domingo, 29 de outubro de 2017


Mas a arte não é feita para chocar?

Há um paradoxo embutido na gritaria moralista da chamada “nova direita” contra o homem nu no museu, e na devida reação a essa gritaria esboçada pela esquerda e agregados.

Por Pedro Rocha de Oliveira.

Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Onde ninguém nos vê
– Belchior
Há um paradoxo embutido na gritaria moralista da chamada “nova direita” contra o homem nu no museu, e na devida reação a essa gritaria esboçada pela esquerda e agregados. Esse paradoxo diz respeito ao sentido da obra de arte: em especial, à sua pretensão de proporcionar a surpresa e o choque.

Tecnicamente falando, esse é um traço da arte moderna; porém é possível mostrar que se trata de algo inerente à arte em geral. Afinal, o que caracteriza a experiência artística é um contraste entre as coisas e ideias apresentadas pela arte – seja cênica, plástica, musical, literária – e as texturas usuais da realidade. Mesmo quando falamos de uma obra “realista”, o que está em jogo é a percepção especial e maravilhosa que o artista conseguiu transformar em objeto estético: se não houver maravilhosidade, então a obra fica inserida no contínuo do cotidiano, não contrasta com ele em nada, e é indistinguível de uma coisa qualquer.
Em grande parte da história da arte – ou pelo menos daquilo que usualmente compreendemos como arte pré-moderna – essa maravilhosidade, esse estranhamento, aparecia principalmente sob a forma da beleza: o corpo pintado ou esculpido era mais belo que os corpos usuais, ou, através do gênio do artista, evocava o que havia de mais belo nos corpos reais. Mas a arte também tinha uma função catártica, segundo a qual a história contada envolvia as dores, aspirações e enlevos de pessoas mais ou menos comuns, apresentados de tal forma a permitir ao público uma experiência particularmente nítida e intensa daquilo que lhe constituía o resto do tempo, quando estava vivendo ordinariamente, sem experiência estética. Contudo, mesmo nesse caso, em que não necessariamente se tratava de mostrar a beleza, era algo da mesma ordem – a superabundância de sentido – que marcava a arte.
Com a arte moderna, a produção estética do maravilhoso e do inusual se desvia dessa centralidade da beleza e do sentido. É difícil e em certa medida errôneo generalizar o movimento moderno; em termos amplos, contudo, podemos dizer que nele saem da ordem do dia a realização das ambições pessoais, o bom gosto da classe média, o aplacamento sensorial, e, em seu lugar, entra uma atenção ao desencaixe, à dissonância, ao inadequado. Fazer arte passa a dizer respeito não mais à produção de experiências melhores do que a realidade cotidiana, em contraste com as quais a realidade cotidiana podia ser melhor entendida, mas à produção de algo que chamasse atenção para a maneira como a realidade estava em si mesma caindo aos pedaços. Essa compreensão moderna de arte é um fenômeno com data de nascimento mais ou menos precisa: das últimas décadas do século XIX às primeiras décadas do século XX, época em que o mundo da classe média tradicional – os principais consumidores de arte – está desmoronando. O efeito de choque da obra de arte é, então, destilado por gerações de artistas agudamente sensíveis aos efeitos culturais do colapso da fase livre-concorrencial do capitalismo.
Um exemplo eloquente disso é o emprego da colagem pelo surrealismo, no início do século XX. Tratou-se de uma reação à fotografia, que inicialmente aparece como capaz de – através de avanços técnicos então recentes – representar a realidade com fidelidade praticamente total. Recortando as imagens fotografadas, embaralhando as figuras representadas, e juntando-as em combinações bizarras, embaraçosas, insólitas – retirando-as do contexto em que apareciam na realidade cotidiana, portanto – o discurso da colagem surrealista era mais ou menos de que, se as coisas no início do século pareciam estar todas em seu lugar, na verdade não estavam. Através de corte e colagem, enfiava-se um acrobata curvado sob o nariz de um senhor respeitável, como se fosse um bigode, adicionando ainda uma pizza gigantesca às suas mãos, e colocava-se tudo pairando sobre um panorama de uma grande cidade, no meio de um emaranhado de outras imagens igualmente desconjuntadas e rejuntadas. Então, chamava-se aquilo de arte – ou seja, algo comparável ao teto da Capela Sistina – e, de fato, produzia-se o furdunço visual com maestria, equilíbrio, contraste, humor. A mensagem era: quando você olha para o mundo, e vê tudo funcionando, lembre-se de que as coisas continuariam funcionando ainda que estivessem em total desordem; de fato, essa ordem à qual você está acostumado está prestes a ser destruída; e talvez o pior seja que, apesar de toda a violência, tudo continuará sendo o que é. Mensagem fatídica às vésperas da Primeira Grande Guerra…
A ousadia visual da colagem foi alvo de repugnância, crítica, narizes empinados, receptividade vanguardista e discussão teórica. Contudo, para entender completamente o que os surrealistas queriam dizer, é preciso lembrar-se de que seu programa estético – na Espanha, por exemplo – não incluía apenas controversos deleites para os olhos, mas também passeios noturnos de carro com a finalidade de encontrar e espancar padres e policiais.* Eram, afinal, as vésperas do desencadeamento do assassino regime franquista, e não dava para ficar apenas fazendo as pessoas “verem o mundo de outra forma”. De fato, vários dos surrealistas tinham filiação política com o comunismo e o anarquismo.
É claro que, tanto no que diz respeito ao fator de choque estético quanto ao contexto político, muita coisa mudou desde a modernidade artística até hoje. Em particular, um discurso amplamente aceito diz que existe um rompimento entre a arte moderna e a estética da performance na contemporaneidade: em especial, a performance contemporânea trabalharia com a continuidade entre o cotidiano e a arte. É assim que artistas se sentam para fumar, defecam, depilam-se, dormem, fecham-se em caixas, despem-se, etc., em praça pública ou num canto do museu. Para efeitos do meu argumento, contudo, seria bom que o leitor benevolente prestasse atenção na continuidade da pretensão estética na arte contemporânea e na moderna. Ainda que – como se diz – o “questionamento” entre os limites da arte e da vida esteja posto na performance, também está posto o apelo à experiência especial, inusual, que, se não encanta, “faz com que você pare e reflita” ou “vivencie”.

