sábado, 15 de novembro de 2025

SURREALISMO: elementos para uma curta história das artes

 

O surrealismo ou sobrerrealismo[1] foi um movimento artístico e literário nascido em Paris na década de 1920, inserido no contexto das vanguardas que viriam a definir o modernismo no período entre as duas Grandes Guerras Mundiais. Reúne artistas anteriormente ligados ao dadaísmo ganhando dimensão mundial. Fortemente influenciado pela Psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), o surrealismo enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa. Um dos seus objetivos foi produzir uma arte que, segundo o movimento, estava sendo destruída pelo racionalismo. O poeta e crítico André Breton (1896-1966) era o principal líder e mentor deste movimento.

Yvan Goll, Surréalisme, Manifeste du surréalisme

A palavra surrealismo supõe-se ter sido criada em 1917 pelo poeta Guillaume Apollinaire (1886-1918), jovem artista ligado ao cubismo, e autor da peça teatral As Mamas de Tirésias (1917), considerada uma precursora do movimento.

Um dos principais manifestos do movimento é o Manifesto Surrealista, de 1924. Além de Breton, seus representantes mais conhecidos são Antonin Artaud, no teatro, Luis Buñuel, no cinema, e Max Ernst, René Magritte e Salvador Dalí, no campo das artes plásticas.

Visão surrealista

Segundo Michael Löwy, o surrealismo é um movimento subversivo de reencantamento da vida social ou um estudo antropológico da liberdade. Esse movimento se baseia em uma visão independente da dialética hegeliana e marxista. Assim, ele mantém um impulso libertário original e não deve ser entendido como uma escola literária modernista ou um conjunto de artistas com uma perspectiva em comum.[2]

Dentre as características deste estilo estão a combinação do representativo, do abstrato, do irreal e do inconsciente. Entre muitas das suas metodologias estão a colagem e a escrita automática. Segundo os surrealistas, a arte deve libertar-se das exigências da lógica e da razão e ir além da consciência cotidiana, procurando expressar o mundo do inconsciente e dos sonhos.

No manifesto e nos textos escritos posteriores, os surrealistas rejeitam a chamada ditadura da razão e valores burgueses como pátria, família, religião, trabalho e honra. Humor, sonho e a contra-lógica são recursos a serem utilizados para libertar o homem da existência utilitária. Segundo esta nova ordem, as ideias de "bom gosto" e "decoro" devem ser subvertidas.

Mais do que um movimento estético, o surrealismo é uma maneira de enxergar o mundo, uma vanguarda artística que transcende a arte. Busca restaurar os poderes da imaginação, castrados pelos limites do utilitarismo da sociedade burguesa, e superar a contradição entre objetividade e subjetividade, tentando consagrar uma poética da alucinação, de ampliação da consciência. Breton declara no Primeiro Manifesto sua crença na possibilidade de reduzir dois estados aparentemente tão contraditórios, sonho e realidade, “a uma espécie de realidade absoluta, de sobre-realidade [surrealité]”.

A escrita automática procura buscar o impulso criativo artístico através do acaso e do fluxo de consciência despejado sobre a obra. Procura-se escrever no momento, sem planejamento, de preferência como uma atividade coletiva que vai se completando. Uma pessoa escreve algo num papel e outro completa, mas não de maneira lógica, passando a outro que dá sequência. O filme Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel, por exemplo, é formado por partes de um sonho de Salvador Dalí e outra parte do próprio diretor, sem necessariamente objetivar-se uma lógica consciente e de entendimento, mas um discurso inconsciente que procura dialogar com outras leituras da realidade.

Esse e outros métodos, no entanto, não eram exercícios gratuitos de caráter estético, mas, como disse Octavio Paz, seu propósito era subversivo: abolir esta realidade que uma sociedade vacilante nos impôs como a única verdadeira. Para além de criar uma arte nova, criar um homem novo.

Imagens poéticas e significado

Grande parte da estética surrealista apoia-se na concepção de imagem poética de Pierre Reverdy, segundo a qual a imagem nasce não da comparação, mas da aproximação entre duas realidades afastadas. E quanto mais distantes forem as realidades aproximadas, mais forte será a imagem poética. Reverente distancia mais ainda o mundo captado pelos sentidos e o mundo criado pela poesia. Além disso, a linguagem surrealista faz grande uso de descontextualizações, esvazia-se um significante de seu significado para atingir novos e inusitados significados. Herança de Arthur Rimbaud, procuram o desregramento também das relações de significação para a emersão de uma nova linguagem. Há uma busca da expressão por meio de uma linguagem não-instrumental e uma associação de liberdade à ruptura do discursiva.

