arte da conservação do status quo, cumpre os objectivos máximos da política cultural em Portugal ou, pelo contrário, confrontam-se com esses objectivos. 
A adopção de estéticas de regime, de artistas de regime, a consagração de “gostos” avalizados pelo poder político cumpre dois papéis claros: promove a produção do artista e a estética neutralizante e, ao mesmo tempo, assegura a projecção do comprador na perspectiva da publicidade. 
Não está em causa a virtude do Pop Galo nem de JV. O que está em causa é saber se o nosso papel – do Estado, das autarquias e mesmo da Comunicação Social e dos programadores artísticos – é dedicar importantes fatias do orçamento público e privado à alimentação de um mercado da arte e de uma cadeia de exploração capitalista com base na reprodução de estéticas entorpecedoras ou, pelo contrário, é assegurar que há espaço para toda a produção artística, sem sujeições, sem crivo político, estético e, muito menos, de gosto. 
O papel dos agentes de política cultural não pode ignorar a produção artística que corresponde à hegemonia, claro. Mas não pode, nem deve, “iconizar”, nem “reduzir” a produção a um cânone, seja ele qual for, sob pena de estar a usar a arte como mero broche na lapela, como adorno da classe que domina as restantes ou como instrumento de domínio dessa classe sobre as restantes. 
Os ícones da arte, na minha opinião, são os milhares que pintam paredes com latas de tinta às escondidas da polícia, são os que fazem teatro sem dinheiro e escrevem livros sabendo que só os amigos os lerão, são os que ensaiam a banda na garagem e aspiram tocar para uma centena, os que pintam, dançam, esculpem, vencendo as condições sociais em que vivem. Se a JV recebesse milhões para levar um cacilheiro não sei aonde, mas estes operários das artes pudessem trabalhar em condições iguais, eu não teria nada a dizer. Mas enquanto JV for simultaneamente o espelho e o objecto que simbolizam a decadência de uma burguesia desvairada, prefirirei sempre os Popxula ao Pop Galo.
Via: Manifesto 74 http://bit.ly/2fiovGm

sexta-feira, 28 de outubro de 2016


Saga Da Amazônia – Geraldo Azevedo – Socorro Lira



Saga Da Amazônia

 
Era uma vez na AMAZÔNIA, a mais bonita floresta
Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta
No fundo d’água as IARAS, caboclo lendas e mágoas
E os rios puxando as águas
PAPAGAIOS, PERIQUITOS, cuidavam das suas cores
Os peixes singrando os rios, Curumins cheios de amores
Sorria o JURUPARI, URAPURU, seu porvir
Era: FAUNA, FLORA, FRUTOS E FLORES
Toda mata tem caipora para a mata vigiar
Veio caipora de fora para a mata definhar
E trouxe DRAGÃO-DE-FERRO, prá comer muita madeira
E trouxe em estilo gigante, prá acabar com a capoeira.
Fizeram logo o projeto sem ninguém testemunhar
Prá o dragão cortar madeira e toda mata derrubar:
Se a floresta meu amigo tivesse pé prá andar
Eu garanto meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá.
O que se corta em segundos gasta tempo prá vingar
E o fruto que dá no cacho prá gente se alimentar??
Depois tem passarinho, tem o ninho, tem o ar
ICARAPÉ, rio abaixo, tem riacho e esse rio que é um mar.
Mas o DRAGÃO continua a floresta devorar
E quem habita essa mata prá onde vai se mudar??
Corre ÍNDIO, SERINGUEIRO, PREGUIÇA, TAMANDUÁ
TARTARUGA, pé ligeiro, corre-corre TRIBO DOS KAMAIURA
No lugar que havia mata, hoje há perseguição
Grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão
Castanheiro, seringueiro já viraram até peão
Afora os que já morreram como ave-de-arribação
Zé da Nana tá de prova, naquele lugar tem cova
Gente enterrada no chão:
Pois mataram índio que matou grileiro que matou posseiro
Disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro
Roubou seu lugar
Foi então que um violeiro chegando na região
Ficou tão penalizado e escreveu essa canção
E talvez, desesperado com tanta devastação
Pegou a primeira estrada sem rumo, sem direção
Com os olhos cheios de água, sumiu levando essa mágoa
Dentro do seu coração.
Aqui termina essa história para gente de valor
Prá gente que tem memória muito crença muito amor
Prá defender o que ainda resta sem rodeio, sem aresta
ERA UMA VEZ UMA FLORESTA NA LINHA DO EQUADOR.
Via: voar fora da asa http://bit.ly/2eyWMT7

