domingo, 30 de maio de 2021

 


«AO PARTIR»

Ao partir, ficam-me coisas por acabar,
ao partir.
Salvei a gazela da mão do caçador
mas continuou desmaiada, sem recuperar os sentidos.
Colhi a laranja do ramo,
Mas não consegui tirar-lhe a casca.
Reuni-me com as estrelas,
mas não as consegui contar.
Tirei a água do poço
mas não pude servi-la nos copos.
Coloquei as rosas na bandeja,
mas não pude esculpir as taças de pedra.
Não saciei os meus amores.
Ao partir, ficam-me coisas por acabar,
ao partir.


Nazim Hikmet

 Nazım Hikmet | Şiirce

quinta-feira, 13 de maio de 2021

 

Marina Abramovic é o prémio Princesa das Astúrias de Artes 2021

Escolha do júri foi anunciada esta quarta-feira. A artista sérvia, de 74 anos, é um dos nomes mais influentes das artes da actualidade.

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A artista conceptual sérvia Marina Abramović é o prémio Princesa das Astúrias de Artes deste ano, anunciou a organização esta quarta-feira nas redes sociais.

Marina Abramović, de 74 anos, nasceu na antiga Jugoslávia em 1946 e é filha de dois dirigentes do Partido Comunista Jugoslavo. O seu trabalho é um dos mais conceituados da arte contemporânea na área da performance e toca temas como o feminismo, o corpo e a relação entre artista e performer. Estudou na Academia de Belas-Artes em Belgrado, foi professora e viveu um pouco por todo o mundo — em Amesterdão, na Holanda, conheceu o artista alemão Uwe Laysiepen, conhecido como Ulay, seu companheiro de vida e de trabalho durante décadas. Juntos criaram, entre outras obras, Relation in Space, Relation in Movement e Relation in Time entre 1976 e 77. Abramović é uma das mais influentes artistas dos nossos dias.

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“A obra de Abramović é parte da genealogia da performance, com uma componente sensorial e espiritual anteriormente desconhecida. Carregado de uma vontade de permanente mudança, o seu trabalho dotou a experimentação e a procura de linguagens originais de uma essência profundamente humana. A valentia de Abramović na entrega à arte absoluta e sua adesão à vanguarda oferecem experiências comoventes, que reclamam uma intensa vinculação do espectador e a convertem numa das artistas mais emocionantes do nosso tempo”, lê-se na acta do júri.

A artista resumia em 2018 ao diário britânico The Guardian a sua abordagem de carreira. “Neste momento tenho uma carreira de 50 anos e nos últimos 40 anos, a arte performativa não era considerada arte. Tive uma confiança incrível na minha própria intuição para sobreviver e acreditava tão fortemente na arte performativa... Nunca podemos desistir, mas quando não se desiste há 50 anos? Uau, isso é um longo período. Nunca parei de trabalhar.”

O seu trabalho, da performance à instalação, já passou pelas instituições e eventos artísticos mais reputados do mundo, como o Museum of Modern Art (MoMA) onde em 2010 se instalou com The Artist is Present, permanecendo durante 716 horas em silêncio face a quem quisesse sentar-se à sua frente no átrio do museu nova-iorquino que na altura tinha patente uma retrospectiva do seu trabalho; repetiu a lógica da presença, por 512 horas, na Serpentine Gallery de Londres, em 2014 — são meras amostras recente de 40 anos de carreira que contam com Cleaning the Mirror (1995), a sua reacção à guerra na Bósnia Balkan Baroque (1997) — uma performance que consistiu no esfregar e limpar centenas de ossos de vaca durante quatro dias, um comentário ao genocídio que lhe deu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza — ou a sua série seminal Rhythm (1973-74).

“É difícil de explicar mas quando estamos na nossa vida normal somos uma pessoa e quando estamos diante do público usa-se a energia da audiência, que não temos. Essa energia dá a possibilidade de transcender o medo e fazer coisas que não teríamos a energia, a coragem e a força para fazer na nossa vida normal”, explicava há três anos ao diário espanhol ABC.