No fim das contas, o que está em jogo é algo muito simples: na experiência artística tem que acontecer algo especial; se não, para quê fazer a arte? Isso se aplica ao caso do cara que fica nu no museu, também. A gente não fica nu no museu usualmente (não obstante a frequência com que a nudez é tematizada pela performance contemporânea). Aí, você está no MAM e, de repente, pimba: um cara pelado deitado no chão. Conforme for, você pode se deixar levar pela experiência ligeiramente inusitada e possivelmente desconfortável; pode se abrigar num sorriso condescendente, assistir de braços cruzados e a uma distância segura; pode realmente entrar no jogo e resolver interagir com o sujeito. De todo modo, a possibilidade de que alguém se sinta profundamente ofendido pela performance não pode ser descartada: afinal, toda a graça é justamente que o sujeito está nu, e as pessoas não ficam nuas em público, e na frente de desconhecidos, porque possuem inibições de ordem moral, sexual, etc. Se, por isso, tais inibições são a condição para a performance ser de interesse, a possibilidade da reação indignada está posta desde sempre.
Esse paradoxo tem implicações políticas, também. Por um lado, é indiscutível o caráter autoritário da intromissão do Estado em assuntos de teor moral e cultural; por outro lado, se não houvesse forças sociais propensas a objetar com bases morais, e capazes de transformar sua objeção em prática, qual seria o barato da performance? Nenhum. De fato, quando se pensa nisso, o que parece pedir explicação não é o porquê de existir uma reação moralista – que, afinal, tem que ser provocada, ou a arte perde a graça – mas sim o porquê de haver gente que não se indigna, não manifesta repugnância, etc.
É claro que aqueles que defendem a liberdade de manifestação no museu não estão defendendo seu direito de ir ao museu para se sentirem indignados e ofendidos, mas para se exporem a experiências especiais. Ao mesmo tempo, a tolerância geral ao cara pelado deitado no chão significaria que o caráter especial da experiência da performance em pauta já desapareceu. Se ninguém sai de sua zona de conforto psíquica, estética e moral diante da performance, então a performance, na verdade, não está acontecendo: nada está acontecendo. Se a classe média culta e progressista leva a performance na boa – se existe uma tolerância à experiência que a performance quer produzir – então é porque ficar pelado em público já não é o que era antes: tornou-se algo pouco especial.
O paradoxo aí é que um público só considera de bom gosto deixar-se “desafiar” pela arte quando esse desafio já perdeu a maior parte de seu efeito de choque. Como não faltou quem lembrasse na polêmica que se seguiu à censura da performance em pauta, qual é o grande problema da nudez, afinal, se dá pra ver bunda e peito em qualquer novela da Globo? O negócio é que essa pergunta retórica também coloca em dúvida a relevância da performance. Se a nudez é tematizada o tempo todo – de fato, está no centro do bombardeio de imagens que é central à produção contemporânea de mercadorias, insinuada constantemente em propagandas de modelador capilar, sabonete, roupa, cerveja, etc. – então ficar pelado na frente dos outros está de boa, e fazê-lo no museu deixa de ser especial. Exceto, é claro, para aqueles que também reclamam da nudez na novela das dez, em geral os elementos tidos como mais sexualmente conservadores na sociedade – os quais, contudo, não vão ao museu expor-se de bom grado a contatos imediatos de segundo grau com os aparelhos reprodutores dos outros.

