Herman
Melville, o homem que escreveu 600 páginas que acabaram por entrar no
subconsciente coletivo da América, nasceu há 200 anos. Houve — há — quem
considerasse essa longa prosa uma obra-prima, houve — há — quem veja
nela o trabalho de um louco. O escritor Bruno Vieira Amaral analisa “o”
romance que tem dentro a essência do apelo dos mares e mostra de que
lado está
Saltemos o
“tratem-me por Ismael”. O início perfeito de um romance é o que se
segue. Em poucas linhas, Herman Melville capta a essência do apelo dos
mares na cabeça e no corpo de um marinheiro e que os homens que nunca
levantaram ferro, nunca viram os parentes a acenar adeuses de um cais,
poderão sentir, mas dificilmente poderão compreender. O tédio brumoso de
novembro que cai sobre a alma, os cortejos fúnebres de mau sestro, o
desejo infantil de arrancar chapéus sérios de cabeças ainda mais sérias,
é o que basta para o leitor, mesmo estando a ler aquela página em
terra, embarque no navio que é “Moby Dick” e parta à aventura pelas
procelosas seiscentas páginas que demoraram a entrar no subconsciente
coletivo da América, mas uma vez lá fixadas, nunca mais de lá saíram.
*
Moby
Dick teve a primeira edição em Londres em outubro de 1851 com o título
“A Baleia”. Pouco tempo depois saiu a edição americana: “Moby Dick”. O
livro mereceu a atenção da crítica dos dois lados do Atlântico. Melville
era um escritor reconhecido. Dois dos seus livros anteriores, “Taipi”
(1846) e “Omoo” (1847), inspirados na sua experiência de marinheiro
pelos mares do Sul, tinham alcançado um sucesso surpreendente. Eram
livros de aventuras, em cenários exóticos para a maioria, senão a
totalidade, dos seus leitores, e granjearam ao autor uma reputação
sólida.
“Moby
Dick”, publicado depois do fracasso de “Mardi” (1849), confundiu toda a
gente. Quando ainda estava no processo de escrita, Melville descreveu-o
assim: “é um romance de aventuras baseado em algumas lendas selvagens
da caça à baleia nos mares do Sul.” É verdade que o romance também é
isso, mas reduzi-lo às aventuras seria o mesmo que dizer que o
“Ulisses”, de James Joyce, é a narração de um dia na vida de um
irlandês.
A maioria dos críticos da época, que
deviam apreciar o estilo revelado por Melville nos livros anteriores,
elogiaram o que havia de continuidade em “Moby Dick” e ficaram
baralhados com o que era novo. Havia os que o consideravam uma
obra-prima e os que achavam que era o trabalho de um louco. Aqueles não
deixavam de lhe apontar certos defeitos e estes reconheciam-lhe algumas
qualidades. Acima de todas o seu extraordinário talento para a
descrição, de personagens e ambientes, que já demonstrara anteriormente.
Quando
galgava a cerca dos factos puros e duros, do lado de aventura marítima,
e arriscava a aventura metafísica, os críticos julgavam que o livro,
tal como um navio com excesso de carga, se afundava sob o peso da sua
desmesura
O que suscitava críticas, além da
exibição de erudição cetológica que alguns viam como um verdadeiro teste
à paciência dos leitores, era o lado metafísico, espiritual e religioso
do livro, a cadência bíblica da sua prosa, a ambição shakespeariana da
sua linguagem. Para os que o olhavam à distância, era como se Melville
estivesse a nadar para fora de pé.
Enquanto se
mantinha ancorado na realidade da vida a bordo de um baleeiro e na
descrição dos seus exóticos tripulantes, Melville estava à vontade. Mas
quando galgava a cerca dos factos puros e duros, do lado de aventura
marítima, e arriscava a aventura metafísica, os críticos julgavam que o
livro, tal como um navio com excesso de carga, se afundava sob o peso da
sua desmesura.
Na “London Literary Gazette”, um
crítico escrevia: “Herman Melville conquistou uma merecida reputação
pelos seus desempenhos na ficção descritiva. Recolheu os seus próprios
materiais e desbravou novos e desconhecidos caminhos literários,
revelando capacidades incomuns e uma grande originalidade. Como tal,
deveria ser mais cauteloso a fim de preservar a fama que atingiu de
forma tão célere e não desperdiçar o seu talento em obras tão absurdas e
desequilibradas como estes volumes desconexos sobre cachalotes.”
Para
dizer a verdade, a vaidade do Sr. Melville é incomensurável. Ou é o
maior da tribo livresca ou desaparece. Ou concentra sobre si todas as
atenções ou abandona imediatamente o campo literário
Se
o livro não foi tão mal recebido, especialmente em Inglaterra, como a
lenda do “romance maldito” nos quer fazer crer, houve críticas
demolidoras, como a que saiu na “New York United States Magazine and
Democratic Review” e que merece a pena ser longamente citada: “Se se
tivesse contentado em escrever um ou dois livros, poderia ter sido
famoso, mas a sua vaidade arruinou-lhe todas as hipóteses de
imortalidade. Porque, para dizer a verdade, a vaidade do Sr. Melville é
incomensurável. Ou é o maior da tribo livresca ou desaparece. Ou
concentra sobre si todas as atenções ou abandona imediatamente o campo
literário. É desta autoestima mórbida, a que se junta uma atração
ilimitada pela notoriedade, que brotam todos os esforços do Sr.
