sábado, 11 de novembro de 2017

Requiem para o cinema: a extinção ou as novas figurações no tempo do digital

É conhecida a declaração atribuída a Antoine Lumière, pai dos autores do cinematógrafo e produtor dos seus espetáculos, alegadamente proferida na génese da então nova tecnologia: «O cinema é uma invenção sem futuro».
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«Quarto 666», de Wim Wenders
«Quarto 666», de Wim WendersCréditos / Wim Wenders Stiftung
Esta descrença na continuidade do cinema, tão precocemente assinalada, tem sido recorrente ao longo da história desta forma de expressão, justificada, primordialmente, pelas suas várias etapas de reconversão tecnológica, observadas como originadoras de mudanças determinantes na sua organização, administração e estética e, como tal, suscetíveis de causar ruturas com os modelos antecedentes.
A transição do cinema mudo para o sonoro foi identificada como uma destas primeiras grandes reestruturações. Uma outra grande e duradoura crise do cinema parece ter sido a suscitada pela massificação da televisão, logo nos anos 1950, e pelo posterior desenvolvimento e expansão do vídeo analógico, nos anos 1980.
O surgimento das imagens eletrónicas e a sua introdução no campo do cinema, originou um forte questionamento acerca da sua continuidade. Pela primeira vez na história do cinema, a transformação foi motivada não por alterações provenientes do seu interior, mas por elementos exteriores, que pareceram declarar a sua obsolescência.
Foi partilhando desta perspetiva que, no Festival de Cannes de 1982, Wim Wenders lançou o documentário com o significativo título Quarto 666. Neste, Wenders pediu a cineastas de diferentes nacionalidades e de distintas modalidades de produção e sensibilidades estéticas para refletirem sobre o futuro do cinema: estaria este em risco de extinção? – era a pergunta que lhes dirigia.
As entrevistas aconteceram num cenário minimalista, construído num quarto de hotel: uma cadeira para o entrevistado, no primeiro plano, e um televisor ligado, em pano de fundo, que pretendia simbolizar a omnipresença dos media electrónicos que, naquele período, aparentavam ameaçar o cinema. O lugar do entrevistador foi ocupado por uma câmara de 16 mm e por um gravador de som; as questões orientadoras estavam escritas num papel.
«O surgimento das imagens eletrónicas e a sua introdução no campo do cinema, originou um forte questionamento acerca da sua continuidade.»
A maioria dos realizadores entrevistados no filme considerou que o cinema, assim como a sua estética, linguagem e modos de organização específicos, estavam em vias de se extinguir em virtude da emergência do vídeo analógico e das possibilidades de registo, edição e receção que este inaugurava. Esta era, aliás, a intuição de Wenders, expressa no prólogo do mesmo filme.
Perante as transformações resultantes da imbricação do cinema com a cultura digital, muitos retomam a mesma preocupação, declarando a iminência do desaparecimento do cinema. Os argumentos para este posicionamento são baseados na supressão dos elementos que, até ao momento da transição do analógico para o digital, acompanharam frequentemente o cinema, pelo menos no quadro da sua expressão predominante.
A exclusão da película de todas as etapas de elaboração e circulação cinematográfica é um dos fatores mais referidos. O suporte fotográfico fez parte do cinema desde a sua génese e, no decurso do seu primeiro século de existência, deu corpo, de modo quase exclusivo, às suas manifestações. Por essa razão, entre cinema e película estabeleceu-se uma ligação de estreita proximidade, de interdependência.
Esta noção está expressa no próprio facto de o objeto resultante da expressão cinematográfica, o filme, ter assumido essa designação a partir da denominação do seu suporte. A partir daquele material definiram-se várias das características plásticas e narrativas dos filmes: o grão, a luz e a cor, a profundidade e a definição, a dimensão e a forma do enquadramento, a duração do plano.
O mesmo determinou as especificidades das maquinarias cinematográficas – as câmaras, os equipamentos de montagem e os projetores – e várias das práticas associadas à gestão e administração do cinema, desde a fase do registo do filme até à da sua conservação.
Hoje, com a substituição da película fotoquímica pelo suporte digital, quebrou-se este vínculo entre uma forma de expressão particular e o material que permitia e determinava a sua concretização. Para alguns autores, por esta razão, a própria identidade do cinema está posta em causa. As concretizações cinematográficas decorrentes de outros suportes, argumentam, são possuidores uma natureza distinta – a este propósito, afirmou recentemente o cineasta húngaro Bela Tarr: «A tecnologia digital não é filme. (...) Chamem-lhe outra coisa, digital pictures ou assim.»
Tacita Dean, artista plástica que trabalha essencialmente com película, tem defendido a mesma conceção no seu trabalho recente. Após ter sido informada pelo laboratório onde costumava tratar os seus filmes, propriedade da Deluxe, que o mesmo iria deixar de trabalhar com película de 16 mm, escreveu um apaixonado artigo sobre o tema para o jornal The Guardian, intitulado «Salvem o celuloide, pelo bem da arte».
Neste, a autora tentava explicar que a vantagem da película sobre o digital não era apenas de ordem tecnológica, mas algo mais profundo, poético. O propósito do seu trabalho subsequente tem sido, nas suas palavras, mostrar a película como «um meio independente e insubstituível» e evidenciar «a perda incalculável que será para o nosso mundo cultural e social se [a] deixarmos (...) desaparecer».

 A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

Centenário da Revolução de Outubro em destaque na Cinemateca

Anunciada no passado dia 3, a programação da Cinemateca Portuguesa relativa ao período Setembro-Dezembro de 2017 irá dar grande destaque ao centenário da Revolução de Outubro, sobretudo por via do ciclo «1917 no Ecrã».
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Imagem de «O Couraçado Potemkine», de Sergei Eisenstein (1925)
Imagem de «O Couraçado Potemkine», de Sergei Eisenstein (1925)Créditos / ludditerobot.com
O ciclo «1917 no Ecrã», organizado pela Cinemateca Portuguesa, pretende abordar os diversos modos como o cinema retratou a Revolução Bolchevique e a guerra civil que se lhe seguiu, tanto na União Soviética como noutros países, refere-se no portal da Cinemateca.
A propósito do ciclo, o director da instituição, José Manuel Costa, frisou: «Não podíamos deixar escapar a questão da representação de um grande facto histórico através da representação do cinema», indica a agência Lusa.
«A revolução de 1917 foi um dos momentos mais marcantes do século XX, se não o acontecimento mais importante que marcou o século XX. O cinema que resultou ou aconteceu no período pós-revolução foi a grande vanguarda soviética dos anos 20», disse.
Apontou O Couraçado Potemkine (1925), de Sergei Eisenstein, como um exemplo disso, um filme que «incendiou a imaginação de cineastas em todo o mundo e marcou o que veio a acontecer a seguir», afirmou. Do mesmo realizador, será exibido também Outubro (1927), informa a Lusa.
O ciclo «1917 no Ecrã» abre no dia 7 de Setembro com As Aventuras Extraordinárias de Mr. West no País dos Bolchevistas (1924), de Lev Kulechov, uma sátira ao modo como o Ocidente viu a revolução. Em Setembro o ciclo conta com 17 sessões, estando agendadas mais 22 para Outubro e Novembro. A estas, juntam-se cinco sessões da rubrica «Histórias do Cinema».
O sítio da Cinemateca destaca a colaboração «muito especial» do Gosfilmofond – Fundo Nacional de Cinema da Federação Russa, cujo actual responsável executivo, Piotr Bagrov, estará em Lisboa para a abertura do ciclo e para uma série de apresentações dedicadas ao cineasta soviético Fridrikh Ermler, de 4 a 8 de Setembro.

Tópico

domingo, 29 de outubro de 2017


Mas a arte não é feita para chocar?

Há um paradoxo embutido na gritaria moralista da chamada “nova direita” contra o homem nu no museu, e na devida reação a essa gritaria esboçada pela esquerda e agregados.

Por Pedro Rocha de Oliveira.

Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Onde ninguém nos vê
– Belchior
Há um paradoxo embutido na gritaria moralista da chamada “nova direita” contra o homem nu no museu, e na devida reação a essa gritaria esboçada pela esquerda e agregados. Esse paradoxo diz respeito ao sentido da obra de arte: em especial, à sua pretensão de proporcionar a surpresa e o choque.

Tecnicamente falando, esse é um traço da arte moderna; porém é possível mostrar que se trata de algo inerente à arte em geral. Afinal, o que caracteriza a experiência artística é um contraste entre as coisas e ideias apresentadas pela arte – seja cênica, plástica, musical, literária – e as texturas usuais da realidade. Mesmo quando falamos de uma obra “realista”, o que está em jogo é a percepção especial e maravilhosa que o artista conseguiu transformar em objeto estético: se não houver maravilhosidade, então a obra fica inserida no contínuo do cotidiano, não contrasta com ele em nada, e é indistinguível de uma coisa qualquer.
Em grande parte da história da arte – ou pelo menos daquilo que usualmente compreendemos como arte pré-moderna – essa maravilhosidade, esse estranhamento, aparecia principalmente sob a forma da beleza: o corpo pintado ou esculpido era mais belo que os corpos usuais, ou, através do gênio do artista, evocava o que havia de mais belo nos corpos reais. Mas a arte também tinha uma função catártica, segundo a qual a história contada envolvia as dores, aspirações e enlevos de pessoas mais ou menos comuns, apresentados de tal forma a permitir ao público uma experiência particularmente nítida e intensa daquilo que lhe constituía o resto do tempo, quando estava vivendo ordinariamente, sem experiência estética. Contudo, mesmo nesse caso, em que não necessariamente se tratava de mostrar a beleza, era algo da mesma ordem – a superabundância de sentido – que marcava a arte.
Com a arte moderna, a produção estética do maravilhoso e do inusual se desvia dessa centralidade da beleza e do sentido. É difícil e em certa medida errôneo generalizar o movimento moderno; em termos amplos, contudo, podemos dizer que nele saem da ordem do dia a realização das ambições pessoais, o bom gosto da classe média, o aplacamento sensorial, e, em seu lugar, entra uma atenção ao desencaixe, à dissonância, ao inadequado. Fazer arte passa a dizer respeito não mais à produção de experiências melhores do que a realidade cotidiana, em contraste com as quais a realidade cotidiana podia ser melhor entendida, mas à produção de algo que chamasse atenção para a maneira como a realidade estava em si mesma caindo aos pedaços. Essa compreensão moderna de arte é um fenômeno com data de nascimento mais ou menos precisa: das últimas décadas do século XIX às primeiras décadas do século XX, época em que o mundo da classe média tradicional – os principais consumidores de arte – está desmoronando. O efeito de choque da obra de arte é, então, destilado por gerações de artistas agudamente sensíveis aos efeitos culturais do colapso da fase livre-concorrencial do capitalismo.
Um exemplo eloquente disso é o emprego da colagem pelo surrealismo, no início do século XX. Tratou-se de uma reação à fotografia, que inicialmente aparece como capaz de – através de avanços técnicos então recentes – representar a realidade com fidelidade praticamente total. Recortando as imagens fotografadas, embaralhando as figuras representadas, e juntando-as em combinações bizarras, embaraçosas, insólitas – retirando-as do contexto em que apareciam na realidade cotidiana, portanto – o discurso da colagem surrealista era mais ou menos de que, se as coisas no início do século pareciam estar todas em seu lugar, na verdade não estavam. Através de corte e colagem, enfiava-se um acrobata curvado sob o nariz de um senhor respeitável, como se fosse um bigode, adicionando ainda uma pizza gigantesca às suas mãos, e colocava-se tudo pairando sobre um panorama de uma grande cidade, no meio de um emaranhado de outras imagens igualmente desconjuntadas e rejuntadas. Então, chamava-se aquilo de arte – ou seja, algo comparável ao teto da Capela Sistina – e, de fato, produzia-se o furdunço visual com maestria, equilíbrio, contraste, humor. A mensagem era: quando você olha para o mundo, e vê tudo funcionando, lembre-se de que as coisas continuariam funcionando ainda que estivessem em total desordem; de fato, essa ordem à qual você está acostumado está prestes a ser destruída; e talvez o pior seja que, apesar de toda a violência, tudo continuará sendo o que é. Mensagem fatídica às vésperas da Primeira Grande Guerra…
A ousadia visual da colagem foi alvo de repugnância, crítica, narizes empinados, receptividade vanguardista e discussão teórica. Contudo, para entender completamente o que os surrealistas queriam dizer, é preciso lembrar-se de que seu programa estético – na Espanha, por exemplo – não incluía apenas controversos deleites para os olhos, mas também passeios noturnos de carro com a finalidade de encontrar e espancar padres e policiais.* Eram, afinal, as vésperas do desencadeamento do assassino regime franquista, e não dava para ficar apenas fazendo as pessoas “verem o mundo de outra forma”. De fato, vários dos surrealistas tinham filiação política com o comunismo e o anarquismo.
É claro que, tanto no que diz respeito ao fator de choque estético quanto ao contexto político, muita coisa mudou desde a modernidade artística até hoje. Em particular, um discurso amplamente aceito diz que existe um rompimento entre a arte moderna e a estética da performance na contemporaneidade: em especial, a performance contemporânea trabalharia com a continuidade entre o cotidiano e a arte. É assim que artistas se sentam para fumar, defecam, depilam-se, dormem, fecham-se em caixas, despem-se, etc., em praça pública ou num canto do museu. Para efeitos do meu argumento, contudo, seria bom que o leitor benevolente prestasse atenção na continuidade da pretensão estética na arte contemporânea e na moderna. Ainda que – como se diz – o “questionamento” entre os limites da arte e da vida esteja posto na performance, também está posto o apelo à experiência especial, inusual, que, se não encanta, “faz com que você pare e reflita” ou “vivencie”.

No fim das contas, o que está em jogo é algo muito simples: na experiência artística tem que acontecer algo especial; se não, para quê fazer a arte? Isso se aplica ao caso do cara que fica nu no museu, também. A gente não fica nu no museu usualmente (não obstante a frequência com que a nudez é tematizada pela performance contemporânea). Aí, você está no MAM e, de repente, pimba: um cara pelado deitado no chão. Conforme for, você pode se deixar levar pela experiência ligeiramente inusitada e possivelmente desconfortável; pode se abrigar num sorriso condescendente, assistir de braços cruzados e a uma distância segura; pode realmente entrar no jogo e resolver interagir com o sujeito. De todo modo, a possibilidade de que alguém se sinta profundamente ofendido pela performance não pode ser descartada: afinal, toda a graça é justamente que o sujeito está nu, e as pessoas não ficam nuas em público, e na frente de desconhecidos, porque possuem inibições de ordem moral, sexual, etc. Se, por isso, tais inibições são a condição para a performance ser de interesse, a possibilidade da reação indignada está posta desde sempre.
Esse paradoxo tem implicações políticas, também. Por um lado, é indiscutível o caráter autoritário da intromissão do Estado em assuntos de teor moral e cultural; por outro lado, se não houvesse forças sociais propensas a objetar com bases morais, e capazes de transformar sua objeção em prática, qual seria o barato da performance? Nenhum. De fato, quando se pensa nisso, o que parece pedir explicação não é o porquê de existir uma reação moralista – que, afinal, tem que ser provocada, ou a arte perde a graça – mas sim o porquê de haver gente que não se indigna, não manifesta repugnância, etc.
É claro que aqueles que defendem a liberdade de manifestação no museu não estão defendendo seu direito de ir ao museu para se sentirem indignados e ofendidos, mas para se exporem a experiências especiais. Ao mesmo tempo, a tolerância geral ao cara pelado deitado no chão significaria que o caráter especial da experiência da performance em pauta já desapareceu. Se ninguém sai de sua zona de conforto psíquica, estética e moral diante da performance, então a performance, na verdade, não está acontecendo: nada está acontecendo. Se a classe média culta e progressista leva a performance na boa – se existe uma tolerância à experiência que a performance quer produzir – então é porque ficar pelado em público já não é o que era antes: tornou-se algo pouco especial.
O paradoxo aí é que um público só considera de bom gosto deixar-se “desafiar” pela arte quando esse desafio já perdeu a maior parte de seu efeito de choque. Como não faltou quem lembrasse na polêmica que se seguiu à censura da performance em pauta, qual é o grande problema da nudez, afinal, se dá pra ver bunda e peito em qualquer novela da Globo? O negócio é que essa pergunta retórica também coloca em dúvida a relevância da performance. Se a nudez é tematizada o tempo todo – de fato, está no centro do bombardeio de imagens que é central à produção contemporânea de mercadorias, insinuada constantemente em propagandas de modelador capilar, sabonete, roupa, cerveja, etc. – então ficar pelado na frente dos outros está de boa, e fazê-lo no museu deixa de ser especial. Exceto, é claro, para aqueles que também reclamam da nudez na novela das dez, em geral os elementos tidos como mais sexualmente conservadores na sociedade – os quais, contudo, não vão ao museu expor-se de bom grado a contatos imediatos de segundo grau com os aparelhos reprodutores dos outros.