Assim, quem vai no museu ver o cara pelado é porque está vacinado contra a visão de gente pelada. E quem não está vacinado não vai ver o cara pelado – como, aliás, também não faltou quem observasse, afirmando jocosamente que as estatísticas de frequência ao MAM ficariam inalteradas se os elementos conservadores resolvessem amanhã promover um boicote ao museu.
Essa piada tem um caráter de classe que eu gostaria de examinar em uma outra oportunidade. Por ora, vale a pena prestar atenção na questão que acabou ficando no centro do debate sobre a performance: o fato de que crianças que visitavam o museu interagiram com o cara pelado. É nisso aí que culmina a repugnância daqueles que atacaram a performance com base moralista. E é nesse ponto, também, que a tentativa de defesa da performance encontra um limite bastante difícil de ser transposto por qualquer público. É que, no coração da tolerância à nudez no local público, está um gesto estético e psíquico que despotencializa a nudez, eximindo-a de seu caráter sexual. Nessa versão da história, não tem problema a criança tocar o cara pelado, porque não haveria nada remotamente sexual acontecendo aí, nem de um lado, nem de outro. Mas então a situação é tal que o público culto de classe média pode ir ver um cara pelado se não quiser comê-lo; mas, se o negócio é sentir desejo, é preciso ir a locais escusos, frequentar cines de má fama, ou assistir pornografia na secreta intimidade do seu lar. E vice-versa, porque o público não está – e não estou querendo insinuar que deveria ser diferente – preparado para ser encarado como objeto sexual pelo sujeito pelado. Suspeito que se, no momento em que a criança tocasse o pé do cara, ele tivesse uma gigantesca ereção, a simpatia das pessoas cultas pela performance nudista desapareceria bastante rápido.
É assim que, no que tange à defesa da performance, sobretudo em face à presença de crianças, os argumentos precisam girar em torno do teor completamente dessexualizado do que aconteceu. Nesse ponto, os defensores da performance acabam concordando com seus detratores numa questão de fundo: é ruim que o elemento erótico do corpo esteja sendo tematizado ali. Aqui, grosso modo, os dois lados concordam em ser conservadores, e até retrógrados: afinal, foi por volta do início do século XX – na mesma época em que o surrealismo estava nascendo, aliás – que Sigmund Freud publicou seus primeiros trabalhos sobre o que ele chamou de “sexualidade infantil”, a qual não tem nada a ver com o coito – é bom deixar isso bem claro – mas tem muito a ver com formas complexas, ambivalentes, nebulosas e turbulentas de experimentar o prazer em seu próprio corpo e com os corpos dos outros. Mas enquanto o discurso dos tolerantes e dos intolerantes orbita a “inocência das nossas crianças”, seria interessante cronometrar quanto duraria a carreira de um artista performático que tentasse “questionar” esse lance num museu.
* Num “estilo” semelhante, o performer Piotr Pavlenski, no outro dia, colocou fogo numa agência do Banque de France em Paris. Agradeço a Clarice Chacon por chamar minha atenção para o ocorrido.

