sábado, 24 de agosto de 2019

Biblioterapia: como é que os livros curam?

Sandra Barão Nobre dá consultas a partir do Porto
Sandra Barão Nobre dá consultas a partir do Porto Paulo Pimenta

Terapias alternativas

Biblioterapia: como é que os livros curam?

Catarina Lamelas Moura
A ideia – de que os livros podem ajudar a ultrapassar os mais diversos problemas – é simples. César Ferreira e Sandra Barão Nobre são biblioterapeutas.
Emília quer dar novo rumo à sua vida — como tantas outras pessoas, decidiu que quer ocupar-se com aquilo que lhe dá mais prazer, o restauro. Além disso foi-lhe diagnosticada uma doença auto--imune, mas o que agora está a ajudá-la são os livros. Mais concretamente, as sessões de biblioterapia.
Nos últimos meses, César Ferreira, o biblioterapeuta com espaço de atendimento na Lx Factory em Lisboa, já recebeu desde crianças com dificuldades de leitura e dislexia a pessoas a lidar com o luto. No Porto, Sandra Barão Nobre lançou o próprio “consultório” há um ano. A actividade, que hoje já se estabeleceu em países como o Reino Unido e começa a ganhar adeptos em Portugal, é bem menos esotérica do que possa parecer. Na acepção mais simples, define-se — segundo a Infopédia — como o “tratamento de doenças através da leitura de livros”. Na verdade, provavelmente já todos o fizemos de uma forma ou de outra, ao recomendar um livro a alguém, aponta Sandra Barão Nobre.
Aliás, o aproveitamento da leitura para fins terapêuticos vem do tempo dos gregos e dos romanos. Ao longo da história, há relatos de médicos que utilizavam passagens da Bíblia para ajudar à cura e, ao longo do século XX, começaram a surgir os primeiros estudos nesta área. Um dos grandes impulsionadores da prática foi o filósofo Alain de Botton, que em conjunto com outros colegas, fundou, em 2008, The School of Life — uma organização dedicada à “inteligência emocional”, que oferece aulas e diferentes tipos de terapia. Num dos vídeos do YouTube, que soma mais de 2,6 milhões de seguidores, é explicado em menos de cinco minutos por que é que a literatura é importante para o ser humano: “Dá-nos um leque de emoções e eventos que levaríamos anos, décadas, milénios, para sentir directamente.” Ou seja, é um “simulador de realidade” que nos permite de forma segura sentir na pele, por exemplo, como é passar por um divórcio, matar alguém e ter remorso e abandonar o emprego para fazer uma viagem à volta do mundo.
É no The Therapist, recentemente aberto no Lx Factory, que César Ferreira pratica a biblioterapia. O espaço alberga outros tipos de terapias alternativas como a medicina chinesa e a aiurvédica. “Neste caso estamos a trabalhar o propósito da vida”, explica ao PÚBLICO, no início da consulta com Emília. Na primeira sessão, a cliente vinha à procura de algo sem saber ao certo o quê. “Tenho uma doença que, pela lógica, vai limitar-me o meu futuro. E qualquer pessoa procura o futuro”, desabafa.
Alquimista, de Paulo Coelho, e Mude a Sua Vida em 7 Dias, de Paul McKenna são alguns dos livros que já lhe foram recomendados. Hoje tem toda a certeza que quer mudar de profissão e fazer do hobby do restauro a sua actividade principal, mas aquilo que ainda a está a travar é a “questão financeira”. Ao longo da sessão, César vai explorando vários aspectos, colocando perguntas como “Achas que, se tivesses essa parte [financeira] segura, avançavas imediatamente?” e “Quanto tempo podes dedicar ao restauro por dia?”. Actua quase como um profissional de coaching.