Assim, quem vai no museu ver o cara pelado é porque está vacinado contra a visão de gente pelada. E quem não está vacinado não vai ver o cara pelado – como, aliás, também não faltou quem observasse, afirmando jocosamente que as estatísticas de frequência ao MAM ficariam inalteradas se os elementos conservadores resolvessem amanhã promover um boicote ao museu.
Essa piada tem um caráter de classe que eu gostaria de examinar em uma outra oportunidade. Por ora, vale a pena prestar atenção na questão que acabou ficando no centro do debate sobre a performance: o fato de que crianças que visitavam o museu interagiram com o cara pelado. É nisso aí que culmina a repugnância daqueles que atacaram a performance com base moralista. E é nesse ponto, também, que a tentativa de defesa da performance encontra um limite bastante difícil de ser transposto por qualquer público. É que, no coração da tolerância à nudez no local público, está um gesto estético e psíquico que despotencializa a nudez, eximindo-a de seu caráter sexual. Nessa versão da história, não tem problema a criança tocar o cara pelado, porque não haveria nada remotamente sexual acontecendo aí, nem de um lado, nem de outro. Mas então a situação é tal que o público culto de classe média pode ir ver um cara pelado se não quiser comê-lo; mas, se o negócio é sentir desejo, é preciso ir a locais escusos, frequentar cines de má fama, ou assistir pornografia na secreta intimidade do seu lar. E vice-versa, porque o público não está – e não estou querendo insinuar que deveria ser diferente – preparado para ser encarado como objeto sexual pelo sujeito pelado. Suspeito que se, no momento em que a criança tocasse o pé do cara, ele tivesse uma gigantesca ereção, a simpatia das pessoas cultas pela performance nudista desapareceria bastante rápido.
É assim que, no que tange à defesa da performance, sobretudo em face à presença de crianças, os argumentos precisam girar em torno do teor completamente dessexualizado do que aconteceu. Nesse ponto, os defensores da performance acabam concordando com seus detratores numa questão de fundo: é ruim que o elemento erótico do corpo esteja sendo tematizado ali. Aqui, grosso modo, os dois lados concordam em ser conservadores, e até retrógrados: afinal, foi por volta do início do século XX – na mesma época em que o surrealismo estava nascendo, aliás – que Sigmund Freud publicou seus primeiros trabalhos sobre o que ele chamou de “sexualidade infantil”, a qual não tem nada a ver com o coito – é bom deixar isso bem claro – mas tem muito a ver com formas complexas, ambivalentes, nebulosas e turbulentas de experimentar o prazer em seu próprio corpo e com os corpos dos outros. Mas enquanto o discurso dos tolerantes e dos intolerantes orbita a “inocência das nossas crianças”, seria interessante cronometrar quanto duraria a carreira de um artista performático que tentasse “questionar” esse lance num museu.
* Num “estilo” semelhante, o performer Piotr Pavlenski, no outro dia, colocou fogo numa agência do Banque de France em Paris. Agradeço a Clarice Chacon por chamar minha atenção para o ocorrido.

***
Pedro Rocha de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Organizador (em conjunto com Felipe Brito) e um dos co-autores do livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Felipe Brito) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

"A herança cinematográfica europeia necessita de ser resgatada do esquecimento"