História

Em 1929, os surrealistas publicam um segundo manifesto e editam a revista A Revolução Surrealista. Entre os artistas ligados ao grupo em épocas variadas estão os escritores franceses, Antonin Artaud (1896-1948), também dramaturgo, Paul Éluard (1895-1952), Louis Aragon (1897-1982), Jacques Prévert (1900-1977) e Benjamin Péret (1899-1959), que viveu no Brasil. Entre os escultores encontram-se os italianos Alberto Giacometti (1901-1960), o pintor italiano Vito Campanella (1932), assim como os pintores espanhóis Salvador Dali (1904-1989), Juan Miró (1893-1983) e Pablo Picasso, o pintor belga René Magritte (1898-1967), o pintor alemão Max Ernst (1891-1976) e o cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983).

Nos anos 30, o movimento internacionaliza-se e influencia muitas outras tendências, conquistando adeptos em países da Europa e nas Américas, tendo Breton assinado um manifesto com Leon Trotski na tentativa de criar um movimento internacional que lutava pela total liberdade na arte - FIARI: o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente.

Década de 1930

Salvador Dalí e René Magritte criaram as mais reconhecidas obras pictóricas do movimento. Dalí entrou para o grupo em 1929, e participou do rápido estabelecimento do estilo visual entre 1930 e 1935.

O surrealismo como movimento visual, tinha encontrado um método: expor a verdade psicológica ao despir objetos ordinários de sua significância normal, a fim de criar uma imagem que ia além da organização formal ordinária.

Em 1932, vários pintores surrealistas produziram obras que foram marcos da evolução da estética do movimento: La Voix des Airs, de Magritte, é um exemplo deste processo, no qual são vistas três grandes esferas representando sinos pendurados sobre uma paisagem. Outra paisagem surrealista do mesmo ano é Palais Promontoire, de Tanguy, com suas formas líquidas. Formas como estas se tornaram a marca registrada de Dali, particularmente com sua obra A Persistência da Memória, na qual relógios de bolso derretem.

Segunda Guerra Mundial

António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Vespeira, Moniz Pereira – Cadavre Exquis, 1948, óleo sobre tela, 150 x 180 cm

A Segunda Guerra Mundial provou ser disruptiva para o surrealismo. Os artistas continuaram com as suas obras, incluindo Magritte. Muitos membros do movimento continuaram a corresponder-se e a encontrar-se. Em 1960, Magritte, Duchamp, Ernst e Man Ray encontraram-se em Paris. Apesar de Dali não se relacionar mais com Breton, ele não abandonou os seus motivos dos anos 30, incluindo referências à sua obra "Persistência do Tempo" numa obra posterior.

O trabalho de Magritte tornou-se mais realista na sua representação de objetos reais, enquanto mantinha o elemento de justaposição, como na sua obra Valores Pessoais (1951) e Império da Luz (1954). Magritte continuou a produzir obras que entraram para o vocabulário artístico, como Castelo nos Pireneus, que faz uma referência a Voix de 1931, na sua suspensão sobre a paisagem. Algumas personalidades do movimento Surrealista foram expulsas e vários destes artistas, como Roberto Mattam continuaram próximos ao surrealismo como ele mesmo se definiu.

Surrealismo em Portugal

Capa proibida pela censura – 1ª Exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, 1949
1ª Exposição dos Surrealistas, 1949

O surrealismo surge nos horizontes culturais portugueses a partir de 1936, "em experiências literárias «automáticas» realizadas por António Pedro e alguns amigos".[3] Em 1940 o mesmo António Pedro expõe com António Dacosta (e Pamela Boden): " A exposição reunia dezasseis pinturas de Pedro, dez de Dacosta e seis esculturas abstratas de Pamela Boden [...]. O surrealismo de que se falara até então vagamente, desde 1924, [...] irrompia nesta exposição, abrindo a pintura nacional para outros horizontes que ali polemicamente se definiam".[4]

Grupo Surrealista de Lisboa

Em 1947 Cândido Costa Pinto, que desde 1942 seguia uma linha estética surrealista, contacta, em Paris, com o recém-organizado Grupo Surrealista; André Breton sugere-lhe a organização de um grupo idêntico em Portugal. É deste desafio que irá nascer o "Grupo Surrealista de Lisboa".