segunda-feira, 19 de setembro de 2016




Adolescente


A juventude tem mil ocupações. Estudamos gramática até ficar zonzos. A mim me expulsaram do quinto ano e fui entupir os cárceres de Moscou. Em nosso pequeno mundo caseiro brotam pelos divãs poetas de melenas fartas. Que esperar desses líricos bichanos? Eu, no entanto, aprendi a amar no cárcere. Que vale comparado com isto a tristeza dos bosques de Boulogne? Que valem comparados com isto suspirosante a paisagem do mar? Eu, pois, me enamorei da janelinha da cela 103 da "oficina de pompas fúnebres". Há gente que vê o sol todos os dias e se enche de presunção. "Não valem muito esses raiozinhos" dizem. Eu, então, por um raiozinho de sol amarelo dançando em minha parede teria dado todo um mundo.


Vladimir Maiakovski

segunda-feira, 8 de agosto de 2016



O ESFORÇO HUMANO – Jacques Prévert


O ESFORÇO HUMANO
O esforço humano
não é aquele belo rapaz sorridente
de pé na sua perna de gesso
ou de pedra
graças aos pueris artifícios da estatuária
dando a ilusão imbecil
da alegria da dança e do júbilo
evocando com a outra perna erguida
o prazer do regresso a casa
Não
o esforço humano não traz uma criança no ombro direito
outra à cabeça
e outra no ombro esquerdo
as ferramentas a tiracolo
e a jovem esposa feliz de braço dado
O esforço humano tem uma cinta hernial
e as cicatrizes dos combates
travados pela classe operária
contra um mundo absurdo e sem lei
O esforço humano não tem casa
tem o cheiro do trabalho
e tem os pulmões destruídos
o seu salário é magro
os seus filhos também
trabalha como um negro
e o negro trabalha como ele
O esforço humano não tem boas maneiras
o esforço humano não tem a idade da razão
o esforço humano tem a idade das casernas
a idade dos reformatórios e das prisões
a idade das igrejas e das fábricas
a idade dos canhões
e ele que por toda a parte plantou todas as vinhas
e que sempre pagou as favas
alimenta-se de pesadelos
e embebeda-se com o vinho azedo da resignação
e como uma grande cobaia frenética
não pára de andar às voltas
num universo hostil
poeirento e abafado
e não pára de fabricar a cadeia
a terrível cadeia onde tudo se encadeia
a miséria o lucro o trabalho a carnificina
a tristeza a desgraça a insónia e o tédio
a terrível cadeia de ouro
de carvão de ferro e de aço
de escória e de poeira
que é posta ao pescoço
de um mundo desamparado
a miserável corrente
onde vêm pendurar-se
os berloques divinos
as relíquias sagradas
as cruzes de guerra e as cruzes gamadas
os indecorosos amuletos
as medalhas dos velhos lacaios
os atavios da desgraça
e a grande peça de museu
o grande retrato equestre
o grande retrato de pé
o grande retrato de frente e de perfil e ao pé-coxinho
o grande retrato dourado
o grande retrato do grande profeta
o grande retrato do imperador
o grande retrato do grande pensador
do grande prestidigitador
do grande moralizador
do digno e triste impostor
o rosto do grande maçador
o rosto do agressivo pacificador
o rosto policial do grande libertador
o rosto de Adolf Hitler
o rosto do senhor Thiers
o rosto do ditador
o rosto do carrasco
de qualquer país
de qualquer cor
o rosto odioso
o rosto infeliz
o rosto antipático
o rosto imundo
o rosto do medo.
 