Pessoas que lêem muito

Não há propriamente um curso que consiga por si só formar um biblioterapeuta. “Para se ser um bom biblioterapeuta tem de se ter, acima de tudo, competência ao nível da análise humana”, explica César Ferreira, licenciado em Filosofia e mestre em Ciências da Informação e da Comunicação. Depois, evidentemente, há que ler muito e ter interesse em literatura, continua. Antes de ter mudado de vida — o que agora está a ajudar Emília a fazer — era bibliotecário. Também já fez várias formações na área do comportamento humano e defende que “nunca iria ser um bom biblioterapeuta”, se se focasse só numa área. “A formação mais valiosa que tenho é aquilo que sempre fui durante a minha vida.”
Já Sandra Barão Nobre tornou-se bibioterapeuta por conta própria, em Maio de 2016. Antes de abandonar definitivamente o emprego de “livreira online” na Wook, da Porto Editora, fez as malas e viajou durante seis meses, por 14 países — e deu início a um projecto paralelo, que resultou no livro Volta ao Mundo com os Leitores, um livro que actualmente está nos tops das livrarias. Quando regressou a Portugal, percebeu que “não conseguia continuar a trabalhar como antes”. Então, tirou o certificado de coaching practitioner — a sua educação formal é em Relações Internacionais — e fez um curso de biblioterapia para a infância e juventude na Universidade do Porto. Os biblioterapeutas devem ser “pessoas empáticas que leiam muito”, defende.
A biblioterapeuta diz que, regra geral, “as pessoas chegam com assuntos muito concretos” para resolver e, em grande parte dos casos, estão ligados aos relacionamentos. Na primeira sessão, procura “conhecer a pessoa o melhor possível”: o que a levou a procurar a biblioterapia, quais são os seus objectivos, o que é que acha que a biblioterapia pode fazer naquele momento e quais os hábitos de leitura. A partir daí, prepara um relatório fundamentado com cerca de dez livros. Nas sessões seguintes, à medida que vão avançando na lista, a conversa gira à volta da leitura e do que esta suscitou. Em média, diz, cada pessoa demora entre duas a três sessões a atingir os seus objectivos.
Num dos casos mais peculiares, Sandra recebeu uma cliente que precisava de ajuda para desenvolver novos interesses literários. Já tinha lido muitos livros, inclusive de diferentes géneros, mas estava saturada e não conseguia perceber porquê. No final, a biblioterapeuta recomendou que explorasse literatura além das fronteiras da Europa e América.
Sandra Barão Nobre prefere recomendar livros de ficção. “O trabalho interior que é feito é muito mais intenso e profundo quando se lê um bom livro de ficção. Acredito sobretudo no poder transformador da ficção pelo papel da metáfora”, explica. Dentro da não-ficção, recomenda por vezes livros de desenvolvimento pessoal, mas evita a auto-ajuda. “Não tenho preconceito nenhum [em relação à auto-ajuda], mas é muito óbvia. Isso qualquer leitor, quando acha que precisa de ajuda, vai a uma livraria procurar.” César Ferreira concorda: “A ideia é a pessoa viver a história, mas que, no final, não acabe ali.” Um dos processos importantes da biblioterapia, continua, “é a pessoa passar os seus desafios para a personagem e conseguir perceber como a personagem os resolve”. 
Durante as consultas, é preciso saber orientar os clientes. O biblioterapeuta diz que é importante ter confiança no caminho: “É uma das coisas que procuram em nós.” Além do mais, continua, “a partir do momento em que se faz um bom diagnóstico, tem-se o caminho muito facilitado”. Assim foi durante a tarde de sexta-feira. No final da consulta Emília já falava noutro tom: “Se calhar é uma questão emocional e eu estava a desculpar-me com a questão financeira. Durante a infância [a segurança financeira] foi algo que sempre me foi transmitido.”
Emília saiu do consultório com mais dois livros para ler: O Peregrino, de Luís Ferreira, e A Única Coisa, de Jay Papasan e Gary Keller. O primeiro “é um livro de acção”, sobre o Caminho de Santiago — que Emília sonha percorrer até à Galiza — e o segundo deverá ajudá-la a concentrar-se no restauro, tomando os passos necessários para que se torne na sua actividade principal. Neste caso concreto, o terapeuta recomendou que desse especial atenção a um capítulo de perguntas. 

Vários tipos de consulta

Além das sessões individuais de acompanhamento de 90 minutos (60 euros), César recebe grupos — nomeadamente famílias, cujos filhos estão a ter alguma dificuldade com a leitura — e faz sessões de leitura em voz alta com massagem. Também na Lx Factory lecciona aulas de speed reading (leitura rápida). O espaço lisboeta vai receber em breve um segundo biblioterapeuta, revela Joana Teixeira, dona do The Therapist. Este vai complementar a área com uma componente de cineterapia, que envolve filmes e séries. Para Outubro, está previsto um workshop de biblioterapia.
Sandra Barão Nobre está a desenvolver a biblioperapia corporativa. A ideia — que já experimentou durante algum tempo numa start up — é “trabalhar com pequenos grupos, colocando toda a gente focada numa determinada obra ou conjunto de obras, em prol de um objectivo comum”.
Na biblioterapia clínica trabalha em conjunto com médicos. No Centro Hospitalar do Porto, onde é voluntária, vai uma vez por semana ler a uma unidade do Hospital de Santo António. “Aí lido com uma equipa que acredita profundamente nos benefícios da leitura em voz alta às pessoas que estão internadas”, conta. Por vezes, chega a coordenar esforços com os profissionais, para que lhe dêem informação sobre o perfil dos doentes, faixa etária e hábitos de leitura — assim consegue fazer escolhas mais personalizadas.
A biblioterapia não substitui — nem o pretende fazer — outros tipos de terapia, como a psicologia ou a psiquiatria. Sandra Barão Nobre diz que por vezes recebe pessoas que estão a ter um tipo de acompanhamento médico e que a procuram, de forma complementar. Apesar de nunca ter acontecido, garante que está atenta a possíveis sinais que sugiram que alguém tenha necessidade de acompanhamento médico especializado.
Sandra prefere não chamar à biblioterapia ciência, pois “a ciência implica que os resultados da metodologia aplicada sejam sempre os mesmos”. Ora, “um livro será sempre diferente nas mãos de cada leitor”.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Com a devida vénia à autora


EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006

A obra referenciada se dedica a estudar a literatura e busca tornar inteligível aos leitores o conceito da moderna teoria literária. Acrescenta o autor, literalmente, no Prefácio, que a sua pretensão é a de “oferecer àqueles que têm pouco ou nenhum conhecimento do assunto uma descrição razoavelmente abrangente da moderna teoria literária”.