"Vespeira, Fernando Azevedo, António Domingues e João Moniz Pereira, [...] os poetas Mário Cesariny de Vasconcelos, [...] Alexandre O'Neill e José Augusto França [...] constituíram o núcleo inicial do movimento aglutinado em Outubro de 1947 e que logo contou com a colaboração e animação de António Pedro. [...] O primeiro ato do grupo ainda em formação foi romper com Cândido Costa Pinto", por ter exposto uma pintura nas salas do SNI.[5]

A primeira e única exposição do grupo teve lugar em 1949. Participaram António Pedro, António Dacosta, Fernando Azevedo, Moniz Pereira, Vespeira, Alexandre O'Neill, e José Augusto França, além de dois Cadavre Exquis de Vespeira e Fernando Azevedo e outro, de grandes dimensões, de António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Vespeira, Moniz Pereira. A exposição foi motivo de escândalo e alvo de ameaças policiais. A primeira proposta de capa do catálogo, que pretendia inserir-se na campanha eleitoral de Norton de Matos (de oposição ao regime de Salazar), foi proibida pela censura. A iniciativa agitou o meio artístico lisboeta que, no mesmo ano e no seguinte, teve mais duas exposições da índole semelhante, realizadas por um grupo dissidente, Os Surrealistas, composto por Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Mário-Henrique Leiria, António Maria Lisboa, H. Risques Pereira, Fernando José Francisco, Pedro Oom, João Artur da Silva, Carlos Eurico da Costa, Fernando Alves dos Santos, António Paulo Tomaz, "com menor interesse plástico embora notável proposição poética".[3]

A exposição do Grupo Surrealista de Lisboa e as restantes, de Os Surrealistas, marcaram o fim do movimento, "ficando apenas os seus componentes em ações pessoais e isoladas".[3]

Vespeira e Azevedo prosseguiram, ao longo de 1950 e 1951, uma obra pictórica de qualidade, expondo em 1952 na Casa Jalco, ao Chiado: "uma exposição de «óleo, fotografia, guache, desenho, ocultação, colagem, linóleo» constituída por três «Primeiras exposições Individuais» de Fernando de Azevedo, Fernando de Lemos e Vespeira", e que os artistas dedicaram ao precursor do movimento, António Pedro.[6]


Técnicas surrealistas

Os surrealistas usaram diferentes técnicas para ativar seu inconsciente, uma delas é o cadáver exquis (requintado cadáver), uma técnica baseada na aleatoriedade e na coralidade, que envolve a colaboração de vários artistas: um deles começa a operação traçando um desenho, uma figura, que deve ser ignorada pelos outros; a folha deve ser passada a todos os participantes, um por um, que por sua vez formarão uma figura e assim por diante.[7]

Outras técnicas frequentemente utilizadas pelos pintores desse movimento são:

Essas técnicas permitiram aos artistas liberar forças criativas cheias de sugestões e evocações, menos teóricas e mais inconscientes e espontâneas.[8]

Ver também

Referências


  1. Max Ernst, Ian Turpin, Max Ernst, Phaidon, 1979

Bibliografia

Em português
  • DUROZOI e LECHERNERBONNIER. El Surrealismo. Guadarrama, Madri, 1974.
  • ADES, Dawn. O Dada e o Surrealismo. Labor do Brasil, Barcelona, 1976?.
  • SENA, Jorge. Manifestos do Surrealismo. Moraes, SP, 1979.
  • GIMENEZ-FRONTIN, J. El Surrealismo. Montesino, Barcelona, 1983.
  • FARIAS, José Niraldo. O Surrealismo na Poesia de Jorge de Lima. PUC/RGS, Porto Alegre, 2003.
  • BRETON, André, Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro, Editora Nau, 2001
  • PERET, Benjamin, Amor sublime, São Paulo: Brasiliense, 1985.
  • ARGAN, Giulio Carlo, Arte moderna, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • PONGE, Robert (org.), Surrealismo e nuovo mundo, Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio do Sul. 1999.
Em espanhol
  • BÉHAR, Henry. Sobre Teatro Dada y Surrealista. Barcelona: Barral, 1971.
  • Bréton, André. El Surrealismo: Puntos de Vista y Manifestaciones. Barcelona: Barral, 1977.
  • PAZ, Octavio. Las Peras del Olmo. Barcelona, Seix Barral, 1990
  • DUROZOI e LECHERNERBONNIER. El Surrealismo. Guadarrama, Madri, 1974.
  • ADES, Dawn. O Dada e o Surrealismo. Labor do Brasil, Barcelona, 1976?.
  • SENA, Jorge. Manifestos do Surrealismo. Moraes, SP, 1979.
  • GIMENEZ-FRONTIN, J. El Surrealismo. Montesino, Barcelona, 1983.
  • FARIAS, José Niraldo. O Surrealismo na Poesia de Jorge de Lima. PUC/RGS, Porto Alegre, 2003.
  •  
  • «Sobrerrealismo». Priberam. Consultado em 24 de julho de 2021
  • LÖWY, Michael (2009). Morning Star: surrealism, marxism, anarchism, situationism, utopia. [S.l.]: University of Texas Press
  • A.A.V.V. – Os anos 40 na arte portuguesa (tomo 1). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 88, 89.
  • França, José AugustoA Arte em Portugal no Século XX: 1911-1961 [1974]. Lisboa: Bertrand Editora, 1991, p. 336.
  • França, José Augusto – A Arte em Portugal no Século XX: 1911-1961 [1974]. Lisboa: Bertrand Editora, 1991, p. 382.
  • A.A.V.V. – Os anos 40 na arte portuguesa, tomo 1. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 102.
  • Mário Cesariny, Antologia do Cadáver Esquisito, Lisboa, Assírio & Alvim, 1989
  • quarta-feira, 5 de novembro de 2025

    Beethoven Piano Concerto Nr 4 in G major Maria João Pires Herbert Blomst...