O cineasta alemão fotografado nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa
O cineasta alemão Wim Wenders foi distinguido com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, atribuído pelo Centro Nacional de Cultura.
Em cerimónia realizada na terça-feira na Fundação Gulbenkian, o prémio foi entregue pelo Presidente da República que, na mesma ocasião, o condecorou com o grau de comendador da Ordem do Mérito. Como disse Marcelo Rebelo de Sousa, Wenders "nunca foi estrangeiro em Portugal" - ele é, afinal, um cidadão da Europa com uma obra de viajante pela pluralidade cultural do nosso continente e também, mais do que nunca, apostado em enfrentar os desafios da era digital.
O Prémio Helena Vaz da Silva consagrou-o, não apenas como cineasta mas enquanto personalidade do mundo da cultura europeia. Como encara tal distinção?
O que está em jogo é um certo empenho na Europa: a ideia de que necessitamos de algo para o futuro, algo que vem do passado e corre o risco de se perder. Não é, portanto, um prémio exatamente para mim, mas sim por aquilo que muitas pessoas estão a fazer, sendo eu apenas uma delas. Sou um empenhado europeu, filmei em toda a Europa e, quase involuntariamente, contribuí para preservar uma certa herança. Por exemplo, em Lisboa: filmei aqui no começo dos anos 80 [O Estado das Coisas], depois em 1990 [Até ao Fim do Mundo] e ainda em 1994 [Lisbon Story].
Que herança é essa?
A noção de herança é algo estranha: pode sugerir uma certa ideia de museu, mas não é disso que se trata - a herança é algo que diz respeito ao nosso futuro.
Na defesa dessa herança, qual a importância da Academia Europeia de Cinema a que preside?
Defendemos algo que não pode ser dado como adquirido. O cinema europeu está a ser atacado por uma indústria muito mais poderosa. É um cinema frágil, feito por países muito diferentes, mas o seu conjunto representa um valor fundamental: a nossa própria diversidade. E está a desaparecer. Quase tudo o que eu fiz há 40 anos está a desaparecer, a não ser que seja preservado, ajudando os filmes a entrar na nova idade digital. Hoje em dia, se um determinado filme apenas existe numa cópia em película, esse filme está morto - para viver, necessita de ser transferido para digital e, desse modo, aceder a várias plataformas. Grande parte da nossa herança necessita, assim, de ser resgatada do esquecimento.
Diz-se, por vezes, que há uma relação fraca dos espectadores mais jovens com os filmes europeus - concorda com esse ponto de vista?
Em muitos casos sim, é uma triste verdade. Mas também é verdade que onde quer que haja uma sala e pessoas empenhadas em mostrar cinema europeu devidamente contextualizado, os jovens mostram-se interessados, até mesmo entusiasmados. É fundamental educar os jovens para o cinema, começando nas escolas porque é a nossa herança que está em jogo. Há muitos jovens que cresceram sem a conhecer: ensinamos-lhes literatura ou pintura, mas não lhes ensinamos a arte mais ameaçada que temos, a arte das imagens em movimento.
Em vários dos seus filmes, como O Amigo Americano, Paris, Texas ou Terra da Abundância, encontramos uma relação forte com a cultura americana. Como avalia o peso dessa relação no seu universo criativo?
Cresci admirando a cultura americana, porque cresci num país destruído - a Europa não passava de uma ficção. A certa altura, era mais difícil ir à outra metade da Alemanha do que ir à Lua. A América era uma bela utopia, imensa e livre, refletida na beleza do seu cinema. Não havia cinema no meu país e, de facto, só mais tarde vim a conhecer Fritz Lang ou Murnau. A América apaixonava-me, não necessariamente através das ideias, mas pelo espírito, pela grandeza, pelas imagens que de lá chegavam. Aliás, não nos podemos esquecer que o cinema americano é, em grande parte, uma invenção de europeus, a começar pelos anos 20 e 30. No meu caso, foi depois disso que aprendi a admirar as minhas origens europeias, descobrindo cineastas como Bergman, Truffaut ou Godard.
Como evoluiu a sua própria perceção do cinema nos EUA?
Vivi dois períodos da minha vida na América, num total de 15 anos. Descobri que nunca iria fazer filmes americanos: era algo que não existia em mim, seria sempre um cineasta europeu - e o Sonho Americano foi-se dissipando. Vi os outros lados daquele imenso continente. Agora, estamos a ver o lado mais horrível, quase como um pesadelo.
No atual cinema americano, não haverá uma espécie de esquizofrenia entre as grandes máquinas de produção e os filmes que procuram outros modos de expressão?
Sim, muitos dos meus amigos americanos têm sérias dificuldades em trabalhar de forma independente. Eu sei, por experiência própria, que quanto maior é o orçamento com que trabalhamos menor é a possibilidade de dizer aquilo que se quer dizer. Quando se tem um pequeno orçamento, aí sim, podemos filmar como queremos - foi o que me aconteceu com Terra da Abundância, um filme feito na América, sobre a América, em que pude fazer exatamente aquilo que quis. Quanto mais dinheiro se tem, mais se é obrigado a obedecer à maquinaria do marketing. A maneira europeia de fazer filmes é diferente, vem mais da escrita, do teatro, da pintura - é mais inspirada pela vida, pela procura de respostas.
Essa procura de respostas vai refletir-se, de alguma maneira, no documentário que está a fazer sobre o Papa Francisco?
Nos nossos dias, os documentários são uma forma muito livre de trabalho. Aquele que estou a fazer ocupa-me há cerca de quatro anos, deverá ser lançado no próximo ano, e não é "sobre" o Papa Francisco, mas "com" o Papa Francisco. Entretanto, fiz um filme apresentado recentemente no Festival de San Sebastian, Submergence, que deverá estrear em Portugal no começo de 2018. É um dos filmes mais ambiciosos que já fiz, pelo orçamento e também pelo esforço que envolveu, tendo alternado a sua produção com o trabalho no documentário. Para mim, isso é muito importante: poder alternar os dois registos - sinto que cada um deles transmite energia para o outro.
Tendo em conta o poder de alguns filmes americanos no mercado europeu, o que mudaria se houvesse mais dinheiro para o marketing dos filmes europeus?
Seria, seguramente, um jogo completamente diferente. Para mim, o cinema americano não é o inimigo. Acontece que aquilo que temos na Europa é mais pequeno e mais frágil, o que no mundo de hoje implica o risco de ser rapidamente marginalizado. É um problema de toda a humanidade: as economias mais pequenas, os povos mais pequenos são marginalizados porque os mercados funcionam por processos de exclusão.
Imaginemos que lhe pediam para sugerir três filmes a jovens espectadores europeus, precisamente no sentido de começarem a compreender a herança cinematográfica europeia. Quais seriam as suas escolhas?
Acho que todos deviam ver algum filme de Ingmar Bergman: poderia ser O Sétimo Selo ou Morangos Silvestres, um qualquer... Todos refletem os mesmos valores e a mesma grandeza. Depois, um filme de Federico Fellini, Oito e Meio por exemplo. E todos deviam conhecer um filme de François Truffaut: todos os estudantes deviam ver Jules e Jim, Fahrenheit 451 ou O Menino Selvagem... Qualquer um, realmente, já que cada um funcionaria como um apelo para verem mais. Mas podemos também fazer uma lista de títulos menos "históricos", de anos mais recentes...
Como por exemplo...
Comecemos pela Itália: A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino. Consideremos a França: O Profeta, de Jacques Audiard. E a Alemanha: Adeus, Lenine!, de Wolfgang Becker. E não esqueçamos os espanhóis: é preciso introduzir pelo menos um Almodóvar nesta equação.
 in JN

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Fábio Fernandes explica por que China Miéville é o cara!

Autores

Estação Perdido – O estranho mundo de Miéville!

23.08.2016

Formiga Elétrica
Daniel Fontana
No campo da literatura de fantasia/ficção científica, a aclamação do nome China Miéville pela crítica especializada pode dar a impressão de que o inglês faz parte daquele famigerado ciclo do hype, mas uma rápida pesquisa sobre o currículo deste escritor peculiar, ainda jovem, demonstra que não é o caso. A quantidade de prêmios entre os mais importantes do gênero, mais os elogios rasgados de outros autores consagrados, merece atenção. Certamente, isso o destaca de alguns, cuja credencial, alardeada com orgulho pela galera do Oba Oba, é escrever livros como contratado de alguma franquia bilionária, ou ter os direitos de uma de suas obras comprados por um grande estúdio ou canal.
 
Objetivamente, o que esse cara tem de especial? Só para começar, ele tem um repertório literário vasto, não apenas em torno de ficção científica e fantasia. Muitas vezes, conhecemos um autor mais novo do gênero e não demora muito para percebermos em qual dos grandes nomes clássicos ele se inspirou, mas Miéville é um caso bem diverso. Encontramos influências de outros escritores em sua escrita, claro, mas ele cria sua colcha de retalhos a partir de elementos inusitados, como o realismo mágico latino-americano e o naturalismo, dando origem a um novo tipo de literatura fantástica. Se em A Cidade & A Cidade encontramos ecos fortes de As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, no meio de um caldeirão eclético, em Estação Perdido (Perdido Street Station) – lançado originalmente em 2000, chegando agora ao Brasil pela Boitempo – a gama de influências e a imaginação do escritor mostram um alcance bem maior.
 
Imagine algumas criaturas sencientes que parecem saídas de O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges. No meio delas, espécies tão assustadoras como uma descrição de Borges reimaginada por Clive Barker. Misturados em uma sociedade com humanos comuns, essa diversidade existe em um cenário imundo e decadente, lembrando uma tradicional Inglaterra Vitoriana Steampunk, com a magia (taumaturgia) coexistindo com a tecnologia rudimentar em alguns pontos e extrapolada em outros, tudo descrito com a propriedade meticulosa de um Jack London. Adicione também uma pitada da escrita de William Burroughs. Você pode ter feito um esforço considerável para pensar em algo com essa descrição, mas, ainda assim, nem ter se aproximado do grande exercício de imaginação que é essa tour de force do escritor prodígio.
 
Primeiro livro do autor ambientado no mundo de Bas-Lag, a história de Estação Perdido se passa na metrópole de Nova Crobuzon, governada por um parlamento corrupto e autoritário, que tem como ponto de intersecção a estação que dá nome ao livro. Essa sociedade retrógrada não vê com bons olhos o relacionamento interespécies, o que dificulta a vida do cientista humano Isaac Dan der Grimnebulin, romanticamente envolvido em segredo com a escultora Lin, uma khepri, cuja particularidade de suas fêmeas é ter um besouro no lugar da cabeça. Enquanto ele é contratado para ajudar Yagharek, um desesperado e melancólico garuda, espécie de homem-pássaro, ela recebe uma proposta irrecusável para criar uma peça única. Ambos veem suas respectivas oportunidades como grandes chances, mas a pesquisa de Isaac terá um desdobramento inesperado e trágico que afetará a cidade inteira e além.
 
Isso é muito pouco para descrever a torrente de personagens e seres bizarros que desfilam por seiscentas e poucas páginas, enquanto o autor vai descrevendo Nova Crobuzon com um detalhamento raro. O cuidado com o qual ele nos apresenta um pouco deste mundo alternativo, mais o mapa da cidade no início do livro, traz mais verossimilhança e faz o leitor passear mentalmente por esse local pouco agradável, porém fascinante. Esta não é uma história que nos poupa quando é preciso se esconder em um esgoto ou em um prédio abandonado. Toda nojeira que esperaríamos encontrar em uma situação como essa é relatada sem medo, tal como os tormentos que nossos protagonistas, totalmente desprovidos de qualquer heroísmo glamouroso, precisarão passar.
 