A hipótese que o estudioso levanta é a de que não existe uma “teoria literária” no sentido de um corpo teórico que se origine da literatura, ou seja, exclusivamente aplicável a ela.

O autor utilizou uma vastíssima e diversificada bibliografia. Entre as fontes, se encontram autores a exemplo de Lee, Ann Jefferson; Derrida; Mathew; Saussure; Foucault; Freud; Lucáks; etc. A obra ainda apresenta um Posfácio e índice remissivo, além de inúmeras notas explicativas.

O conceito de literatura esboçado por Eagleton  começa por considerar que “Muitas têm sido as tentativas de definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a escrita ‘imaginativa’, no sentido de ficção _ escrita que não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede. (...). A distinção entre ‘fato’ e ‘ficção’, portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões para isso é que a própria distinção é muitas vezes questionável. (...). Além disso, se a literatura incluiu muito da escrita ‘factual’, também exclui uma boa margem de ficção. (...). O fato de a literatura ser a escrita ‘criativa’ ou ‘imaginativa’ implicaria serem a história, a filosofia e as ciências naturais não-criativas e destituídas de imaginação?” (p. 2-3).

Como se pode constatar, Eagleton argumenta de forma lógica e irrecorrível, mesmo porque o componente imaginação é intrínseco à condição humana e uma chancela para a criatividade, a originalidade.

Quer a obra seja prioritariamente característica das belas letras ou da linguagem técnica, em algum patamar a imaginação tem seu lugar garantido. As grandes descobertas da humanidade, a exemplo do cinema, do telefone, do avião e tantas outras têm uma ligação indiscutível com o imaginário. Ou não teria o homem sonhado voar como os pássaros ao pensar o avião? Ousamos dizer que, a técnica prevalece na concretização de uma aeronave, mas a alma desse engenho da mente humana está relacionada ao sonho de Ícaro, à poesia contida em seu desejo de voar como as aves.


Eagleton conclui sua Teoria da Literatura asseverando que “Se não é possível ver a literatura como uma categoria ‘objetiva’, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízo de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças (...). Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre os outros”.

O autor não exagerou em sua assertiva, pois, evidente é a tentativa social de condução e manipulação não apenas do gosto literário, mas também de toda e qualquer arte. Há sempre os que ditam o que é a boa literatura, a boa música, o bom cinema, a boa arquitetura, e assim por diante.

Sobre a ascensão da literatura na Inglaterra, Eagleton faz uma severa observação às posições do crítico William Empson, taxando-o de “impenitente adversário das principais doutrinas dessa corrente” _ (*refere-se à Nova Crítica).

Continua Eagleton, de forma muito lúcida e contundente, tecendo uma crítica que faz todo o sentido e demonstra sua agudeza de observador ao acrescentar: “O que faz Empson parecer um crítico novo é seu estilo de análise exaustiva, a surpreendente engenhosidade despreocupada que mostra até mesmo as nuanças mais sutis do significado literário. Mas tudo isso é posto a serviço de um racionalismo liberal antiquado, profundamente conflitante com o esoterismo simbolista de um Eliot ou de um Brooks (...)”.

Em sua argumentação, Eagleton se refere ao coloquialismo da prosa de Empson e à sua “poética liberal, social e democrática, atraente, com todas as suas estonteantes idiossincrasias, para as simpatias e expectativas semelhantes de um leitor comum, e não para as técnicas tecnocráticas do crítico profissional” (p. 79-80).

Quanto á Fenomenologia, Hermenêutica e Teoria da Recepção, Eagleton  leva em conta que “alguns estudiosos e críticos de literatura podem se preocupar com a possibilidade de um texto literário não ter um único significado ‘correto’, mas provavelmente não serão muitos a ter essa preocupação. É mais certo que se deixem seduzir pela ideia de que os significados de um texto não estão encerrados nele, (...) mas sim que o leitor tem um papel ativo nesse processo. Nem se preocupariam com a ideia de que o leitor não chega ao texto virgem, por assim dizer, imaculadamente livre de envolvimentos sociais e literários anteriores, como um espírito totalmente desinteressado ou como uma folha em branco, para a qual o texto transferirá todas as suas próprias inscrições. De um modo geral, admite-se que nenhuma leitura hoje é inocente, ou feita sem pressupostos. Poucas pessoas, porém, levarão às últimas consequências as implicações dessa culpa do  leitor” (p. 134-135).