     


    TUDO PASSA
     
    Passei por ti ,
    não te reconheci.
    Nem tu a mim.
    na memória existes.
    O teu corpo,
    a doce voz não.
    As tuas derradeiras palavras
    “Voltas? Prometes?”.
    As promessas passaram
    nos dias, nos anos.
    Tudo passa.
    Alegrias,
    Dores,
    Fracassos,
    Perdas.
    Tudo passou.
    Sobra este silêncio pelo anoitecer,
    Esta espuma na areia.
    Ou a música com que me esqueço.
    Tudo passou.
    Cerro o punho erguido
    E grito : perdi o que não mereço?
    Tudo passa.
    As voltas que dei e permaneci
    Afinal
    No mesmo lugar onde perdi
    Não sei mais o quê.
    Tudo passou.
    As palavras, os sonhos. O que vivi.
    De quem é aquela sombra que me chamou?

    segunda-feira, 3 de novembro de 2025

    Arte Africana

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    Máscara do século XVI, Nigéria, Edo, Corte de Benin, marfim, Museu Metropolitano de Arte

    Arte Africana

     «Reinata Sadimba, nasceu em 1945 em Nemu, no planalto de Mueda, na província de Cabo Delgado, e é da etnia makonde (grupo étnico bantu que vive, principalmente no sudeste da Tanzânia e no nordeste de Moçambique). Considerada uma das mais importantes escultoras moçambicanas e grande referência da arte, ela foi iniciada na arte da cerâmica, pela sua mãe, quando ainda era criança.) Fonte : Por Dentro da África, blogue

     Reinata Sadimba — AWARE

    sábado, 18 de outubro de 2025

    Arte Naif

    Laura Aidar
    Laura Aidar
    Arte-educadora, fotógrafa e artista visual

    Arte naïf é um termo usado para designar um tipo de arte popular e espontânea.

    A palavra naïf é uma palavra francesa que tem como significado algo que é "ingênuo ou inocente".

    Possui características baseadas na simplificação dos elementos e costuma exibir grande quantidade de cores, valorizando a representação de temas cotidianos e manifestações culturais do povo.

    Geralmente é produzida por artistas autodidatas, os seja, que não possuem conhecimento formal e técnico de arte, mas que exibem produções em que outros princípios são considerados, como a autenticidade.

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    História da arte naïf

    O sonho (1910), do francês Henri Rousseau é um exemplo de pintura naïf
    O sonho (1910), do francês Henri Rousseau é um exemplo de pintura naïf

    A arte naïf costuma ser mais associada à pintura e foi instituída no século XIX, apesar de seus atributos estarem presentes nas pinturas rupestres do paleolítico.

    O pintor francês Henri Rousseau (1844-1910) é considerado o precursor do estilo e foi reconhecido dessa forma quando expôs suas obras no “Salão dos Independentes” na França, em 1886.

    A tela Um dia de Carnaval (1886), chamou a atenção de vários artistas modernistas da época, dentre eles Pablo Picasso (1881-1973), Léger (1881-1955) e também representantes do surrealismo, como Joan Miró.

    A tela Um dia de Carnaval, de Henri Rousseau, foi exibida no 'Salão dos Independentes', em 1886
    A tela Um dia de Carnaval, de Henri Rousseau, foi exibida no "Salão dos Independentes", em 1886

    Esta expressão artística, muitas vezes chamada de arte primitiva moderna, é permeada por imagens do cotidiano, retratados de modo a lembrar desenhos infantis, dada a espontaneidade e pureza, o que remete a uma "aura" de ingenuidade.

    Lembre-se que essas produções são realizadas por artistas independentes e sem formação sistemática. Tais artistas geralmente dominam técnicas que lhe permitem total liberdade de expressão, onde o informalismo acadêmico é característica marcante.

    Dessa maneira, eles renunciam às regras instituídas para a pintura. Isso pode ocorrer por que não tiveram acesso a elas e resolveram dificuldades técnicas sem o auxílio daquelas normas.

    Ou ainda, atualmente, simplesmente porque artistas contemporâneos apresentam despojamento da forma e da técnica academicista, o que os tornam mais próximos da linguagem naïf.

    Essa liberdade artística é notada na maneira como são utilizadas as cores nas composições e na dimensão onírica que é projetada em muitos trabalhos.