Esta é a 41.ª vez que o galardão espanhol é atribuído e o nome de Abramović foi seleccionado a partir de 59 nomeações oriundas de 24 países. O júri reuniu-se por videoconferência em tempos de covid-19 e é presidido por Miguel Zugaza Miranda e é composto por outras 19 pessoas. Abramović  foi uma proposta de María Sheila Cremaschi, directora do Hay Festival Segovia.

Estes prémios, que se dividem em galardões para as artes, comunicação e humanidades, ciências sociais, literatura ou desporto, entre várias categorias, destinam-se a recompensar “o trabalho científico, técnico, cultural, social e humanitário levados a cabo a nível internacional por indivíduos, instituições ou grupos de indivíduos ou instituições”, como se lê nos seus estatutos.

No caso das artes, cujos mais recentes laureados foram os compositores Ennio Morricone e John Williams (2020), o encenador Peter Brook (2019) ou o realizador Martin Scorsese (2018), o objectivo é reconhecer “o trabalho que acalente e promova o progresso da arte cinematográfica, teatral, da dança, música, fotografia, pintura, escultura, arquitectura ou qualquer outra forma de expressão artística”.

Além de um prémio pecuniário de 50 mil euros, o galardão consiste também numa escultura de Joan Miró.

terça-feira, 4 de maio de 2021

 

Julião Sarmento (1948-2021). Nos labirintos do Desejo: um obituário

Julião Sarmento

Na hora do seu desaparecimento, Julião Sarmento deixa uma obra imensa e diversificada pontuada por sucessivas inflexões que buscaram quase sempre o compasso com o tempo histórico. Olhando em retrospetiva, parece ter experimentado tudo: do filme à pintura, do som à escultura, passando pela fotografia, o desenho, o objeto, a instalação ou a performance

4 Maio 2021 9:47

Com o falecimento de Julião Sarmento na manhã desta terça-feira desaparece, o mais notório e persistente emblema de uma geração individualista e cosmopolita que, nos anos 80, foi capaz de trilhar os caminhos da internacionalização quando fazê-lo parecia uma quimera. Essa consciência, sua e de alguns outros companheiros de geração, supunha uma nova atitude na arte portuguesa, mais profissionalizada, mais consciente do ponto de partida periférico mas também menos complexada na sua atração pelos grandes centros. Mas se essas características ajudam a perceber Julião Sarmento e a sua afirmação como ícone maior da arte portuguesa contemporânea pouco explicam das razões da sua persistência como referência artística central do contexto português dos últimos 50 anos.

Na hora do seu desaparecimento, Julião Sarmento deixa uma obra imensa e diversificada pontuada por sucessivas inflexões que buscaram quase sempre o compasso com o tempo histórico. Olhando em retrospetiva, parece ter experimentado tudo: do filme à pintura, do som à escultura, passando pela fotografia, o desenho, o objeto, a instalação ou a performance. E, no entanto, mesmo no interior dessa diversidade e estilhaçamento estilístico amplamente cultivado, a grande maioria das obras eram imediatamente reconhecidas como suas. Para isso contribui a permanência de um conjunto de obsessões. A primeira delas é, sem dúvida, a dimensão erótica que Sarmento, na esteira de Bataille ou Buñuel, intuiu como um jogo de sombras permanente repleto de evidências mais opacas do que parecem e de opacidades que afinal se insinuam permanentemente.

A especificidade de Sarmento é, porém, a de ter comunicado o desejo (ou de ter comunicado a impossibilidade da sua tradução) através de um permanente cruzamento de imagens refratárias e incompletas, capazes de absorverem uma multiplicidade de conteúdos e referências e de ainda assim se manterem num estado de incompletude aberta e insinuante. O cinema, sobretudo o que enuncia o perigo, a expectativa e o desejo; a arquitetura que entrega o silêncio e a solidão mas também se constitui como uma forma de palco; ou a literatura, sobretudo a “maldita” do final do século XIX (de Sade ou Lautréamont) que adiciona uma impiedosa violência às imagens; ou a da fábula e dos contos de fadas que flirtam com a inocência, foram alimento recorrente dessa arte. Esses afluentes entram na pintura de Julião Sarmento como se aportassem um comboio que vemos da estação no seu momento de partida, deixando na memória um selo fantasmagórico mas persistente. Nesse sentido, a impermanência das imagens, a sua volatilidade e trânsito elétrico são o verdadeiro material desta obra, independentemente das vestes que foram assumindo.