Por certo a culpa não caberia ao leitor e sequer ao autor/criador. Cada um faz parte de um contexto específico e os microcontextos se aglomeram até que se forme o macrocontexto. Saliente-se que a formação dos contextos têm uma imensa mobilidade e esta mobilidade é infinita. A literatura não existe de per si e é produto da imaginação do homem em sua busca eterna pela comunicação com o seu semelhante. Alongar este pensamento por certo nos levaria por longos caminhos da filosofia e pelo mundo das ideias de Platão.  Então se diria que a literatura e a ciência têm origem nesse mundo.

No caso do Estruturalismo e da Semiótica, Eagleton chegou à conclusão de que “com o pós-estruturalismo, trouxemos a história da moderna teoria literária até a atualidade. Dentro do pós-estruturalismo como um método, existem conflitos e diferenças reais cuja história futura não pode ser prevista. Há formas de pós-estruturalismo que representam um alheamento hedonista em relação à história, um culto da ambiguidade ou do anarquismo irresponsável; outras formas existem, como ocorrem com as pesquisas extraordinariamente ricas do historiador francês Michel Foucault, que embora possuindo sérios problemas, indicam uma direção mais positiva” (p. 226).

Quanto à questão da Psicanálise, Eagleton afirma  que “uma das razões pelas quais precisamos investigar a dinâmica do prazer e do desprazer é a necessidade de sabermos qual volume de repressão e de adiamento da satisfação uma sociedade pode tolerar; como o desejo pode ser desviado de finalidades que consideramos dignas para outras que o menosprezam e degradam; como homem e mulheres concordam por vezes em tolerar a opressão e a indignidade, e em que pontos essa submissão pode falhar” (p. 290-291).

Na conclusão mais abrangente, no capítulo Crítica política, Eagleton admite que, “se hoje a literatura tem importância, isto se deve basicamente ao fato de nela se ver, como ocorre a muitos críticos convencionais, um dos poucos espaços remanescentes nos quais, em um mundo dividido e fragmentado, ainda é possível incorporar um senso de valor universal; e nos quais, em um mundo sordidamente material, ainda se pode vislumbrar um raro lampejo de transcendência. Daí procedem, sem dúvida, as paixões intensas, até mesmo virulentas e de outro modo inexplicáveis, que tendem a ser desencadeadas por uma atividade tão minoritária e tão acadêmica quanto a teoria literária” (p. 365).

Se os críticos da teoria literária são intensos, apaixonados e virulentos, as ideias de Eagleton não deixam por menos, pois, as suas afirmações são fortes e determinadas, além de muito razoáveis.

Em busca de conceituar a literatura, o autor consegue passar ao leitor o quão desconfortável se sente diante de tantos quereres, de tantas opiniões e de tantos argumentos que, em sua visão, mais atrapalham do que constroem um conceito mais delineado e preciso do que é a literatura.

A crítica literária é acusada de academicista e apegada ao passado. O pensamento do autor procura se desvencilhar de padrões e com isto parece enfrentar um sofrimento e uma angústia maiores por não alcançar o devido distanciamento e isenção, tendo em vista que ele, o estudioso, tem a consciência de que a sua argumentação não é pura, não é virgem e nem isenta, colocada que se encontra também em um contexto intelectual que o subjuga. Mesmo assim, a sua luta pelo sentido de abertura de uma visão mais abrangente da literatura consegue convencer o leitor a se desapegar de padrões e estereótipos ensinados e veiculados secularmente. Afinal, a ideia que fica mais nítida é a de uma luta por um processo de libertação do olhar sobre a literatura e da sua vocação democrática.





taniameneses
Enviado por taniameneses em 05/09/2012
Reeditado em 05/09/2012
Código do texto: T3866035
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Terry Eagleton: a trajetória da crítica

Andrew Solano Yan

Resumo


Este trabalho dedica-se a uma análise do histórico de defesa do crítico britânico Terry Eagleton de uma visão crítica e política nos estudos de literatura e cultura. Em toda sua trajetória sempre defendeu uma autoconsciência para nossos interesses com as e ideias e ações que defendemos. Tentaremos destacar que apesar desse autor possuir uma obra vasta e multifacetada ele possui uma estrutura de pensamento que organiza todo seu arcabouço teórico. Para isso, dividimos o trabalho em cinco partes, Inicialmente faremos uma exposição dos trabalhos a cerca de sua obra, na segunda tentaremos mapear os pressupostos de sua crítica, no terceiro mostraremos em que consiste a base de sua crítica e como ela se desenvolveu ao longo de sua carreira, na quarta faremos uma breve confluência entre o pensamento brasileiro e o do crítico inglês. Por fim, traçaremos algumas conclusões a respeito da validade de seus argumentos para o exercício crítico.

Palavras-chave


Terry Eagleton;Trajetória; Crítica; Teoria; Política.