    Desse modo, a arte naïf pode ser considerada como uma corrente artística com plena liberdade estética, por estar livre das convenções acadêmicas.

    Apesar do direcionamento estético definido, esse desafio à norma acadêmica, a princípio, não foi intencional nem comercial. Portanto, não é recomendável enquadrar as criações naïf como sendo de natureza modernista ou popular.

    Ainda assim, esse estilo criativo influenciou e deixou-se influenciar pelas tendências mais eruditas, permitindo à arte contemporânea novas formas de expressão, tendo em vista que vários pintores com sólida formação acadêmica usaram procedimentos da arte naïf em suas criações.

    Características da arte naïf

    A arte naïf é uma expressão tipicamente regional e assume as características de cada localidade. Entretanto, é possível perceber algumas características comuns nesse estilo artístico, a saber:

    • Bidimensionalidade - inexistência de perspectiva;
    • Uso frequente de cores vibrantes;
    • Preferência por temas alegres;
    • Espontaneidade;
    • Traços figurativos;
    • Valorização da simetria;
    • Tendência à idealização da natureza.

    Representantes da arte naïf no mundo

    Henri Rousseau

    À esquerda, autorretrato de Rousseau de 1890. À direita, Mulher de vermelho na floresta (1907)
    À esquerda, autorretrato de Rousseau de 1890. À direita, Mulher de vermelho na floresta (1907)

    Henri Rousseau foi um artista francês que nasceu em 1844. Sem formação acadêmica, o pintor foi autodidata teve sua produção julgada na época, pois segundo os críticos, eram obras consideradas "infantis".

    Entretanto, ao final de sua vida, teve o reconhecimento das vanguardas artísticas europeias. Ele é considerado o precursor da arte naïf.

    Camille Bombois

    Antes de entrar no picadeiro (1935), de Camille Bombois
    Antes de entrar no picadeiro (1935), de Camille Bombois

    Camille Bombois nasceu em 1883, na França. Foi um pintor de origem humilde que trabalhou na lavoura na adolescência e nas horas livres gostava de pintar telas.

    Tinha demasiado apreço em representar cenas de circo e, mais tarde, ingressou em um circo itinerante.

    Seu trabalho foi comparado ao de Henri Rousseau, devido ao caráter ingênuo de suas pinceladas.

    Séraphine Louis

    Retrato de Séraphine Louis. À direita, a obra Árvore do Paraíso (1930)
    Retrato de Séraphine Louis. À direita, a obra Árvore do Paraíso (1930)


    Séraphine Louis, também chamada de Séraphine de Senlis, foi uma artista francesa. Ela nasceu em 1864 e vinha de uma família pobre. Órfã de pai e mãe, foi criada pela irmã mais velha.

    Não teve formação acadêmica, mas apreciava pintar. Encontrou na natureza e na arte uma forma de deixar sua existência mais feliz.

    Pilar Sala

    Quadro Avó e girafa, da artista argentina Pilar Sala
    Quadro Avó e girafa, da artista argentina Pilar Sala

    A artista argentina Pilar Sala é uma pintora contemporânea que utiliza características da arte naïf para produzir telas carregadas de elementos líricos e fantásticos.

    Representantes da arte naïf no Brasil

    O Brasil tem diversos artistas populares que possuem produções artísticas baseadas nas características da arte naïf. Dentre eles, alguns nomes se destacam, como:

    Djanira

    À esquerda, tela Vendedora de flores (1947). À direita, Costureira (1951). Ambas produções de Djanira
    À esquerda, tela Vendedora de flores (1947). À direita, Costureira (1951). Ambas produções de Djanira

    Djanira da Motta e Silva nasceu no interior de São Paulo em 1914. Foi uma importante artista da primeira metade do século XX e sua obra mescla religiosidade, paisagens brasileiras e o cotidiano das pessoas comuns.

    Maria Auxiliadora

    À esquerda, a tela A preparação das meninas (1972). À direita, retrato da artista
    À esquerda, a tela A preparação das meninas (1972). À direita, retrato da artista

    Maria Auxiliadora é uma artista nascida em 1938 em Minas Gerais. Foi pintora autodidata e em 1968 integra o grupo artístico de Solano Trindade, em Embu das Artes.

    Sua obra é carregada de vitalidade, poesia e cor. A artista conseguiu mesclar elementos da realidade com o universo dos sonhos em uma produção fortemente marcada pela representação afro-brasileira.

    Mestre Vitalino

    Escultura em argila de Mestre Vitalino exibindo uma família nordestina de retirantes
    Escultura em argila de Mestre Vitalino exibindo uma família nordestina de retirantes

    Mestre Vitalino nasceu em 1909 em Pernambuco. Ainda quando criança começou a modelar figuras em cerâmica com o barro que sua mãe utilizava para fazer utensílios. Seus pais eram lavradores.