Quando ocorre a revolução de abril, Julião tem 26 anos. Estudou arquitetura e pintura na faculdade de Belas Artes de Lisboa. No início dos anos 70 produz uma de forte presença da cor e da silhueta que gera imagens de uma sensualidade misteriosa. Mais tarde trabalhará na Secretaria de Estado da Cultura ao lado do amigo Fernando Calhau, com quem partilha um interesse pelas tendências minimalistas e conceptuais.

É nesse contexto que participa na Alternativa Zero, o evento organizado em 1977 por Ernesto de Sousa que, na Galeria Nacional de Arte Contemporânea, faz o balanço das atitudes de uma nova geração em torno de práticas artísticas desmaterializadas e democratizantes e gestos performativos e contaminações das artes visuais pela linguagem e pelo vídeo.

Ao lado de artistas mais velhos como Helena Almeida ou Alberto Carneiro, e de outros da sua geração, o jovem Julião está em sintonia com estas reconfigurações das práticas artísticas, constituindo um corpo de trabalho com características vincadamente experimentais com recurso a meios diversos como o texto, a fotografia, o vídeo e o som e onde representações elípticas ou mais abertas da pele, do sexo e do desejo se vislumbram já por entre os jogos conceptuais.

Depois das aventuras coletivistas e dos momentos associativos que caracterizaram o período efervescente da revolução de abril, os anos 80 impõem reativamente uma atitude dandy, uma valorização da singularidade e da pluralidade, e a abertura à arte e literatura anglo-saxónicas que substituem as suas congéneres francófonas como referência central da produção cultural portuguesa.

Julião Sarmento

Julião Sarmento

josé caria

É a década mundana do Frágil, das romarias à feira Arco em Madrid, da afirmação de um pequeno circuito galerístico e de um mercado de arte ainda incipiente.

Identificado com os ares que corriam de países como Itália, Alemanha ou os EUA, e acusando o cansaço com a frieza de algumas práticas conceptuais que dominaram a década anterior, Sarmento faz o seu “regresso à pintura” em tom neo-expressionista, uma viragem decisiva do seu programa artístico que o conduz à afirmação internacional. Nesses anos, participa nas edições de 1982 e 1987 da Documenta de Kassel, um dos mais respeitados encontros artísticos internacionais; expõe na Suíça, na Espanha, na Alemanha e em Itália e cria uma rede de contactos que inclui artistas como os espanhóis Cristina Iglesias e Juan Muñoz ou o influente curador Germano Celant, responsável pela revelação internacional da italiana arte povera, que havia participado nos debates pós-modernos em “Depois do modernismo”, o evento multidisciplinar organizado, em 1983, na SNBA, pelo galerista Luís Serpa e pelos artistas António Cerveira Pinto e Leonel Moura.

Nas pinturas da primeira metade da década as superfícies subdividem-se em planos, enunciando imagens fragmentárias que mais do que diálogos, estabelecem curto-circuitos entre si. As telas revelam cenas de intimidade que parecem retiradas de polaroids ou de frames cinematográficos que se conjugam com a mais variada informação como sinaléticas, plantas arquitetónicas, stills de filmes ou imagens de objetos a partir de uma lógica compositiva que transpõe a sucessão cinematográfica para a simultaneidade pictórica. Progressivamente, esta prática vai-se tornando mais árida e subordinada ao desenho, o que nos conduz às chamadas “pinturas brancas” dos anos 90, telas quase sempre de grande dimensão em que uma estrita economia de meios sustenta a teatralidade de grandes superfícies brancas texturadas. Uma figura feminina vestida de preto e sem cabeça domina muitas destas composições, reaparecendo também nas suas esculturas, mas por vezes o que se figura são apenas bocas, línguas, mãos, quadris, pescoços, fragmentos de corpos femininos, gestos sexuais ou violentos que parecem manter-se à tona um pouco depois de emergirem ou um pouco antes de se extinguirem como se Sarmento manipulasse o nosso voyeurismo.