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domingo, 4 de agosto de 2019

e
Romance
O pai da grande baleia branca da literatura faz 200 anos
Bruno Vieira Amaral
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Foto d.r.
Herman Melville, o homem que escreveu 600 páginas que acabaram por entrar no subconsciente coletivo da América, nasceu há 200 anos. Houve — há — quem considerasse essa longa prosa uma obra-prima, houve — há — quem veja nela o trabalho de um louco. O escritor Bruno Vieira Amaral analisa “o” romance que tem dentro a essência do apelo dos mares e mostra de que lado está
Saltemos o “tratem-me por Ismael”. O início perfeito de um romance é o que se segue. Em poucas linhas, Herman Melville capta a essência do apelo dos mares na cabeça e no corpo de um marinheiro e que os homens que nunca levantaram ferro, nunca viram os parentes a acenar adeuses de um cais, poderão sentir, mas dificilmente poderão compreender. O tédio brumoso de novembro que cai sobre a alma, os cortejos fúnebres de mau sestro, o desejo infantil de arrancar chapéus sérios de cabeças ainda mais sérias, é o que basta para o leitor, mesmo estando a ler aquela página em terra, embarque no navio que é “Moby Dick” e parta à aventura pelas procelosas seiscentas páginas que demoraram a entrar no subconsciente coletivo da América, mas uma vez lá fixadas, nunca mais de lá saíram.
*
Moby Dick teve a primeira edição em Londres em outubro de 1851 com o título “A Baleia”. Pouco tempo depois saiu a edição americana: “Moby Dick”. O livro mereceu a atenção da crítica dos dois lados do Atlântico. Melville era um escritor reconhecido. Dois dos seus livros anteriores, “Taipi” (1846) e “Omoo” (1847), inspirados na sua experiência de marinheiro pelos mares do Sul, tinham alcançado um sucesso surpreendente. Eram livros de aventuras, em cenários exóticos para a maioria, senão a totalidade, dos seus leitores, e granjearam ao autor uma reputação sólida.
Foto d.r.
“Moby Dick”, publicado depois do fracasso de “Mardi” (1849), confundiu toda a gente. Quando ainda estava no processo de escrita, Melville descreveu-o assim: “é um romance de aventuras baseado em algumas lendas selvagens da caça à baleia nos mares do Sul.” É verdade que o romance também é isso, mas reduzi-lo às aventuras seria o mesmo que dizer que o “Ulisses”, de James Joyce, é a narração de um dia na vida de um irlandês.
A maioria dos críticos da época, que deviam apreciar o estilo revelado por Melville nos livros anteriores, elogiaram o que havia de continuidade em “Moby Dick” e ficaram baralhados com o que era novo. Havia os que o consideravam uma obra-prima e os que achavam que era o trabalho de um louco. Aqueles não deixavam de lhe apontar certos defeitos e estes reconheciam-lhe algumas qualidades. Acima de todas o seu extraordinário talento para a descrição, de personagens e ambientes, que já demonstrara anteriormente.
Quando galgava a cerca dos factos puros e duros, do lado de aventura marítima, e arriscava a aventura metafísica, os críticos julgavam que o livro, tal como um navio com excesso de carga, se afundava sob o peso da sua desmesura
O que suscitava críticas, além da exibição de erudição cetológica que alguns viam como um verdadeiro teste à paciência dos leitores, era o lado metafísico, espiritual e religioso do livro, a cadência bíblica da sua prosa, a ambição shakespeariana da sua linguagem. Para os que o olhavam à distância, era como se Melville estivesse a nadar para fora de pé.
Enquanto se mantinha ancorado na realidade da vida a bordo de um baleeiro e na descrição dos seus exóticos tripulantes, Melville estava à vontade. Mas quando galgava a cerca dos factos puros e duros, do lado de aventura marítima, e arriscava a aventura metafísica, os críticos julgavam que o livro, tal como um navio com excesso de carga, se afundava sob o peso da sua desmesura.
Na “London Literary Gazette”, um crítico escrevia: “Herman Melville conquistou uma merecida reputação pelos seus desempenhos na ficção descritiva. Recolheu os seus próprios materiais e desbravou novos e desconhecidos caminhos literários, revelando capacidades incomuns e uma grande originalidade. Como tal, deveria ser mais cauteloso a fim de preservar a fama que atingiu de forma tão célere e não desperdiçar o seu talento em obras tão absurdas e desequilibradas como estes volumes desconexos sobre cachalotes.”
Para dizer a verdade, a vaidade do Sr. Melville é incomensurável. Ou é o maior da tribo livresca ou desaparece. Ou concentra sobre si todas as atenções ou abandona imediatamente o campo literário