    Foi músico e ceramista e sua obra representa sobretudo o povo nordestino.

    Quer conhecer sobre outra vertente artística bem diferente, mas que também se inspirou em temas do universo popular? Leia: Realismo na Arte.


    Heitor dos Prazeres

    O artista Heitor dos Prazeres em frente a uma obra. À esquerda, tela sem título, pintada em tinta a óleo
    O artista Heitor dos Prazeres em frente a uma obra. À esquerda, tela sem título, pintada em tinta a óleo

    Heitor dos Prazeres nasceu no Rio de Janeiro em 1898. Foi sambista, e em 1937 começa a dedicar-se também à pintura. Sua obra é fortemente marcada pela valorização da cultura popular.
    Para saber mais sobre outro tipo de pintura, que também não se limita à conceitos acadêmicos, leia sobre Grafite.

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  • terça-feira, 14 de outubro de 2025

    Este quadro renascentista é dos que mais me impressiona por vários motivos : não dá importância à perspectiva e ao fundo, tudo é grande plano cinematográfico; a nossa atenção é mais dirigida para a mão sobre o mármore do que sobre o seu rosto; apsar desse foco todo o quadro é uma unidade na qual tudo respira melancolia, cinzas como aquele cáeu cinzento; exprime a autonomia do artista que assina despudoradamente no mãrmore sob a mão sagrada; rompe com a pintura bizantina mas não obedece a normas , algumas dasquais iriam tornar-se imperativas no Renascimento tardio; exprime, a meu ver, a autonomia do indivíduo na emergência da Burguesia europeia, todo o conteúdo fala de indivíduos concretos, terrenos, pagãos, e não se vê símboloias etéreas; e é um quadro proto-burguês, ou proto-cartesiano, porque é o "eu" de um homem sacralizado,, que, embora ressuscitado. está definitivamente e eternamente morto.

     

    Pietà (Giovanni Bellini Brera)

    pintura a têmpera sobre painel de Giovanni Bellini na Galeria de Arte de Brera 1465-1470

    A Pietà (ou Cristo Morto sustentado por Maria e João ) é uma pintura a têmpera sobre painel (86x107 cm) de Giovanni Bellini , datável de aproximadamente 1465-1470 e conservada na Pinacoteca di Brera em Milão .

    Compaixão

    Autor João Bellini
    Data 1465 - 1470
    Técnica têmpera sobre painel
    Dimensões 86×107 cm
    Localização Galeria de Arte de Brera , Milão


    Descrição e estilo

    O corpo de Cristo morto é sustentado pela Virgem (à esquerda) e por São João à direita, com uma facilidade evidente que revela uma certa leveza. A mão de Jesus repousa em primeiro plano sobre uma laje de mármore com a assinatura do artista e uma frase retirada do livro de Elegias de Propércio ( HAEC FERE QVVM GEMITVS TVRGENTIA LVMINA PROMANT / BELLINI POTERAT FLERE IOANNIS OPVS , "Estes olhos inchados quase gemerão, esta obra de Giovanni Bellini poderá derramar lágrimas"), segundo um esquema derivado da pintura flamenga , já utilizado por Mantegna e pelos artistas paduanos . Este artifício separa o mundo real do espectador do mundo pintado, mas ao atravessar esta fronteira, neste caso operada pela mão, tenta-se uma fusão ilusória entre os dois mundos.

    A mão e a assinatura

    A incisividade das linhas de contorno e dos elementos gráficos (nos cabelos de João pintados um a um ou na veia pulsante do braço de Cristo) ainda remetem para a lição de Mantegna, mas o uso da cor e da luz é muito diferente do do seu cunhado. Os tons são de facto suavizados e tentam transmitir um efeito de iluminação natural, de um dia claro ao ar livre, frio e metálico como um amanhecer de renascimento, que sustenta a sensação angustiada da cena, atuando em certo sentido como uma caixa de ressonância para as emoções humanas [ 2 ] . A luz mistura-se com as cores, suavizando a representação, graças à aplicação particular da têmpera em traços muito finos e fechados.

    Em vez de se concentrar no espaço perspectivo , Bellini parece mais interessado em retratar a humanidade sofredora dos protagonistas, inspirado no exemplo de Rogier van der Weyden , num estilo que mais tarde se tornou um dos traços mais característicos da sua arte. Os volumes escultóricos das figuras, destacando-se isolados contra o céu limpo, amplificam o drama, que se condensa no diálogo silencioso entre mãe e filho, enquanto o olhar de São João revela uma serena consternação. A troca de emoções reflete-se então na hábil interação das mãos, com uma sensação de dor e amargura.