sábado, 2 de julho de 2016



 
Aos filhos da puta

A todos os que se vendem e abandalham
a todos os que crêem que são os únicos
os melhores e a elite entre os demais e
se pavoneiam na sua imbecilidade estonteante
intelectuais de pacotilha e militantes da mediocridade
a todos que se aplaudem em salamaleques de familiaridades
e consanguinidades de palavras para aplauso umbilical
aos curtos de vista viscerais defensores da pequenez
provinciana travestida de francesismos e transatlânticas
vitualhas literárias a peso ou a metro milimetricamente
deglutidas entre croquetes e champanhes de imitação
pechisbeques de cabeças vazias embevecidas na vã cegueira
dos que se acreditam os únicos olhos como se em terra de cegos vivessem ergo a minha taça
e desejo que a terra lhes seja pesada aos ossos
fragilizados de tanto curvar a cerviz
em cansaços vividos na inverdade da sua académica peralvilhice
bebo aos filhos de puta
aos inúteis
aos sem afectos
aos sem memória
aos medíocres
à matilha e à corja
bebo a todos os filhos de puta
mas bebo de pé aos filhos de puta maiores
a todos eles e aos que me enojam
Fátima Pinto Ferreira
publicado no seu blog…
Forja de Palavras
2009

Via: voar fora da asa http://bit.ly/29h9Ae9

quinta-feira, 9 de junho de 2016


Raduan Nassar – Lavoura Arcaica (Capítulo 27 e 24)



CAPITULO 27
A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo.
Família na mesa. Cena do filme Lavoura Arcaica
de Luiz Fernando Carvalho