Se o livro não foi tão mal recebido, especialmente em Inglaterra, como a lenda do “romance maldito” nos quer fazer crer, houve críticas demolidoras, como a que saiu na “New York United States Magazine and Democratic Review” e que merece a pena ser longamente citada: “Se se tivesse contentado em escrever um ou dois livros, poderia ter sido famoso, mas a sua vaidade arruinou-lhe todas as hipóteses de imortalidade. Porque, para dizer a verdade, a vaidade do Sr. Melville é incomensurável. Ou é o maior da tribo livresca ou desaparece. Ou concentra sobre si todas as atenções ou abandona imediatamente o campo literário. É desta autoestima mórbida, a que se junta uma atração ilimitada pela notoriedade, que brotam todos os esforços do Sr. Melville, todas as suas contorções retóricas, todos os seus insultos grandiloquentes à sociedade, todo o seu sentimento inflado e toda a sua licenciosidade insinuante. […] Não temos intenção de citar nenhuma das passagens de “Moby Dick”. Os jornais londrinos, segundo nos dizem, “cobriram o livro de elogios”, e não estamos dispostos a contrariar essas sumidades. Mas se algum dos nossos leitores quiser encontrar exemplos de má retórica, de sintaxe afetada, sentimentos pomposos e Inglês incoerente, tomaremos a liberdade de lhes recomendar este precioso volume do Sr. Melville.”
“Temos de declarar a principal personagem do livro como um rotundo fracasso, e a falta de valor artístico da própria obra”
Mais reveladora da incompreensão que recebeu o romance foi a crítica assinada por William Young, na “New York Albion”. É equilibrada, reconhece-lhe qualidades e aponta-lhe defeitos, mas são precisamente estes que fazem de “Moby Dick” o romance magistral que é: “Não só temos diante de nós uma quantidade imensa de informações fiáveis como todas as personagens são desenhos vívidos feitos ao melhor estilo do autor. O que fazem e o que são é trazido à perceção de uma pessoa com uma espantosa minúcia; e, no entanto, essa minúcia não estraga os nítidos contornos de cada uma. É somente quando o Sr. Melville coloca palavras na boca desses seres vivos e em movimento que é traído pela sua habilidade e a ilusão passa […] A personagem original [Ahab] foi severamente danificada, ou totalmente arruinada, por um exagero ignóbil com a camada de erudição e misticismo; não há método na sua loucura; e, como tal, temos de declarar a principal personagem do livro como um rotundo fracasso, e a falta de valor artístico da própria obra.”
Ninguém compreendia por que razão Melville escolhera afastar-se de um registo que dominava tão bem para se perder no labirinto da angústia existencial, dos tormentos vagamente místicos. Não compreendiam porque não compreendiam Melville. Ainda não sabiam que “Moby Dick” não era uma escolha, era um destino.
Criado nos rigores do Calvinismo, Melville vivia atormentado pela noção de pecado original e pelo terrível silêncio de Deus
Foram as leituras de Melville no período em que escreveu “Moby Dick” que o aproximaram desse destino. As obras de Shakespeare, mas também de Montaigne, Rabelais, Coleridge, Thomas Browne e Milton, abriram-lhe o caminho e dotaram-no dos alicerces de linguagem adequados para fundar o seu edifício metafísico. As suas preocupações existenciais, as suas dúvidas teológicas, as suas questões filosóficas, já estavam dentro de si.
Criado nos rigores do Calvinismo, Melville vivia atormentado pela noção de pecado original e pelo terrível silêncio de Deus. Como apontou o crítico James Wood, Melville descobriu três coisas fundamentais durante aqueles anos de gestação do livro: a metáfora, a metafísica e Shakespeare. Essas descobertas permitiram-lhe encenar a sua tragédia metafísica disfarçada, mas não muito, pelo véu do romance de aventuras e do romance-enciclopédia sobre baleias.
Assim como Sir Walter Scott enchia os seus romances de pó da França e da Escócia medievais, com roupas, datas e batalhas, Melville encheu o seu romance de roupas, datas e batalhas da baleia
O tema, prosaico à superfície, resolvia de uma só vez dois dos problemas com que Melville se debatia: como fazer uma “tragédia digna de Shakespeare sem situar a história num passado remoto” e, como se lê a dada altura no romance, como fazer mais do que uma mera “fábula monstruosa, ou, o que seria ainda pior, uma medonha e intolerável alegoria.”
O segundo problema resolvia-se com uma miríade de factos objetivos sobre baleias e a caça aos animais, atenuando a carga simbólica e alegórica da intriga e reforçando a sua verosimilhança. O primeiro problema resolvia-se, segundo James Wood, fazendo do romance “um romance histórico cuja época é a baleia, velha de milhares de anos. Assim como Sir Walter Scott enchia os seus romances de pó da França e da Escócia medievais, com roupas, datas e batalhas, Melville encheu o seu romance de roupas, datas e batalhas da baleia. A baleia é uma nação e uma época.”