Falando no grupo principal, Isaac, Lin, Yagharek e Derkhan, uma amiga do casal, é incrível como a descrição dos locais, das pessoas e dos procedimentos não impediu Miéville de trabalhar incrivelmente a profundidade deles. Os sentimentos são tão absolutamente críveis e intensos, sobretudo no caso de Yagharek, que qualquer leitor vai sofrer e torcer por eles, comemorando cada pequena vitória nesta jornada, às vezes, sorrindo sem perceber durante a leitura. Além destes momentos mais dramáticos, a aparição das tais criaturas medonhas carrega no incômodo e nos faz sentir o asco, o medo e a tensão, completamente justificados, que os personagens sentem nestes trechos. Mérito também da tradução caprichada.
 
Apesar da relação forte entre o autor e o ativismo marxista, o mesmo faz questão de rejeitar a associação de seu trabalho com alguma metáfora mais direta da vida real, conforme entrevistas. A verdade é que Estação Perdido, com seus políticos corruptos auxiliados por uma milícia violenta, criticada por um jornal clandestino em um local onde várias pessoas vivem em condições precárias, parece trilhar um caminho assumido de crítica, onde seguimos o texto esperando que isso tome uma forma mais clara, auto explicando-se. Felizmente, é apenas uma impressão inicial que é esquecida enquanto a leitura avança. A complexidade desta trama é bem maior do que aparenta no começo e desafia associações desta natureza.
 
A única ressalva que se pode fazer sobre o conjunto é um detalhe que pode até passar despercebido por muitos, o que a torna essa impressão mais pessoal. A rede de relacionamentos entre os personagens tem algumas coincidências convenientes demais para o andamento da história, dentro de um imenso cenário geral. Exemplificando bem por cima para evitar revelações, a operação por trás do caso – acidental – que muda a vida de Isaac tem envolvimento de pessoas que ele já conhecia. Em alguns momentos, o fluxo de causa e efeito também faz um pouco de força para manter a ligação entre os protagonistas. Isso se torna compreensível pelo tamanho da obra e o quanto de acréscimo seria preciso para contornar isso de maneira a parecer mais casual. Não é um problema grave, mas uma pequena gordura narrativa dentro de uma grande realização.
 
Além da quebra das amarras do convencional que caracteriza o New Weird, denominação do segmento da ficção científica que identifica a escrita de Miéville, conferir a riqueza e a verossimilhança do mundo de Bas-Lag é um tipo de experiência rara hoje em dia.  Se isso não basta, a construção psicológica dos personagens de Estação Perdido torna tudo ainda mais especial, seja para iniciados ou não. Aliás, só para atiçar um pouco mais a curiosidade, os fãs de William Gibson podem se sentir mais recompensados durante a narrativa.
 
Enfim, como todo bom leitor é um pouco masoquista, por mais que esse mundo ficcional não seja um lugar muito convidativo, é difícil conter a vontade de visitar Bas-Lag novamente. Que venham os próximos – A Cicatriz e Conselho de Ferro, já confirmados pela Boitempo – e que um talento como China Miéville se torne cada vez mais conhecido. No meio do caminho, se inspirar alguns novos escritores a procurar fontes de inspiração mais alternativas e evitar o pastiche, é mais um motivo para agradecê-lo.

ANTÓNIO CRUZ- Porto-aguarela

terça-feira, 12 de setembro de 2017



Um "Senhor" chamado Bruce Springsteen

Épico e espectacular ! 
Tudo corria bem no show de Bruce Springsteen, em Leipzig, na Alemanha. Até o momento em que ele pega o cartaz de um fã, que pedia para eles tocarem “You Never Can Tell”, clássica canção de Chuck Berry, que embala a mitológica cena de dança de John Travolta e Uma Thurman em “Pulp Fiction”. Detalhe: a canção não faz parte do repertório. O que torna esse vídeo ÉPICO é o fato de Bruce tentar encontrar o tom na frente de 45 mil pessoas, com os elementos da banda boquiabertos, sem saber o que fazer! O resultado só podia ser ESPECTACULAR! Num mundo onde "artistas" utilizam playback "The Boss" mostra como se faz! Impressionante. Vejam Bruce Springsteen e banda com "You Never Can Tell".

https://youtu.be/L-Ds-FXGGQg

Recebida por email de M. Seixas e S. Cardoza

domingo, 13 de agosto de 2017

Mladen Dolar: “Fazer arte é gerar um rompimento, um corte na continuidade do ser”

Por Mladen Dolar, via Wie geht Kunst, traduzido por Rodrigo Gonsalves.
Mladen Dolar é co-fundador da Escola de Psicanálise de Ljubljana, junto à Slavoj Žižek, Alenka Zupančič e Rastko Močnik. Conny Habble encontrou-se com o filósofo esloveno em junho de 2009 em Ljubljana.