— Meu coração está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, meu filho; essa é a colheita de quem abandona a casa por uma vida pródiga.
— A prodigalidade também existia em nossa casa.
— Como, meu filho?
— A prodigalidade sempre existiu em nossa mesa.
— Nossa mesa é comedida, é austera, não existe desperdício nela, salvo nos dias de festa.
— Mas comemos sempre com apetite.
— O apetite é permitido, não agrava nossa dignidade, desde que seja moderado.
— Mas comemos até que ele desapareça; é assim que cada um em casa sempre se levantou da mesa.
— É para satisfazer nosso apetite que a natureza é generosa, pondo seus frutos ao nosso alcance, desde que trabalhemos por merecê-los.
Não fosse o apetite, não teríamos forças para buscar o alimento que torna possível a sobrevivência. O apetite é sagrado, meu filho.
— Eu não disse o contrário, acontece que muitos trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível, mas não conseguem apaziguar a fome.
— Você diz coisas estranhas, meu filho. Ninguém deve desesperar-se, muitas vezes é só uma questão de paciência, não há espera sem recompensa, quantas vezes eu não contei para vocês a história do faminto?
— Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo.
— Você sempre teve aqui um teto, uma cama arrumada, roupa limpa e passada, a mesa e o alimento, proteção e muito afeto. Nada te faltava. Por tudo isso, ponha de lado essas histórias de famintos, que nenhuma delas agora vem a propósito, tornando muito estranho tudo o que você fala. Faça um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não esconda nada do teu pai, meu coração está apertado também de ver tanta confusão na tua cabeça. Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham ordem em suas idéias. Palavra com palavra, meu filho.
— Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo. Eu poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o instante em que decidi o contrário, eu tinha pensado em deixar a casa; eu poderia ser claro e dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido, eu pensei que pudesse encontrar fora o que não me davam aqui dentro.
— E o que é que não te davam aqui dentro?
— Queria o meu lugar na mesa da família.
— Foi então por isso que você nos abandonou: porque não te dávamos um lugar na mesa da família?
— Jamais os abandonei, pai; tudo o que quis, ao deixar a casa, foi poupar-lhes o olho torpe de me verem sobrevivendo à custa das minhas próprias vísceras.
— O pão contudo sempre esteve à mesa, provendo igualmente a necessidade de cada boca, e nunca te foi proibido sentar-se com a família, ao contrário, era esse o desejo de todos, que você nunca estivesse ausente na hora de repartir o pão.
— Não falo deste alimento, participar só da divisão deste pão pode ser em certos casos simplesmente uma crueldade: seu consumo só prestaria para alongar a minha fome; tivesse de sentar-me à mesa só com esse fim, preferiria antes me servir de um pão acerbo que me abreviasse a vida.
— Do que é que você está falando?
— Não importa.
— Você blasfemava.
— Não, pai, não blasfemava, pela primeira vez a vida eu falava como um santo.
— Você está enfermo, meu filho, uns poucos dias de trabalho ao lado de teus irmãos hão quebrar o orgulho da tua palavra, te devolvendo depressa a saúde de que você precisa.
— Por ora não me interesso pela saúde de que o senhor fala, existe nela uma semente de enfermidade, assim como na minha doença existe uma poderosa semente de saúde.
— Não há proveito em atrapalhar nossas idéias, esqueça os teus caprichos, meu filho, não afaste o teu pai da discussão dos teus problemas.
— Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra.
— Conversar é muito importante, meu filho, toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no fundamento de toda prática, vinga, e se expande, e perpetua, desde que seja justo.
— Admito que se pense o contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios, quando colhidos.
— É egoísmo, próprio de imaturos, pensar só nos frutos, quando se planta; a colheita não é a melhor recompensa para quem semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido de nossas vidas, quando plantamos, já temos nosso galardão só em fruir o tempo largo da gestação, já é um bem que transferimos, se transferimos a espera para gerações futuras, pois há um gozo intenso na própria fé, assim como há calor na quietude da ave que choca os ovos no seu ninho. E pode haver tanta vida na semente, e tanta fé nas mãos do semeador, que é um milagre sublime que grãos espalhados há milênios, embora sem germinar, ainda não morreram.
— Ninguém vive só de semear, pai.
— Claro que não, meu filho; se outros hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de nós. É assim que o mundo caminha, é esta a corrente da vida.
— Isso já não me encanta, sei hoje do que é capaz esta corrente; os que semeiam e não colhem, colhem contudo do que não plantaram; deste legado, pai, não tive o meu bocado. Por que empurrar o mundo para frente? Se já tenho as mãos atadas, não vou por minha iniciativa atar meus pés também; por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem, eu já não vejo diferença, tanto faz que as coisas andem para frente ou que elas andem para trás.
— Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu filho.
— Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto; maior despropósito que isso só mesmo a vileza do aleijão que, na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz; age quem sabe com a paciência proverbial do boi: além do peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre os canzis. Fica mais feio o feio que consente o belo…
— Continue.
— E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam, acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima atirada por seu cinismo.
— É muito estranho o que estou ouvindo.
— Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.
— Não vejo como todas essas coisas se relacionam, vejo menos ainda por que te preocupam tanto. Que é que você quer dizer com tudo isso?
— Não quero dizer nada.
— Você está perturbado, meu filho.
— Não, pai, eu não estou perturbado.
— De quem você estava falando?
— De ninguém em particular; eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava.
— Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada.
— Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro. Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou dizendo.
— Mas sonega clareza para o teu pai.
— Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade.
— Corrija a displicência dos teus modos de ver: é forte quem enfrenta a realidade; e depois, estamos em família, que só um insano tomaria por ambiente hostil.
— Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo; de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito à vida.
— Você me assusta, meu filho, sem te entender, entendo contudo teus disparates: não há hostilidade nesta casa, ninguém te nega aqui o direito à vida, não é sequer admissível que te passe esse absurdo pela cabeça!
— É um ponto de vista.
— Refreie tua costumeira impulsividade, não responda desta forma para não ferir o teu pai. Não é um ponto de vista! Todos nós sabemos como se comporta cada um em casa: eu e tua mãe vivemos sempre para vocês, o irmão para o irmão, nunca faltou, a quem necessitasse, o apoio da família!
— O senhor não me entendeu, pai.
— Como posso te entender, meu filho? Existe obstinação na tua recusa, e isto também eu não entendo. Onde você encontraria lugar mais apropriado para discutir os problemas que te afligem?
— Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.
— Não receba com suspeita e leviandade as palavras que te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa com nosso amor!
— O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se imagina.
— Já basta de extravagâncias, não prossiga mais neste caminho, não se aproveitam teus discernimentos, existe anarquia no teu pensamento, ponha um ponto na tua arrogância, seja simples no uso da palavra!
— Não acho que sejam extravagâncias, se bem que já não me faz diferença que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim que o senhor percebe, de que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele simplesmente um ramo de urtigas.
— Nesta mesa não há lugar para provocações, deixe de lado o teu orgulho, domine a víbora debaixo da tua língua, não dê ouvidos ao murmúrio do demônio, me responda como deve responder um filho, seja sobretudo humilde na postura, seja claro como deve ser um homem, acabe de uma vez com esta confusão!
— Se sou confuso, se evito ser mais claro, pai, é que não quero criar mais confusão.
— Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra soberba que vai demolir agora o que levou milênios para se construir; ninguém em nossa casa há de falar com presumida profundidade, mudando o lugar das palavras, embaralhando as idéias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só por ficar com a própria cegueira; ninguém em nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz como a escuridão de nos cegar; ninguém ainda em nossa casa há de dar um curso novo ao que não pode desviar, ninguém há de confundir nunca o que não pode ser confundido, a árvore que cresce e frutifica com a árvore que não dá frutos, a semente que tomba e multiplica com o grão que não germina, a nossa simplicidade de todos os dias com um pensamento que não produz; por isso, dobre a tua língua, eu já disse, nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família! Não foi o amor, como eu pensava, mas o orgulho, o desprezo e o egoísmo que te trouxeram de volta à casa!
Quanta amargura meu pai juntava à sua cólera! E que veleidade a minha, expor-lhe a carcaça de um pensamento, ter triturado na mesa imprópria uns fiapos de ossos, tão minguados diante da força poderosa de sua figura à cabeceira. Encolhido, senti num momento a presença da mãe às minhas costas, trazida à porta da cozinha pelo discurso exasperado ali na copa, tentando com certeza interferir em meu favor; mesmo sem me voltar, pude ler com clareza a angústia no rosto dela, implorando com os olhos aflitos para o meu pai: “Chega, Iohána! Poupe nosso filho!”
— Estou cansado, pai, me perdoe. Reconheço minha confusão, reconheço que não me fiz entender, mas agora serei claro no que vou dizer: não trago o coração cheio de orgulho como o senhor pensa, volto para casa humilde e submisso, não tenho mais ilusões, já sei o que é a solidão, já sei o que é a miséria, sei também agora, pai, que não devia ter me afastado um passo sequer da nossa porta; daqui pra frente, quero ser como meus irmãos, vou me entregar com disciplina às tarefas que me forem atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, só os deixarei bem depois de o sol se pôr; farei do trabalho a minha religião, farei do cansaço a minha embriaguez, vou contribuir para preservar nossa união, quero merecer
de coração sincero, pai, todo o teu amor.
— Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz nova sobre esta mesa, sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa que você causou ao abandonar a casa, apagando depressa o pesadelo que vivemos há pouco. Cheguei a pensar por um instante que eu tinha outrora semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que estava cego e recuperou a vista! Agora vai descansar, meu filho, a viagem foi longa, a emoção foi grande, vai descansar, querido filho.
E o meu suposto recuo na discussão com o pai logo recebia uma segunda recompensa: minha cabeça foi de repente tomada pelas mãos da mãe, que se encontrava já então atrás da minha cadeira; me entreguei feito menino à pressão daqueles dedos grossos que me apertavam uma das faces contra o repouso antigo do seu seio; curvando-se, ela amassou depois seus olhos, o nariz e a boca, enquanto cheirava ruidosamente meus cabelos, espalhando ali, em língua estranha, as palavras ternas com que sempre me brindara desde criança: “meus olhos” “meu coração” “meu cordeiro”; largado naquele berço, vi que o pai saía para o pátio, grave, como se todo aquele transbordamento de afeto se passasse à sua revelia; empunhava o mesmo facão com que entrara pouco antes ali na copa, ia agora reunirse de novo às minhas irmãs perdidas numa azáfama animada em torno da mesa tosca, lá debaixo do telheiro dos fundos, onde preparavam as carnes para a minha festa; e eu tinha os olhos nessa direção, e me perguntava pelos motivos da minha volta, sem conseguir contudo delinear os contornos suspeitos do meu retorno, quando notei, além do pátio, um pouco adentrado no bosque escuro, o vulto de Pedro: andava cabisbaixo entre os troncos das árvores, o passo lento, parecia sombrio, taciturno.

Raduan Nassar —-(Pode descarregar este livro sublime AQUI)

“Lavoura arcaica ocupa a mesa da grande literatura mundial. Disseram que o livro de Raduan Nassar lembra O Grande Sertão Veredas (de Guimarães Rosa) e Vidas Secas (de Graciliano Ramos). Lembra mesmo, são clássicos. Nas vidas secas da lavoura arcaica há fartura de verbos ásperos e dores arenosas. O embate de pai contra filho (trecho reproduzido acima) lembra o explosivo diálogo dos irmãos karamazóvi (Ivã e Aliócha) nos capítulos A Revolta e O Grande Inquisidor.” 
Via: voar fora da asa http://ift.tt/1XxpuEV