Mas é através da linguagem, ou não fosse “Moby Dick” literatura, que Melville transforma o prosaico em épico. Em primeiro lugar, pelas inúmeras metáforas que pontuam todo o romance e em que se deteta não só a criatividade exuberante do autor mas também, como nota Wood, sinais da religiosidade de Melville. A metáfora é-lhe irresistível: a baleia é como “uma colina de neve suspensa no ar”, os homens “enchiam os ventres como navios a carregar os porões de especiarias num porto indiano”, as sobrancelhas de Queequeg eram como “dois promontórios salientes cobertos de matagal”, ao lado de Daggoo um branco “parecia uma bandeira de armistício mendigando tréguas diante de uma fortaleza”, a espuma projetada por um navio é como “baba de um potro a galope”, a mergulhar e a erguer o nariz “como um escravo na presença do sultão”, “o mundo é um navio numa viagem sem regresso e o púlpito é a proa desse navio”, as estalactites de gelo pendentes da proa são comparadas às “presas brancas de um elefante gigantesco”, entre as rugas de Ahab “brilhavam os tons suaves de uma renovação, como erva nova apontando timidamente sob as neves de fevereiro”.
Trailer de “Moby Dick”, com Gregory Peck no papel de capitão Ahab
Depois, porque é a linguagem que define as personagens, sobretudo o capitão Ahab. Não é só pela descrição do aspeto físico do capitão do Pequod – elogiada pelos críticos da época – que Melville impõe a figura possuída de Ahab. A sua entrada em cena é formidável: “o seu vulto alto e largo parecia feito de bronze sólido e fundido num molde impecável”, no seu olhar “teimoso e indómito havia uma fortaleza firme, uma vontade determinada que não se rende.”
Ahab domina, pela imponência física, a tripulação, infunde-lhes um temor primitivo (“Oh, Ahab! a tua grandeza é imaterial como a dos céus e a dos abismos!”; “Ahab tão depressa se encontrava encerrado na cabina como regressava aos passeios na coberta, tendo no seu aspeto o mesmo intenso fanatismo de sempre”; “Os três oficiais estremeceram perante a sua expressão dura, intensa e mística.”) É isso que lhe permite contagiá-los com a sua obsessão pela captura da grande baleia branca e é a sua estatura física e a sua odiosa intensidade que respaldam a linguagem absorvida nas peças de Shakespeare, que alguns críticos julgavam excessiva e capaz de anular o efeito de suspensão da descrença que o talento descritivo de Melville criara.
Todo o substrato religioso, espiritual, que se encontra inequivocamente expresso e que é o verdadeiro coração do romance, era por muitos considerado uma digressão escusada, um delírio
Se “Moby Dick” fosse apenas um romance de aventuras não haveria espaço para aquela linguagem. Aí, sim, a linguagem trairia a verosimilhança da narrativa. Lido como uma fantasia juvenil, “Moby Dick” é a história da vingança de um homem contra a baleia que o estropiou. Era assim que os contemporâneos de Melville estavam preparados para ler o livro.
Todo o substrato religioso, espiritual, que se encontra inequivocamente expresso e que é o verdadeiro coração do romance, era por muitos considerado uma digressão escusada, um delírio, como se Melville estivesse possuído pelo espírito do capitão que inventara e “Moby Dick”, o romance, fosse a sua Baleia Branca, que tinha de subjugar ou correr o risco de ser destruído por ela. Porém, desde o início, Melville encaminha o romance para águas religiosas e metafísicas, a começar pelo sermão do padre Mapple sobre Jonas e a ominosa figura do profeta que fala a Ismael sobre a história de Ahab.
Ahab não é um aventureiro. Não está empenhado numa expedição técnica com fins económicos, está envolvido numa perseguição metafísica, primordial. Pertence, como escreveu Harold Bloom, “a uma etapa mais selvagem da religião americana”. Ahab não persegue Moby Dick apenas com o intuito de vingança por esta lhe ter decepado a perna.
Ahab empilhara sobre a bossa branca da baleia a soma de cólera e de furor sentidos por toda a humanidade a partir de Adão
Trata-se de uma batalha que supera largamente a sua circunstância individual. É um combate final, apocalíptico, por procuração, em que a baleia é um símbolo, a corporização do derradeiro adversário, a morte, o vazio, o mal, o absoluto inominável: “A Baleia Branca nadava diante dele como a encarnação monomaníaca de todos aqueles agentes maliciosos que alguns homens sentem a corroê-los […] Essa inatingível e remota malignidade a cujo poder até os modernos cristãos atribuem o domínio de metade do mundo, e que os antigos ofitas do Oriente reverenciavam as suas imagens demoníacas, Ahab não se prosternava para adorá-la, mas na sua loucura encarnava-a na Baleia Branca, tão detestada, e, mesmo mutilado, lançava-se contra ela. Tudo o que enlouquece e que atormenta, tudo o que agita o fundo turvo das coisas, toda a verdade contendo uma dose de malícia, tudo o que desorganiza os nervos e confunde o cérebro, tudo o que existe de demoníaco na vida e no pensamento, todo o mal em suma, encontrava-se visivelmente personificado e tornava-se praticamente suscetível de ser enfrentado em Moby Dick. Ahab empilhara sobre a bossa branca da baleia a soma de cólera e de furor sentidos por toda a humanidade a partir de Adão, e como se o seu peito fosse um morteiro fazia deflagrar lá a granada do seu coração ardente.”
Ao escolher como alvo do seu ódio, do seu protesto humano, uma criatura que tanto pode ser manifestação do divino como encarnação do mal, absoluto e vazio, Ahab assume o seu lado blasfemo e, ao mesmo tempo, sagrado