Na viragem do século a parceria com a galerista Cristina Guerra assegura-lhe uma presença constante em exposições do mais diverso recorte curatorial que lhe permitem expor com artistas muito mais novos. Os trabalhos que Julião Sarmento tem apresentado nos últimos vinte anos não traem a diversidade que sempre caracterizou o seu percurso, mas tornam recorrentes práticas anteriormente menos exploradas, como a da escultura dominada pelos corpos femininos decepados ou pelas figuras encapuçadas que ele conduz à teatralidade da instalação; ou os vídeos que supõem uma dimensão performativa induzida.

Julião Sarmento

Julião Sarmento

tiago miranda

As últimas décadas ficam também marcadas por várias colaborações com outros artistas plásticos como a que ocorreu no CCB com Lawrence Weiner e John Baldessari, com curadoria de Delfim Sardo (“Drift, 2004), ou com artistas de outras áreas criativas como o músico Arto Lindsay que compôs uma banda sonora para o seu arquivo fotográfico pessoal; ou o cineasta Atom Egoyan, com quem criou a vídeo-instalação “Close” para a Bienal de Veneza de 2001, onde já havia sido o representante de Portugal em 1997.

Estes é também o tempo das visões retrospetivas totais da obra ou de exposições antológicas que circunscrevem aspetos ou períodos localizados. Em 1999/2000, o Museu Reina Sofia e o CAM apresentam “Flashback” uma recolha de trabalhos de diferentes tempos que revisita algumas das suas obsessões mais recorrentes (o desejo, o feminino, o círculo afetivo, a arquitetura). Em 2002, Pedro Lapa traz ao Museu do Chiado os “Trabalhos dos Anos 70” lançando luz sobre o seu período inicial. Foi uma oportunidade de revelar de modo sistemático uma produção diversa da que lhe trouxe ventura crítica nos anos 80; mas significou também a possibilidade de os jovens artistas e críticos dos anos 90, que quiseram distanciar-se da arte da década anterior, se reconciliarem com a matriz conceptual da obra de Sarmento. Em 2018, também a sua obra em desenho, que estranhamente nunca havia sido mostrada em conjunto, é exibida na Fundação Carmona e Costa.

Mas é em Serralves, em 2012, que se mostra a sua maior retrospetiva de sempre numa exposição intitulada “Noites Brancas”, que reúne cerca de 160 obras e ocupa todos os espaços expositivos da casa e do Museu do Porto, numa impressionante manifestação da sua presença criativa e influência institucional.

Representado em algumas das mais importantes coleções do mundo (do Reina Sofia ao MOMA; do Guggenheim à Tate) e em todas as relevantes em Portugal, Sarmento haveria de mostrar no MAAT, em 2015, a sua coleção pessoal, numa viagem que define um círculo afetivo mas também o seu gosto pessoal.

Publicado no ano passado, o seu último livro “Café Bissau”, com edição de André Príncipe e José Pedro Cortes, reúne fotografias tiradas entre 1964 e 2017. Como sempre, trata-se de revolver a memória, numa revisitação de lugares, pessoas e temperaturas, que funciona como uma cápsula de tempo. E também este último objeto nos devolve ao paradoxo essencial e produtivamente irresolúvel da sua obra. Com Sarmento, pudemos sempre contar com uma abertura camaleónica que o leva ao encontro de um novo interlocutor ou da exploração de um diferente veículo artístico, mas isso é sempre um meio de refazer a sua própria genealogia afetiva ou de reorganizar fantasmas antigos numa labiríntica cartografia do desejo.