Melville, todas as suas contorções retóricas, todos os seus insultos
grandiloquentes à sociedade, todo o seu sentimento inflado e toda a sua
licenciosidade insinuante. […] Não temos intenção de citar nenhuma das
passagens de “Moby Dick”. Os jornais londrinos, segundo nos dizem,
“cobriram o livro de elogios”, e não estamos dispostos a contrariar
essas sumidades. Mas se algum dos nossos leitores quiser encontrar
exemplos de má retórica, de sintaxe afetada, sentimentos pomposos e
Inglês incoerente, tomaremos a liberdade de lhes recomendar este
precioso volume do Sr. Melville.”
“Temos de declarar a principal personagem do livro como um rotundo fracasso, e a falta de valor artístico da própria obra”
Mais
reveladora da incompreensão que recebeu o romance foi a crítica
assinada por William Young, na “New York Albion”. É equilibrada,
reconhece-lhe qualidades e aponta-lhe defeitos, mas são precisamente
estes que fazem de “Moby Dick” o romance magistral que é: “Não só temos
diante de nós uma quantidade imensa de informações fiáveis como todas as
personagens são desenhos vívidos feitos ao melhor estilo do autor. O
que fazem e o que são é trazido à perceção de uma pessoa com uma
espantosa minúcia; e, no entanto, essa minúcia não estraga os nítidos
contornos de cada uma. É somente quando o Sr. Melville coloca palavras
na boca desses seres vivos e em movimento que é traído pela sua
habilidade e a ilusão passa […] A personagem original [Ahab] foi
severamente danificada, ou totalmente arruinada, por um exagero ignóbil
com a camada de erudição e misticismo; não há método na sua loucura; e,
como tal, temos de declarar a principal personagem do livro como um
rotundo fracasso, e a falta de valor artístico da própria obra.”
Ninguém
compreendia por que razão Melville escolhera afastar-se de um registo
que dominava tão bem para se perder no labirinto da angústia
existencial, dos tormentos vagamente místicos. Não compreendiam porque
não compreendiam Melville. Ainda não sabiam que “Moby Dick” não era uma
escolha, era um destino.
Criado nos rigores do Calvinismo, Melville vivia atormentado pela noção de pecado original e pelo terrível silêncio de Deus
Foram
as leituras de Melville no período em que escreveu “Moby Dick” que o
aproximaram desse destino. As obras de Shakespeare, mas também de
Montaigne, Rabelais, Coleridge, Thomas Browne e Milton, abriram-lhe o
caminho e dotaram-no dos alicerces de linguagem adequados para fundar o
seu edifício metafísico. As suas preocupações existenciais, as suas
dúvidas teológicas, as suas questões filosóficas, já estavam dentro de
si.
Criado nos rigores do Calvinismo, Melville
vivia atormentado pela noção de pecado original e pelo terrível silêncio
de Deus. Como apontou o crítico James Wood, Melville descobriu três
coisas fundamentais durante aqueles anos de gestação do livro: a
metáfora, a metafísica e Shakespeare. Essas descobertas permitiram-lhe
encenar a sua tragédia metafísica disfarçada, mas não muito, pelo véu do
romance de aventuras e do romance-enciclopédia sobre baleias.
Assim
como Sir Walter Scott enchia os seus romances de pó da França e da
Escócia medievais, com roupas, datas e batalhas, Melville encheu o seu
romance de roupas, datas e batalhas da baleia
O
tema, prosaico à superfície, resolvia de uma só vez dois dos problemas
com que Melville se debatia: como fazer uma “tragédia digna de
Shakespeare sem situar a história num passado remoto” e, como se lê a
dada altura no romance, como fazer mais do que uma mera “fábula
monstruosa, ou, o que seria ainda pior, uma medonha e intolerável
alegoria.”
O segundo problema resolvia-se com uma
miríade de factos objetivos sobre baleias e a caça aos animais,
atenuando a carga simbólica e alegórica da intriga e reforçando a sua
verosimilhança. O primeiro problema resolvia-se, segundo James Wood,
fazendo do romance “um romance histórico cuja época é a baleia, velha de
milhares de anos. Assim como Sir Walter Scott enchia os seus romances
de pó da França e da Escócia medievais, com roupas, datas e batalhas,
Melville encheu o seu romance de roupas, datas e batalhas da baleia. A
baleia é uma nação e uma época.”