***
Pedro Rocha de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Organizador (em conjunto com Felipe Brito) e um dos co-autores do livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Felipe Brito) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

"A herança cinematográfica europeia necessita de ser resgatada do esquecimento"

O cineasta alemão fotografado nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa
O cineasta alemão Wim Wenders foi distinguido com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, atribuído pelo Centro Nacional de Cultura.
Em cerimónia realizada na terça-feira na Fundação Gulbenkian, o prémio foi entregue pelo Presidente da República que, na mesma ocasião, o condecorou com o grau de comendador da Ordem do Mérito. Como disse Marcelo Rebelo de Sousa, Wenders "nunca foi estrangeiro em Portugal" - ele é, afinal, um cidadão da Europa com uma obra de viajante pela pluralidade cultural do nosso continente e também, mais do que nunca, apostado em enfrentar os desafios da era digital.
O Prémio Helena Vaz da Silva consagrou-o, não apenas como cineasta mas enquanto personalidade do mundo da cultura europeia. Como encara tal distinção?
O que está em jogo é um certo empenho na Europa: a ideia de que necessitamos de algo para o futuro, algo que vem do passado e corre o risco de se perder. Não é, portanto, um prémio exatamente para mim, mas sim por aquilo que muitas pessoas estão a fazer, sendo eu apenas uma delas. Sou um empenhado europeu, filmei em toda a Europa e, quase involuntariamente, contribuí para preservar uma certa herança. Por exemplo, em Lisboa: filmei aqui no começo dos anos 80 [O Estado das Coisas], depois em 1990 [Até ao Fim do Mundo] e ainda em 1994 [Lisbon Story].
Que herança é essa?
A noção de herança é algo estranha: pode sugerir uma certa ideia de museu, mas não é disso que se trata - a herança é algo que diz respeito ao nosso futuro.
Na defesa dessa herança, qual a importância da Academia Europeia de Cinema a que preside?
Defendemos algo que não pode ser dado como adquirido. O cinema europeu está a ser atacado por uma indústria muito mais poderosa. É um cinema frágil, feito por países muito diferentes, mas o seu conjunto representa um valor fundamental: a nossa própria diversidade. E está a desaparecer. Quase tudo o que eu fiz há 40 anos está a desaparecer, a não ser que seja preservado, ajudando os filmes a entrar na nova idade digital. Hoje em dia, se um determinado filme apenas existe numa cópia em película, esse filme está morto - para viver, necessita de ser transferido para digital e, desse modo, aceder a várias plataformas. Grande parte da nossa herança necessita, assim, de ser resgatada do esquecimento.
Diz-se, por vezes, que há uma relação fraca dos espectadores mais jovens com os filmes europeus - concorda com esse ponto de vista?
Em muitos casos sim, é uma triste verdade. Mas também é verdade que onde quer que haja uma sala e pessoas empenhadas em mostrar cinema europeu devidamente contextualizado, os jovens mostram-se interessados, até mesmo entusiasmados. É fundamental educar os jovens para o cinema, começando nas escolas porque é a nossa herança que está em jogo. Há muitos jovens que cresceram sem a conhecer: ensinamos-lhes literatura ou pintura, mas não lhes ensinamos a arte mais ameaçada que temos, a arte das imagens em movimento.
Em vários dos seus filmes, como O Amigo Americano, Paris, Texas ou Terra da Abundância, encontramos uma relação forte com a cultura americana. Como avalia o peso dessa relação no seu universo criativo?
Cresci admirando a cultura americana, porque cresci num país destruído - a Europa não passava de uma ficção. A certa altura, era mais difícil ir à outra metade da Alemanha do que ir à Lua. A América era uma bela utopia, imensa e livre, refletida na beleza do seu cinema. Não havia cinema no meu país e, de facto, só mais tarde vim a conhecer Fritz Lang ou Murnau. A América apaixonava-me, não necessariamente através das ideias, mas pelo espírito, pela grandeza, pelas imagens que de lá chegavam. Aliás, não nos podemos esquecer que o cinema americano é, em grande parte, uma invenção de europeus, a começar pelos anos 20 e 30. No meu caso, foi depois disso que aprendi a admirar as minhas origens europeias, descobrindo cineastas como Bergman, Truffaut ou Godard.