Wgk: Teve alguma obra de arte que surtiu efeito à longo prazo sobre você?
Dolar: A obra de Samuel Beckett – se tivesse que apontar apenas um. Tanto pela importância que teve para mim e pelo momento histórico particular do final do século XX. Penso que ele foi o que mais longe foi, de certo modo. Existem inúmeras razões para isto, e uma delas tem relação com a enorme vontade por redução. O que Beckett fez, foi criar um mundo completamente reduzível. Não há nunca pequeno o bastante. Você pode sempre tirar mais.
Pegue a trilogia: Molloy, Malone Morre, O Inominável. No início há algum tipo de roteiro e certo tipo de personagens. Então no segundo livro, você apenas tem Malone, que está morrendo sozinho em seu quarto e que está inventando histórias enquanto aguarda pela morte. O espaço diminuiu, não há mais uma viagem. E então, você tem o terceiro livro, onde você nem ao menos tem isto. Você não tem o espaço, você não tem o personagem, você apenas tem a voz. Uma voz que apenas divaga e continua, e que não mais importa o que é dito no final. É apenas um mero impulso de perseverança, de persistência, que conduz a coisa toda. Então apenas persista. Você precisa seguir. E você sabe como termina, acaba do modo mais bonito possível: “Eu devo seguir, eu não posso seguir, eu seguirei”.
Penso que este é um ponto incrível, não achava que a literatura tivesse ido tão radicalmente longe assim. Isso é tão completamente reduzido ao mínimo possível, é o que Beckett chama de “the unnullable least”. E extremamente poderoso.
Wgk: Então o que realmente é arte?
Dolar: Penso que fazer arte é gerar um rompimento. Este seria o modo mais simples de responder à sua pergunta.
Mas existem modos diferentes de responder isto. Um deles seria ir até a teoria de Freud, que olha para arte através dos binóculos de espião da sublimação. Penso que o que Freud entende enquanto pulsão, ‘der Trieb’, na realidade tem relação com a transição entre algo natural e a criação de um espaço diferente, e que tudo que ele descreve enquanto a especificidade da cultura na realidade tem relação com a estrutura da pulsão. A pulsão é como a frustração em sua forma natural, torna-se frustrado diante de um modo de fim diferente. Isto é como um suposta necessidade natural, mas que no processo de se satisfazer acaba por se frustrar. Produz algo distinto da mera satisfação de uma necessidade natural. Se você olha para o modo como Freud descreve cultura em Unbehagen in der Kultur ele define cultura com uma lista de características.
A primeira da lista seria a questão de ferramentas. Estamos desenvolvendo mais e mais ferramentas, para nos tornarmos os mestres da natureza, para que possamos fazer todas as coisas mágicas, podemos olhar à distância usando telescópios, podemos enxergar o invisível usando microscópios, podemos falar à distancia usando o telefone, podemos fazer coisas absolutamente mágicas. E Freud usa esse maravilhoso mundo, como ele diz: “Der Mensch ist ein Prothesengott”. Então ele é um deus com próteses. Você só precisa de próteses para ser um deus. Então você tem essas extensões do corpo. E o que realmente a vontade de dominar a natureza produz ao mesmo tempo – algo mais que a simples dominação da natureza – produz próteses, algo “entre espaços”, um espaço que prolonga seu corpo, prolonga seu corpo no mundo. O espaço estranho entre o interno e o externo é libidinosamene investido. E, para resumir, isto também é a área onde a cultura está.
Wgk: Você tem alguma ideia do que é boa arte? Qual arte você toma enquanto boa?
Dolar: Bem, isto não é uma questão subjetiva. Há uma tendência forte de reduzir a questão do gosto. E a questão do gosto é um tanto perigosa porque sempre remete à questão do narcisismo. Há algo profundamente narcísico no julgamento das preferências. “Eu prefiro isto, eu sou um conhecedor, eu prefiro os ultimíssimos quartetos de Beethoven do que suas sinfonias”. A diferença que quer dizer diferença enquanto tal e que quer dizer que você é distinto e que você pode distinguir-se do comum das outras pessoas por ser um homem de gosto refinado, para ver todas essas diferenças que os outros não conseguem ver.
Eu tenho este conceito de arte, que arte tem algo a ver com a universalidade e com o infinidade. Produz algo na continuação do ser, na continuidade de nossa sobrevivência. Uma quebra. Que é uma quebra universal. Uma quebra para a universalidade. Pode dizer-se universalmente. O que é importante na arte não é uma questão de ser a expressão de um certo indivíduo ou se é uma expressão de um certo grupo étnico, nação ou certo período.
Eu penso que a quebra é tamanha que faz o universal das particularidades.
Mas o problema é como fazer isto com os meios subjetivos à sua disposição, por meio da nação em que se pertence, ou sua língua, cultura, por meio de um tipo particular de civilização, por meio deste momento histórico – que são coisas muito finitas e singulares. Como produzir universalidade e infinidade disto? E isto, eu penso ser o momento da arte. Isto não é uma produção do espírito, isto é uma produção material da quebra. Eu gosto muito do dito, que vemos pelas camisetas dizendo: “Arte é um trabalho sujo, mas alguém tem de fazer”. Você precisa sujar suas mãos. O que uma coisa muito material. Você produz a ideia com o material, com a matéria. A arte sempre trabalhou com o sensitivo. Se algum tenta alcançar imediatamente a universalidade ou a infinidade de um além, uma ideia, o sublime ou seja lá o que – isto é, penso eu, um grande equívoco. Você não pode fazer isto. Você apenas pode produzi-lo da maneira difícil. Mas depende da capacidade de se produzir essa quebra.
E isso delimita o critério pelo qual se pode julgar. Eu não penso que pode ser julgado por base de gosto, não se trata apenas de uma questão de se eu gosto ou não. Tem o poder de produzir universalidade. Cria uma potencial audiência virtual que vai muito mais longe que esta audiência de agora. E penso que a atenção que vai para além disto, para além do meu gosto particular e reação, é isto que faz um boa arte.
WgK: A arte é um benefício para a sociedade? Por que tem de haver alguém para fazer este trabalho sujo?
Dolar: Bem, eu penso que na questão pela qual comecei, a questão de delimitar essa linha, de fazer um corte na continuidade do nosso ser animal ou social, do nosso ser finito, que é isto que define humanidade. Não estou dizendo que arte é apenas o que faz isto. Isto é a prática da filosofia. Eu penso que a filosofia, de modo semelhante, mas também muito diferente, gera uma quebra conceitual na continuidade particular dos dados modos de pensar.
Nós temos a definição de um homem como homo sapiens, mas o trabalho é que o pensar é muito raro. Não é que o homem pensa o tempo todo, acontece muito raramente. Existem poucas ocasiões em que o pensar ocorre e quando acontece, altera profundamente os mesmos parâmetros dos modos com o qual concebemos o mundo, nós mesmos, tudo o mais. Há um punhado de pensadores. Isto é algo estranho na história da filosofia, só há um punhado de pensadores com que temos que lidar continuamente. Mas eu não penso que – e isso é importante – que o pensar é alguma prerrogativa da filosofia, que filósofos são especiais por terem essa especialização do pensar. Eu não penso isto de modo algum. Eu penso que o pensar pode ocorrer em qualquer lugar. E silêncio e…
WgK: Isso também ocorre na arte?
Dolar: Ah sim. Com certeza ocorre. Tem um modo diferente e a questão do trabalho de arte com o sensitivo, com o material sensitivo que é importantíssimo, isto é o pensar materializado. É o pensar que trabalha por meio da matéria e molda o material. É anexado à matéria, e a matéria pensa na arte. Isto é muito importante, a materialidade do pensar. Eu penso que o pensar realmente ocorre num número de áreas do empenho humano. E arte é um dos que maior reflete isto.
WgK: Quais são os outros?
Dolar: Você está familiarizado com o trabalho de Alain Badiou? Ele tem uma listagem de quatro procedimentos, quatro áreas donde a verdade emerge.
Estas são: A ciência, e acima de tudo as ciências completamente construídas como a matemática. Não se refere à nada no mundo, apenas cria suas próprias entidades, entidades puras. Então: Poesia e arte enquanto tal. Então, a política. Política não de opiniões mas a política da verdade. Há uma oposição aí entre ambas. Democracia basicamente é a democracia de opiniões. Qualquer um é livre para sustentar qualquer tipo de opinião e então você conta dos votos. Isto não é uma política da verdade. Há uma espécie de verdade em jogo na política que tem relação com a justiça e a igualdade, e tem relação com uma ideia. E então, há a questão do amor, que é a emergência de um evento verdadeiro. Um evento subjetivamente verdadeiro.
Badiou lista as quatro áreas como áreas em que a quebra ocorre. Não tenho certeza de que esta lista seja a melhor, que seja exaustiva ou conclusiva. Talvez essa lista, de certo modo, seja arrumada demais. Eu penso que as coisas na vida são bagunçadas. Em muitas situações diárias, até nas mais triviais, pode haver uma quebra repentina e inesperada, pessoas demonstram uma criatividade inventiva e fazem coisas completamente inesperadas, e realmente mudam os parâmetros da situação e suas próprias vidas e a vida dos outros. Eu deixaria esse campo em aberto.
WgK: Eu acabo de ter um pensamento espontâneo se o humor poderia ser uma destas áreas também?