    Notas

    1. ^ Armando Besio, Giovanni Bellini. Maria chora verdadeiramente e o tempo pára na mais bela Pietà , La Repubblica , 1 de junho de 2014, pp.
    2. ^ De Vecchi-Cerchiari, cit., p. 130.

    Bibliografia

    • Vários Autores, Brera, Guia da Galeria de Arte , Electa, Milão 2004. ISBN 978-88-370-2835-0
    • Mariolina Olivari, Giovanni Bellini , in AA.VV., Pintores do Renascimento , Scala, Florença 2007. ISBN 88-8117-099-X
    • Pierluigi De Vecchi e Elda Cerchiari, The Times of Art , Volume 2, Bompiani, Milão 1999. ISBN 88-451-7212-0

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    sexta-feira, 22 de agosto de 2025

    Oliver Messiaen - Quarteto para o fim dos tempos - QuartaD

     O "Quarteto para o fim dos tempos" (Quatuor pour la fin du temps) é uma obra composta por Olivier Messiaen em 1941, quando estava preso pelos nazistas, para ser tocada por um quarteto de piano, clarinete, violino e violoncelo. Composta em oito movimentos e inspirada pelo Apocalipse, a peça foi estreada no campo de concentração de Görlitz. 


    Praesens - Quarteto para o fim dos tempos

    TURNER, o pintor proto modernista

     

  • Ficheiro:Joseph Mallord William Turner - Snow Storm - Steam-Boat off a Harbour's Mouth - WGA23178.jpg
  • Criação: 1842
  • Harbour's Mouth, (1842)

    sábado, 9 de agosto de 2025

     

    Quarteto do fim dos tempos

     

    Não sabia o que era aquilo. Mas sabia que já estivera ali. Em todas as fotos que publicava no Instagram escrevia uma legenda sempre a mesma : Eu estive aqui. Náo reconheceu a avenida porque encontrava-se coberta de escombros de casas. Um vento do inferno passara por ali. E, no entanto, ele sentia que aquele lugar era idêntico a outros que já visitara, e dos quais publicara as suas imagens e que sob elas escrevera : Estive aqui. Procurou um supermercado para comprar alguma coisa para comer, apetecia-lhe uma bifana, não encontrou nenhum em cima ou por baixo dos escombros. Restaurantes ou Cafés nem sombra deles. Restavam deles sob montes de tijolos, uns dísticos com os seus nomes. E era assim por todas as ruas, as quais, de resto, mal se distinguiam. Pisou sem o ter visto um homem que já estava mais que morto e perguntou a outro que se arrastava numas chinelos onde se podia comer e o indivíduo apontou para lá de uma paredão meio derrubado. Moisés entendeu que para lá haveria onde comer. E foi. Rodeou a parede gigante meio derrubada , pisou outro corpo já tão morto que nem se queixou, observou mais uns dísticos que identificavam  ruínas de lojas de roupas, de sapatos, de bicicletas... Foi então que viu a multidão a correr por arrasada avenida abaixo, o que fora antes uma avenida, em direção a um ponto indefinido. Deixou a multidão passar e foi atrás dela. Eram tantos - crianças, jovens que já não eram crianças, mulheres velhas e novas, homens de todas as idades - a preencher todo o espaço, gritando enlouquecidas, que desistiu, deu meia volta e continuou o seu caminho sem destino e sem pão. Era, parecia-lhe, um caminho muito longo que iniciara há muito tempo e desconhecia quando terminaria. Já subira a altas montanhas nevadas e atravessara vales estreitos como gargalos de garrafa, e não encontrara ninguém que lhe fornecesse uma meta. O que num dia tinha como certo, esquecia-se no dia seguinte e tudo retomava a sua repetição. Como num círculo tudo regressava ao ponto de partida. Havia à sua frente um horizonte que se afastava a cada passo que ele dava. Na verdade não estava sozinho, via gentes dentro de enormes camiões, dos automóveis utilitários, de comboios cada vez mais rápidos, mas não vislumbrara um corpo que materializasse uma ideia, ou uma força social que realizasse a força transcendente do ideal. Dado que não se lembrava de nada, admitiu a hipótese de se encontrar sob o efeito de ressacas sucessivas. Quiçá fosse alcoólico e que, portanto, não era real o que via, a caminhada, a vida, mas somente os delírios de um doente. Para tirar dúvidas beliscava-se, molhava o rosto frequentemente nas fontes que encontrava à beira das estradas , chegou ao ponto drástico de se colocar à frente de um automóvel que circulava : não foi atropelado por por causa daqueles reflexos a que chamamos milagres. Caminhava como aquelas aves que atravessam metade do mundo para passarem o verão na outra metade. Sim. E quando chegasse a velhice? Ou uma doença a necessitar cuidados? Atravessara, julgava ele, os lugares mais inóspitos e nunca perdera o fôlego. Postas estas circunstâncias, começou a suspeitar que era um nativo doutro planeta. Aliás, a bem dizer, não podia ser ressaca alguma, porque não se recordava de bebedeira nenhuma. Perguntou-se se o destino da sua caminhada sem metas definidas não seria exatamente reencontrar o sítio onde descera do firmamento. Não se lembrava do desembarque, nem do dia e ano, não guardava recordação alguma, um fragmento fugaz que fosse, de alguma nave invulgar. O que ele sentia, e unicamente suspeitava, é que não era dali. Não podia ser dali. Não porque não fossem encantadoras muitas das planícies floridas que calcara e fantásticas muitas das montanhas que escalara, as lagoas com nenúfares, os rios sulcados por canoas primitivas mas eficientes, ribeiras com raparigas a enxaguarem os peitos tesos, bandos de crianças a correrem felizes atrás de uma bola de trapos, choupanas de barro seco e palha nos telhados com velhos muito escuros e muito velhos sentados no chão à porta, mulheres de saiotes subidos a guiarem búfalos em campos de arroz. Sim. Sentia, porém, uma espécie de nostalgia, uma saudade, como se tivesse perdido alguma coisa preciosa, talvez um beijo, um colo e um abraço, um lugar. Sem nenhuma memória do que fosse.. Se ele se recordasse, saberia que os nativos do seu planeta não possuíam memória de longa duração, somente de curta duração. Isto é, viam uma coisa bonita ou feia e esqueciam-na escassos minutos depois. Certo dia fez um amigo ( não se recordava já) e esse amigo ao fim de algum tempo disse-lhe: “Ouve lá, acho que tu estás sempre ressacado!”. “Quê?”, retorquiu ele a começar a esquecer-se do significado da palavra. Na verdade até que não bebia demasiado. Doutra vez fez uma amiga que gostou muito dele, até lhe dava beijinhos na ponta do nariz e mordiscadelas nas orelhas e fazia-lhe festas no cabelo que ele raramente cortava ; contudo esqueceu-se dela, ou melhor, na realidade esquecia-se dela passados uns minutos, talvez uma hora, depois relembrava-se, ou ela relembrava-o com novas mordiscadelas, até que se cansou dos esquecimentos dele e descobriu rapidamente um senhor que nunca se esquecia dela. Pelo menos foi a explicação que ela deu.