Como evoluiu a sua própria perceção do cinema nos EUA?
Vivi dois períodos da minha vida na América, num total de 15 anos. Descobri que nunca iria fazer filmes americanos: era algo que não existia em mim, seria sempre um cineasta europeu - e o Sonho Americano foi-se dissipando. Vi os outros lados daquele imenso continente. Agora, estamos a ver o lado mais horrível, quase como um pesadelo.
No atual cinema americano, não haverá uma espécie de esquizofrenia entre as grandes máquinas de produção e os filmes que procuram outros modos de expressão?
Sim, muitos dos meus amigos americanos têm sérias dificuldades em trabalhar de forma independente. Eu sei, por experiência própria, que quanto maior é o orçamento com que trabalhamos menor é a possibilidade de dizer aquilo que se quer dizer. Quando se tem um pequeno orçamento, aí sim, podemos filmar como queremos - foi o que me aconteceu com Terra da Abundância, um filme feito na América, sobre a América, em que pude fazer exatamente aquilo que quis. Quanto mais dinheiro se tem, mais se é obrigado a obedecer à maquinaria do marketing. A maneira europeia de fazer filmes é diferente, vem mais da escrita, do teatro, da pintura - é mais inspirada pela vida, pela procura de respostas.
Essa procura de respostas vai refletir-se, de alguma maneira, no documentário que está a fazer sobre o Papa Francisco?
Nos nossos dias, os documentários são uma forma muito livre de trabalho. Aquele que estou a fazer ocupa-me há cerca de quatro anos, deverá ser lançado no próximo ano, e não é "sobre" o Papa Francisco, mas "com" o Papa Francisco. Entretanto, fiz um filme apresentado recentemente no Festival de San Sebastian, Submergence, que deverá estrear em Portugal no começo de 2018. É um dos filmes mais ambiciosos que já fiz, pelo orçamento e também pelo esforço que envolveu, tendo alternado a sua produção com o trabalho no documentário. Para mim, isso é muito importante: poder alternar os dois registos - sinto que cada um deles transmite energia para o outro.
Tendo em conta o poder de alguns filmes americanos no mercado europeu, o que mudaria se houvesse mais dinheiro para o marketing dos filmes europeus?
Seria, seguramente, um jogo completamente diferente. Para mim, o cinema americano não é o inimigo. Acontece que aquilo que temos na Europa é mais pequeno e mais frágil, o que no mundo de hoje implica o risco de ser rapidamente marginalizado. É um problema de toda a humanidade: as economias mais pequenas, os povos mais pequenos são marginalizados porque os mercados funcionam por processos de exclusão.
Imaginemos que lhe pediam para sugerir três filmes a jovens espectadores europeus, precisamente no sentido de começarem a compreender a herança cinematográfica europeia. Quais seriam as suas escolhas?
Acho que todos deviam ver algum filme de Ingmar Bergman: poderia ser O Sétimo Selo ou Morangos Silvestres, um qualquer... Todos refletem os mesmos valores e a mesma grandeza. Depois, um filme de Federico Fellini, Oito e Meio por exemplo. E todos deviam conhecer um filme de François Truffaut: todos os estudantes deviam ver Jules e Jim, Fahrenheit 451 ou O Menino Selvagem... Qualquer um, realmente, já que cada um funcionaria como um apelo para verem mais. Mas podemos também fazer uma lista de títulos menos "históricos", de anos mais recentes...
Como por exemplo...
Comecemos pela Itália: A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino. Consideremos a França: O Profeta, de Jacques Audiard. E a Alemanha: Adeus, Lenine!, de Wolfgang Becker. E não esqueçamos os espanhóis: é preciso introduzir pelo menos um Almodóvar nesta equação.
 in JN