Dolar: Bem, você tem uma antiga sugestão que resgata Aristóteles, a de que o homem é um animal que ri. Você tem muitas propostas para a definição de homem, uma é a do animal que pensa, outra é a do animal que produz ferramentas, que resgata Benjamin Franklin. Marx leva esta como a determinada maneira com que alguém pode definir o homem por meio da ferramenta que condiciona sua capacidade de trabalhar. E então você tem a sugestão de Aristóteles: Homem é um animal que ri. O único animal que pode rir – rir do que? Rir, precisamente, de ser capaz de produzir certa quebra. A quebra do sentido, no próprio parâmetro do fazer sentido. Um modo de descrever isto poderia ser como eu comecei – produzir uma quebra, produzir um corte – que é também produzir uma quebra no significado para que se produza sentido, se eu puder me valer desta oposição de Deleuze entre significado e sentido. O próprio horizonte de significado no qual nos movemos, no qual vivemos nossas vidas. E esta é a capacidade da arte.
No que toca o humor, eu apenas apontaria que há a questão de humor e há a questão de “Witz” [“piada”]. Freud escreveu um livro sobre “Witz” e um papel diferente para o humor e ele diz que essas coisas absolutamente não podem ser confundidas. Acrescentando que há a questão da comedia e a questão da ironia. Então temos quatro coisas diferentes que não são a mesma. Nós podemos rir como resultado, mas uma risada e uma risada. A risada por si não tem nada de subversivo. Ela também pode ser muito conservadora.
WgK: Quem se torna um artista? O que faz com que pessoas se tornem artistas?
Dolar: Eu não penso que haja uma regra. Há a capacidade, bem, a capacidade de produzir-quebras. Do modo como nos relacionamentos com nós mesmos é sempre condicionada por uma quebra, há uma questão do redobrar-se. A cultura é sempre uma questão do redobrar-se: se redobra a vida “normal”. Se reflete em outra coisa, mas o redobrar está sempre lá.
WgK : Mas ainda existem pessoas que não se tornam artistas ou intelectuais.
Dolar: Não, não, é claro. Eu penso que a capacidade está lá, e é uma capacidade que define a humanidade e a subjetividade. E… como diabos você se torna um artista? Quais coisas em particular tem de se agruparem? Eu penso que o que gera a grandiosidade da arte é precisamente sua singularidade. O que quer dizer que se você pode estabelecer esta regra a arte pararia de ser arte.
WgK : Mas não poderia ser que há alguma razão para que as pessoas comecem a produzir arte? Robert Pfaller certa vez sugeriu que artistas poderiam ter passado por alguma experiências traumática que estes – pelo resto de suas vidas – tentam lidar por meio da arte.  
Dolar: Não temos nós todos que lidar com certo tipo de experiência traumática? É muito difícil afirmar isto. Digo, a questão foi posta inúmeras vezes, então você tem escolas de arte que lecionam tudo exceto aquilo que é essencial.
WgK : Sim, mas a escola de arte começa já no momento em que você decide entrar numa escola de arte. Quem é são esses que decidem ir para uma escola de arte? Então vejo dois aspectos para essa questão. Primeiro: Como você se torna um bom artista? E a outra questão – que realmente me interessa – que é: Por que alguém quer se tornar um artista? Não importa se bom ou ruim, se com sucesso ou não: O que faz uma pessoa seguir este caminho?
Dolar: Se você quer se tornar um artista, o que você precisa se tornar? Se eu tomar alguns dos grandes músicos de todos os tempos, como Bach e Mozart ou Haydn. O que você pode ver? Quem foi Haydn? Ele foi contratado pela família Esterhazy como um artífice. Quero dizer, ele queria se tornar um artista? Eu não acho que ele nem ao menos penso em si mesmo deste modo na realidade. Ele era uma artífice pago. E se você tomar Mozart, ele esteve o tempo todo tentar ser contratado por alguma corte ou algo assim. Se você tomar Bach, ele era empregado pela igreja de St. Thomas em Leipzig para produzir as peças musicais para as missas semanais.
Não se trata de questão de genialidade ou inspiração. Você foi contrato. Porque isto era outro oficio e eu não penso que ninguém olharia para si mesmo do mesmo modo hoje. Se você quer se tornar um artista você não quer se tornar um artífice. Você se vê como uma pessoa com uma vocação muito especial, que vai além de todas as vocações usuais. Isto se dá por conta do modelo romântico de arte e depois das conceituações modernistas.
WgK : Vamos continuar com o modo atual de se compreender arte: você pensa que artistas são narcisistas?
Dolar: A questão da arte e do narcisismo… Eu diria que por um lado é profundamente narcisista. É geralmente ligado à uma projeto de narcisismo profundo da auto-expressão e o tesouro precioso que possuo em mim mesmo e que quero compartilhar com o mundo… Mas eu penso que isto é o que faz a arte. Como eu disse anteriormente: Arte não é expressão. Não é uma expressão de si mesmo. Pessoas podem querer fazer isto para se expressarem, mas o que gera a quebra e o que lhe dá seu apelo universal, a afirmação da arte, não é uma questão de se expressar-se ou não. Nunca é esta a questão pela qual a arte é julgada. Então, por outro lado, eu tenho certeza que a motivação para fazer isto é na maioria dos casos narcísica.
WgK: Eu lhe compreendi corretamente quando você disse que a arte não é uma expressão – você poderia então dizer que a arte é uma das ‘Prothesen’?
Dolar: Sim. Ah, sim.
WgK: Eu realmente gosto desta imagem
Dolar: O “Prothensengott”? Sim. Mas bem, Freud o usa no contexto da tecnologia e da produção de ferramentas.
WgK: Tenho a impressão de que isto é muito bom, talvez não apenas para ferramentas?
Dolar: Sim. É uma coisa boa. Não é apenas a questão da ferramenta. Uma ferramenta nunca é uma ferramenta. É uma extensão do investimento libidinal do corpo.
WgK: Então você poderia afirmar que a arte é uma extensão libidinal de si. Do corpo.
Dolar: Bem, tem alguma relação com a extensão libidinal. O modo como Freud introduz a noção de próteses, tem mais relação a tecnologia do que com a arte. Mas eu penso que é ainda assim, uma metáfora válida também para pensar a arte.
WgK: Você poderia chamar este de objeto a? Arte como uma extensão em direção ao objeto a?
Dolar: Bem, sim. Eu não queria usar o linguajar lacaniano profundamente técnico para isto. Digo, isto pode ser descrito em outras linguagens, mas o que Lacan chama de objeto a é precisamente o objeto da transição entre o interior e o exterior, o que não recai completamente nem no interior ou no mundo exterior lá de fora, o mundo objetivo. Quero dizer que não é nem subjetivo e nem objetivo. Deste modo é sempre nesta zona de indeterminação, na zona que se abre entre ambas. Que é a zona do ‘Prothesen’ se quiser, digo, o Prothesen sempre preenche essa zona: você introduz algo entre sujeitos e objetos. Você estende seu corpo no mundo, e ao mesmo tempo o mundo se estende em você. Ainda assim, o que Lacan chama de objeto a não coincide com qualquer objeto existente, não possui nenhuma substancia em si, enquanto a arte produz objetos existentes do qual a tarefa é evocar este objeto impossível. Invocar o impossível.
WgK : Você concorda que artistas e filósofos compartilham semelhanças nas realidades em que vivem?
Dolar: Sim. Eu penso existir um grande terreno comum. As ferramentas com que eles trabalham são diferentes, mas penso que estes trabalham em um terreno comum e estes não podem ser tão claramente delineados. Uma maneira de diferenciação – que eu pessoalmente não gosto – é dizer que os artistas tem as paixões e os sentimentos e que trabalham com isto, enquanto filósofos possuem a razão e a compreensão, e trabalham com isto. Eu não penso que essa oposição seja válida. Nunca funciona deste modo. Eu penso que qualquer atividade do ser humano possua ambas: paixão e razão, indiscriminadamente, inscritas nesta.
Se você procurar na história da filosofia – veja Platão, veja Espinosa, veja Agostinho, veja Hegel, Marx, Kant, Wittgenstein – sempre há uma imensa paixão. Há uma imensa paixão em jogo aqui. Eles são guiados por esta paixão. Descrever isto apenas como mero trabalho da inteligência é completamente equivocado. Esta é uma concepção comum bastante errônea da filosofia, da racionalidade e dos conceitos. Se não envolver uma relação apaixonada e um compromisso apaixonado, então não é filosofia. Há muita, muita e séria paixão em trabalhar com isto. E no final oposto eu também penso que há pensamentos extremamente preciosos envolvidos na arte. E se não, então não é boa arte.
Wgk: Nós estávamos conversando sobre paixão e razão – você pensa que artistas e filósofos podem ter família? Você pensa ser possível fazer um trabalho tão ambiciosamente organizado ou apaixonado e, ainda assim, ter amor por outras pessoas?
Dolar: No geral, eu não vejo porque deveriam ser coisas exclusivas. Mas esta não me parece uma questão que concerne apenas à arte. Penso que é uma questão em que toca qualquer modo de relação profissional apaixonada. Digo, poderia ser um advogado, um político, um cientista, um professor, qualquer uma destas. Poderia ser um esportista, poderia ser qualquer tipo de coisa e se produzirão problemas, problemas bastante práticos, como diabos você lida com sua família, com seu amor, com sua vida privada. Eu imagino que depende muito no tipo de pessoa que você é. Existem pessoas que apagariam de algum modo todo o resto e existem pessoas que encontram um modo, seja como for. Ambos podem trabalhar por vinte horas por dia e ainda assim, encontrar um modo de possuir uma vida privada.