       Conhecera nas suas viagens exploratórias lugares inesquecíveis (não para ele) : vales atapetados de relva muito verde, pincelada com o vermelho das papoilas e o azul das malvas, nomes que teria gostado de decorar, mas, infelizmente. esquecia de um momento para o outro. Fora desses lugares sublimes, porém, cruzara-se a miúde com terrestres ( admitindo que ele próprio o não fosse) a matarem-se uns aos outros, envolvidos em zaragatas por motivos fúteis ( para ele que esquecia tudo). Passou ao pé de uma cidade onde existia uma praça que ninguém atravessava a menos que quisesse levar um tiro de uns tipos armados que vigiavam escondidos nas colinas sobranceiras com uns binóculos ao longe (felizmente para ele esqueceu-se depressa daquela estupidez que se poderia converter para ele num tremendo pesadelo). Vira igualmente outros atos de igual estupidez : belas e grandes cidades cujos habitantes foram chacinados com bombas sem culpa formada, cidades com nomes esquisitos como Dresden, Kiev e Estalinegrado na mesma época, Hiroshima e Nagasaki e Seul. Se ele se lembrasse, lembrar-se-ia de dezenas e dezenas de aldeias e cidades incineradas que vira ao passar ao longe, por hordas sanguinárias de etnias, tribos e impérios. Reteria na memória o caos. O horror. Assistia hoje, para amanhã despertar de uma noite agitada completamente esquecido do que vira. Por isso sobrevivia. Por isso caminhava em busca do que esquecera.

      Não possuindo bússola, nem memórias, guiava-se pelo movimento aparente do sol e por determinadas estrelas das quais ele se esquecia de dia para se lembrar de novo à noite. E , com a saudade de palavras que não dizia, de atitudes que não tomava, adormecia de mansinho, nem triste, nem contente. Esquecia-se depressa do que o contentava e do que o entristecia.

       Certo dia cansou-se do que via ( foi naquele dia em que viu uma cidade cheia de gente a ser bombardeada com canhões no solo e nos céus, com máquinas aterradoras a esmagar cadáveres naquela faixa de terra a que ouviu chamar de Gaza), deitou-se na areia húmida da praia ao pé de uma montanha de cadáveres de crianças, num sítio onde o sangue escorria para o mar. E adormeceu. Como a sua memoria era curta, esqueceu-se de acordar.

    ----------------------Nozes Pires --------------2025