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Fábio Fernandes explica por que China Miéville é o cara!

Autores

Estação Perdido – O estranho mundo de Miéville!

23.08.2016

Formiga Elétrica
Daniel Fontana
No campo da literatura de fantasia/ficção científica, a aclamação do nome China Miéville pela crítica especializada pode dar a impressão de que o inglês faz parte daquele famigerado ciclo do hype, mas uma rápida pesquisa sobre o currículo deste escritor peculiar, ainda jovem, demonstra que não é o caso. A quantidade de prêmios entre os mais importantes do gênero, mais os elogios rasgados de outros autores consagrados, merece atenção. Certamente, isso o destaca de alguns, cuja credencial, alardeada com orgulho pela galera do Oba Oba, é escrever livros como contratado de alguma franquia bilionária, ou ter os direitos de uma de suas obras comprados por um grande estúdio ou canal.
 
Objetivamente, o que esse cara tem de especial? Só para começar, ele tem um repertório literário vasto, não apenas em torno de ficção científica e fantasia. Muitas vezes, conhecemos um autor mais novo do gênero e não demora muito para percebermos em qual dos grandes nomes clássicos ele se inspirou, mas Miéville é um caso bem diverso. Encontramos influências de outros escritores em sua escrita, claro, mas ele cria sua colcha de retalhos a partir de elementos inusitados, como o realismo mágico latino-americano e o naturalismo, dando origem a um novo tipo de literatura fantástica. Se em A Cidade & A Cidade encontramos ecos fortes de As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, no meio de um caldeirão eclético, em Estação Perdido (Perdido Street Station) – lançado originalmente em 2000, chegando agora ao Brasil pela Boitempo – a gama de influências e a imaginação do escritor mostram um alcance bem maior.
 
Imagine algumas criaturas sencientes que parecem saídas de O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges. No meio delas, espécies tão assustadoras como uma descrição de Borges reimaginada por Clive Barker. Misturados em uma sociedade com humanos comuns, essa diversidade existe em um cenário imundo e decadente, lembrando uma tradicional Inglaterra Vitoriana Steampunk, com a magia (taumaturgia) coexistindo com a tecnologia rudimentar em alguns pontos e extrapolada em outros, tudo descrito com a propriedade meticulosa de um Jack London. Adicione também uma pitada da escrita de William Burroughs. Você pode ter feito um esforço considerável para pensar em algo com essa descrição, mas, ainda assim, nem ter se aproximado do grande exercício de imaginação que é essa tour de force do escritor prodígio.
 
Primeiro livro do autor ambientado no mundo de Bas-Lag, a história de Estação Perdido se passa na metrópole de Nova Crobuzon, governada por um parlamento corrupto e autoritário, que tem como ponto de intersecção a estação que dá nome ao livro. Essa sociedade retrógrada não vê com bons olhos o relacionamento interespécies, o que dificulta a vida do cientista humano Isaac Dan der Grimnebulin, romanticamente envolvido em segredo com a escultora Lin, uma khepri, cuja particularidade de suas fêmeas é ter um besouro no lugar da cabeça. Enquanto ele é contratado para ajudar Yagharek, um desesperado e melancólico garuda, espécie de homem-pássaro, ela recebe uma proposta irrecusável para criar uma peça única. Ambos veem suas respectivas oportunidades como grandes chances, mas a pesquisa de Isaac terá um desdobramento inesperado e trágico que afetará a cidade inteira e além.
 