O imediato Starbuck, quaker de origem, não compreende como é que Ahab pode sentir tanto ódio por uma criatura irracional e chega a considerar esse ódio como uma blasfémia. Mas Ahab é blasfemo, é o homem revoltado contra Deus, contra a criação, contra o mundo e contra o espírito que anima e se esconde por trás das “máscaras de papelão” dos seres. É satânico, num sentido miltoniano. Para ele, pouco importa que Moby Dick seja agente ou mero instrumento. De uma maneira ou de outra, dotada ou não de inteligência, Moby Dick encarna o mal.
No seu silêncio, na sua brancura inescrutável, nas suas arremetidas violentas como manifestações brutais da natureza, nas lendas que inspira, à baleia são-lhe atribuídas propriedades divinas: a ubiquidade (“Uma das mais fantasiosas superstições a que me referi, relacionada com a Baleia Branca, era a de que ela tinha o poder da ubiquidade, pois tinha sido encontrada nas duas latitudes ao mesmo tempo”), a imortalidade, (“a imortalidade nada mais sendo que a ubiquidade referida ao tempo”), a impossibilidade de ser retratada (“o grande leviatão é a única criatura do mundo impossível de retratar”) e a ambiguidade da sua cor, celestial e terrível, como o anjo de Rilke: “é ela ao mesmo tempo o símbolo mais significativo das coisas espirituais, o verdadeiro véu do Deus cristão, e ao mesmo tempo o agente que torna mais intenso o horror das coisas que atemorizam o homem.”
Ao escolher como alvo do seu ódio, do seu protesto humano, uma criatura que tanto pode ser manifestação do divino como encarnação do mal, absoluto e vazio, Ahab assume o seu lado blasfemo e, ao mesmo tempo, sagrado. Assume, enfim, a sua humanidade. Há nele, como em todos os homens, um ódio, um desejo de protesto que raramente encontra o objeto contra o qual se dirigir. Moby Dick é esse objeto. É o fim último da existência de Ahab. Este revolta-se contra a baleia porque lhe falta o Deus contra quem blasfemar, o Deus a quem dirigir as suas ofensas. Ele diz que se o Sol o insultasse, ele replicaria. A baleia, alva como a luz, é esse Deus e a obsessão de Ahab é a obsessão dos homens em luta contra um Deus que pressentem, mas que nunca lhes é revelado.
“Morte a Moby Dick! Que Deus nos persiga se nós não perseguirmos Moby Dick! Que Deus nos persiga se nós não perseguirmos Moby Dick até lhe darmos a morte!”
Harold Bloom diz que Ahab é o Prometeu americano e não o Adão. É o homem que se insurge contra a sua condição, fadado para a destruição, que não a teme pois sabe que não lhe poderá escapar e que o melhor, ainda assim, será enfrentá-la, persegui-la, ser derrotado por ela, destruído pela destruição. Antes isso, escolher o combate, do que aguardar a condenação: “Morte a Moby Dick! Que Deus nos persiga se nós não perseguirmos Moby Dick! Que Deus nos persiga se nós não perseguirmos Moby Dick até lhe darmos a morte!”
Ahab não é um louco nem um suicida, ou não é mais louco nem mais suicida do que Cristo (Faulkner chamou ao desfecho de Ahab “uma espécie de Gólgota do coração”). É um homem que só pode afirmar a dignidade da sua condição enfrentando esse inimigo invencível: “Não é um louco temerário que te defronta agora. Confesso o teu poder que está em toda a parte sem que possa ter o menor direito sobre mim mesmo. No meio da impessoalidade geral, aqui está alguém.” Ecce homo! Santo e blasfemo. Aliás, como o próprio Melville, que, depois de concluir o romance, dizia ter escrito um livro sacrílego e sentir-se tão puro como um cordeiro, acrescentando uma sentença profética: “Embora tenha escrito os Evangelhos deste século, hei de morrer na valeta.”
O grande romance da grande baleia branca e do seu insensato perseguidor foi a batalha final de Melville. Continuou a escrever e a publicar, mas o mundo ignorou-o
A profecia cumpriu-se, pelo menos no que respeita à reputação literária de Melville. “Moby Dick” foi o seu fim. O grande romance da grande baleia branca e do seu insensato perseguidor foi a batalha final de Melville. Continuou a escrever e a publicar, mas o mundo ignorou-o. Amainada a tempestade, o grande monstro desapareceu nas águas e Melville mergulhou na obscuridade. Quando morreu, em 1891, estava esquecido. Foi apenas nas comemorações do centenário do seu nascimento, em 1919, que “Moby Dick” reemergiu, solitário e imponente, tendo à sua volta um conjunto de obras menores em relação às quais se destacava como o Leviatã. O tempo, tal como Melville, pela voz de Ismael, previra, concluía o trabalho: “As pequenas construções podem ser concluídas pelos arquitetos que as conceberam; mas as grandes, as verdadeiras, só podem ser terminadas pela posteridade. Deus me livre de completar seja o que for. Este livro, todo ele, não passa de um esboço. Nem isso! Não passa do esboço de um esboço.”
Citações retiradas de Moby Dick, tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves, Relógio D’Água, 2005