in LavraPalavra blogspot.com

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Fronteiras do Pensamento - Fredric Jameson [parte I]


Terry Eagleton

Ilustração: Cynthia Alonso
Ilustração: Cynthia Alonso
Quando se pensa nas grandes figuras da crítica literária contemporânea, um dos primeiros nomes a despontar como unanimidade é o de Terry Eagleton. O pensamento do filósofo e crítico literário realiza uma síntese da ideologia marxista com os cânones da literatura ocidental.
A partir da década de 1960, juntamente com os nomes de Eric J. Hobsbawm, Fredric Jameson e Perry Anderson, começa a contribuir com a publicação da New Left Review - uma revista de crítica cultural da Universidade de Oxford que criticava tanto o liberalismo radical quando o pensamento marxista ortodoxo. Preciso e metodológico, uma das características principais do estilo de Eagleton é o bom-humor.
Afastando-se do lugar-comum do pensador crítico carrancudo, se coloca diante do panorama político contemporâneo pensando em soluções para além da crítica. Encontra, porém, no otimismo extremo, um obstáculo para o progresso das relações sociais. Para o autor, este deve ser pensado e experimentado com cautela, já que pode servir como forma de alienação.
Este e outros temas foram discutidos pelo pensador em entrevista para o jornal El País. Confira abaixo.
Terry Eagleton foi conferencista do Fronteiras do Pensamento em 2010.

Terry Eagleton: “O fundamentalismo não é ódio, é medo.”| RAFAEL GUMUCIO
Terry Eagleton (Salfold, Reino Unido, 1943) não deixou um minuto em paz tanto conforto pós-moderno. Antes que Zizek ou Badiou se transformassem em inevitável moda contracultural, ele se dedicou, a partir da literatura, sua principal especialidade, a apontar um por um os lugares comuns dos bem-pensantes da vez. Sucessor do crítico literário e cultural marxista Raymond Williams, uniu a essa não conformidade militante uma sólida educação católica que as leituras e os anos, em vez de aplacar, aprofundaram. “Como diz o Novo Testamento, reconhecerás Deus quando vires os pobres se encherem de coisas boas e os ricos sendo despachados sem nada”, conta por correio eletrônico. “O cristianismo e o marxismo têm um vínculo óbvio em que os dois querem ver os pobres conquistarem o poder. A diferença é que isto, para a fé cristã, é um assunto escatológico, ou seja, que vai além da história, enquanto que o marxismo espera vê-lo realizar-se dentro da história da humanidade.”
Esta adesão dupla à mudança social e à fé católica o levou a polemizar muito com um estranho ser que ele chama de Ditchkens, que não é outra coisa que a mescla perfeita do biólogo Richard Dawkins com o falecido polemista Christopher Hitchens, porta-vozes do novo ateísmo militante e da intervenção norte-americana no Iraque.
Esse tipo de jogo de palavras é a surpresa perpétua de quem se aventura em livros tão conscienciosos e desapiedados como Marx Estava Certo, Ideologia ou Depois da Teoria. Para não falar de suas imprescindíveis memórias, The Gatekeeper: A Memoir (O Porteiro: Memórias) emocionantes e hilárias. “O humor para mim está intimamente ligado ao sem sentido”, diz. “As atividades mais valiosas não têm nenhum propósito ou função além de si mesmas: tocar música, fazer amor, tomar vinho, brincar com os filhos. O mesmo se poderia dizer das piadas. É compartilhar a vida porque sim.”
Mas o normalmente sarcástico e implacável Eagleton, para surpresa de todos, incluindo ele mesmo, parece querer passar da crítica à proposta. Não se trata de otimismo, explica várias vezes em seu último livro – intitulado justamente Hope Without Optimism (Esperança sem Otimismo)—, porque o otimismo é para ele “uma forma de desespero”, mas de uma velha virtude teologal reativada pelo historiador marxista Ernst Bloch: a esperança: “A esperança é um tipo de desejo, mas um que o vincula com um tipo de expectativa. A esperança tem que ser, de alguma forma, viável; tem que ser possível de ser realizada, enquanto o desejo pode não ser. Você pode desejar ser Mick Jagger, mas não pode esperar sê-lo”.
Mas, que podemos esperar da esperança em uma Europa em crise que só parece estar de acordo em estar em desacordo? “Continuamos esperando conseguir as coisas que tradicionalmente quisemos: justiça, igualdade, fraternidade, ausência de pobreza e de violência, etcetera. É pouco provável que exista alguma vez uma sociedade de seres humanos sem violência ou injustiça de algum tipo, mas, dados os recursos globais que possuímos, está totalmente dentro de nossas possibilidades acabar com a pobreza. Nosso sistema de propriedade é o que impede que isso aconteça, e claramente poderia ser mudado.”
Soa então inevitável a palavra revolução, que não é de todo estranha nesse tenaz militante do Partido Socialista dos Trabalhadores. “Quando as pessoas escutam a palavra revolução pensam imediatamente em sangue e barricadas. Mas houve revoluções de veludo, como também revoluções violentas. A revolução bolchevique esteve bastante livre de violência. Alguns processos de reforma foram muito mais sangrentos que algumas revoluções. De todo modo, as revoluções não ocorrem de um dia para o outro. As revoluções que deram lugar às sociedades modernas de classe média levaram séculos em sua evolução. Marx enaltece as classes médias como a força mais revolucionária jamais vista na história da humanidade. Suponho que um revolucionário seja alguém que acredita que não é possível ter o tipo de justiça e bem-estar que necessitamos sem uma transformação completa. Isso, para mim, seria um ponto de vista realista, não extremista. A queda do apartheid na África do Sul também foi uma revolução (política, não econômica) e ninguém considera fanático ou extremista tê-la apoiado. Todo aquele que acredita que foi correto que os Estados Unidos deixassem de ser uma colônia é um defensor da revolução. Ou seja, mais ou menos todo o mundo é.”
Eagleton se defende ao longo do livro de ser um otimista, mas está muito longe de ser um pessimista. Quando se pergunta a ele se o mundo está pior ou melhor que há 50 anos, não duvida em responder que melhorou em aspectos fundamentais. Sua querela com o otimismo como ideologia se baseia justamente em sua falta de fé em que o mundo ainda poderia melhorar muito mais: “A pergunta é se é viável empreender mudanças que poderiam modificar nosso mundo de modo significativo. E a resposta realista a esta pergunta é, sem dúvida, sim. Nesse sentido, os realistas são aqueles que acreditam na possibilidade de tal transformação, e os que têm a cabeça nas nuvens são os que pensam que as coisas sempre continuarão mais ou menos como sempre foram. Por volta do ano 2000, os teóricos falavam da suposta morte da história. Segundo eles, a história, efetivamente, estava acabada, o capitalismo era a única opção a nosso alcance, e nada dramático poderia acontecer. Logo depois dois aviões se espatifaram contra o World Trade Center. Daí tivemos a suposta guerra contra o terror, depois um dos maiores colapsos da história do capitalismo, depois as primaveras árabes, a crise da imigração, etcétera.”
O auge do fundamentalismo está ligado, para Eagleton, a uma outra de suas obsessões: como ler ou como não ler ficção ou poesia? “O fundamentalismo, de qualquer tipo, é essencialmente um equívoco que se comete quanto à natureza da leitura. Ele imagina que o significado dos signos se fixa imutavelmente ao longo dos tempos. Mas a verdade é que um sinal cujo significado não pudesse se alterar entre um contexto e outro simplesmente não seria um signo. Os signos devem ser, por definição, portáteis: podem ser transportados de uma situação e acumular novos significados na interação com os signos que os cercam. Por isso, não pode haver leitura sem interpretação.
Para Eagleton, “o fundamentalismo tem suas raízes não no ódio, mas no medo, o medo de um mundo moderno e mutante, em que tudo está em movimento, onde a realidade é transitória e com um final não definido, onde as certezas e os pilares mais sólidos parecem ter desaparecido. Nesse sentido, é a outra face do pós-modernismo”.