Isso é muito pouco para descrever a torrente de personagens e seres bizarros que desfilam por seiscentas e poucas páginas, enquanto o autor vai descrevendo Nova Crobuzon com um detalhamento raro. O cuidado com o qual ele nos apresenta um pouco deste mundo alternativo, mais o mapa da cidade no início do livro, traz mais verossimilhança e faz o leitor passear mentalmente por esse local pouco agradável, porém fascinante. Esta não é uma história que nos poupa quando é preciso se esconder em um esgoto ou em um prédio abandonado. Toda nojeira que esperaríamos encontrar em uma situação como essa é relatada sem medo, tal como os tormentos que nossos protagonistas, totalmente desprovidos de qualquer heroísmo glamouroso, precisarão passar.
 
Falando no grupo principal, Isaac, Lin, Yagharek e Derkhan, uma amiga do casal, é incrível como a descrição dos locais, das pessoas e dos procedimentos não impediu Miéville de trabalhar incrivelmente a profundidade deles. Os sentimentos são tão absolutamente críveis e intensos, sobretudo no caso de Yagharek, que qualquer leitor vai sofrer e torcer por eles, comemorando cada pequena vitória nesta jornada, às vezes, sorrindo sem perceber durante a leitura. Além destes momentos mais dramáticos, a aparição das tais criaturas medonhas carrega no incômodo e nos faz sentir o asco, o medo e a tensão, completamente justificados, que os personagens sentem nestes trechos. Mérito também da tradução caprichada.
 
Apesar da relação forte entre o autor e o ativismo marxista, o mesmo faz questão de rejeitar a associação de seu trabalho com alguma metáfora mais direta da vida real, conforme entrevistas. A verdade é que Estação Perdido, com seus políticos corruptos auxiliados por uma milícia violenta, criticada por um jornal clandestino em um local onde várias pessoas vivem em condições precárias, parece trilhar um caminho assumido de crítica, onde seguimos o texto esperando que isso tome uma forma mais clara, auto explicando-se. Felizmente, é apenas uma impressão inicial que é esquecida enquanto a leitura avança. A complexidade desta trama é bem maior do que aparenta no começo e desafia associações desta natureza.
 
A única ressalva que se pode fazer sobre o conjunto é um detalhe que pode até passar despercebido por muitos, o que a torna essa impressão mais pessoal. A rede de relacionamentos entre os personagens tem algumas coincidências convenientes demais para o andamento da história, dentro de um imenso cenário geral. Exemplificando bem por cima para evitar revelações, a operação por trás do caso – acidental – que muda a vida de Isaac tem envolvimento de pessoas que ele já conhecia. Em alguns momentos, o fluxo de causa e efeito também faz um pouco de força para manter a ligação entre os protagonistas. Isso se torna compreensível pelo tamanho da obra e o quanto de acréscimo seria preciso para contornar isso de maneira a parecer mais casual. Não é um problema grave, mas uma pequena gordura narrativa dentro de uma grande realização.
 
Além da quebra das amarras do convencional que caracteriza o New Weird, denominação do segmento da ficção científica que identifica a escrita de Miéville, conferir a riqueza e a verossimilhança do mundo de Bas-Lag é um tipo de experiência rara hoje em dia.  Se isso não basta, a construção psicológica dos personagens de Estação Perdido torna tudo ainda mais especial, seja para iniciados ou não. Aliás, só para atiçar um pouco mais a curiosidade, os fãs de William Gibson podem se sentir mais recompensados durante a narrativa.
 
Enfim, como todo bom leitor é um pouco masoquista, por mais que esse mundo ficcional não seja um lugar muito convidativo, é difícil conter a vontade de visitar Bas-Lag novamente. Que venham os próximos – A Cicatriz e Conselho de Ferro, já confirmados pela Boitempo – e que um talento como China Miéville se torne cada vez mais conhecido. No meio do caminho, se inspirar alguns novos escritores a procurar fontes de inspiração mais alternativas e evitar o pastiche, é mais um motivo para agradecê-lo.

ANTÓNIO CRUZ- Porto-aguarela