Mas
é através da linguagem, ou não fosse “Moby Dick” literatura, que
Melville transforma o prosaico em épico. Em primeiro lugar, pelas
inúmeras metáforas que pontuam todo o romance e em que se deteta não só a
criatividade exuberante do autor mas também, como nota Wood, sinais da
religiosidade de Melville. A metáfora é-lhe irresistível: a baleia é
como “uma colina de neve suspensa no ar”, os homens “enchiam os ventres
como navios a carregar os porões de especiarias num porto indiano”, as
sobrancelhas de Queequeg eram como “dois promontórios salientes cobertos
de matagal”, ao lado de Daggoo um branco “parecia uma bandeira de
armistício mendigando tréguas diante de uma fortaleza”, a espuma
projetada por um navio é como “baba de um potro a galope”, a mergulhar e
a erguer o nariz “como um escravo na presença do sultão”, “o mundo é um
navio numa viagem sem regresso e o púlpito é a proa desse navio”, as
estalactites de gelo pendentes da proa são comparadas às “presas brancas
de um elefante gigantesco”, entre as rugas de Ahab “brilhavam os tons
suaves de uma renovação, como erva nova apontando timidamente sob as
neves de fevereiro”.
Trailer de “Moby Dick”, com Gregory Peck no papel de capitão Ahab
Depois,
porque é a linguagem que define as personagens, sobretudo o capitão
Ahab. Não é só pela descrição do aspeto físico do capitão do Pequod –
elogiada pelos críticos da época – que Melville impõe a figura possuída
de Ahab. A sua entrada em cena é formidável: “o seu vulto alto e largo
parecia feito de bronze sólido e fundido num molde impecável”, no seu
olhar “teimoso e indómito havia uma fortaleza firme, uma vontade
determinada que não se rende.”
Ahab domina, pela
imponência física, a tripulação, infunde-lhes um temor primitivo (“Oh,
Ahab! a tua grandeza é imaterial como a dos céus e a dos abismos!”;
“Ahab tão depressa se encontrava encerrado na cabina como regressava aos
passeios na coberta, tendo no seu aspeto o mesmo intenso fanatismo de
sempre”; “Os três oficiais estremeceram perante a sua expressão dura,
intensa e mística.”) É isso que lhe permite contagiá-los com a sua
obsessão pela captura da grande baleia branca e é a sua estatura física e
a sua odiosa intensidade que respaldam a linguagem absorvida nas peças
de Shakespeare, que alguns críticos julgavam excessiva e capaz de anular
o efeito de suspensão da descrença que o talento descritivo de Melville
criara.
Todo o substrato religioso,
espiritual, que se encontra inequivocamente expresso e que é o
verdadeiro coração do romance, era por muitos considerado uma digressão
escusada, um delírio
Se “Moby Dick” fosse apenas um
romance de aventuras não haveria espaço para aquela linguagem. Aí, sim,
a linguagem trairia a verosimilhança da narrativa. Lido como uma
fantasia juvenil, “Moby Dick” é a história da vingança de um homem
contra a baleia que o estropiou. Era assim que os contemporâneos de
Melville estavam preparados para ler o livro.
Todo o
substrato religioso, espiritual, que se encontra inequivocamente
expresso e que é o verdadeiro coração do romance, era por muitos
considerado uma digressão escusada, um delírio, como se Melville
estivesse possuído pelo espírito do capitão que inventara e “Moby Dick”,
o romance, fosse a sua Baleia Branca, que tinha de subjugar ou correr o
risco de ser destruído por ela. Porém, desde o início, Melville
encaminha o romance para águas religiosas e metafísicas, a começar pelo
sermão do padre Mapple sobre Jonas e a ominosa figura do profeta que
fala a Ismael sobre a história de Ahab.
Ahab não é
um aventureiro. Não está empenhado numa expedição técnica com fins
económicos, está envolvido numa perseguição metafísica, primordial.
Pertence, como escreveu Harold Bloom, “a uma etapa mais selvagem da
religião americana”. Ahab não persegue Moby Dick apenas com o intuito de
vingança por esta lhe ter decepado a perna.
Ahab empilhara sobre a bossa branca da baleia a soma de cólera e de furor sentidos por toda a humanidade a partir de Adão
Trata-se
de uma batalha que supera largamente a sua circunstância individual. É
um combate final, apocalíptico, por procuração, em que a baleia é um
símbolo, a corporização do derradeiro adversário, a morte, o vazio, o
mal, o absoluto inominável: “A Baleia Branca nadava diante dele como a
encarnação monomaníaca de todos aqueles agentes maliciosos que alguns
homens sentem a corroê-los […] Essa inatingível e remota malignidade a
cujo poder até os modernos cristãos atribuem o domínio de metade do
mundo, e que os antigos ofitas do Oriente reverenciavam as suas imagens
demoníacas, Ahab não se prosternava para adorá-la, mas na sua loucura
encarnava-a na Baleia Branca, tão detestada, e, mesmo mutilado,
lançava-se contra ela. Tudo o que enlouquece e que atormenta, tudo o que
agita o fundo turvo das coisas, toda a verdade contendo uma dose de
malícia, tudo o que desorganiza os nervos e confunde o cérebro, tudo o
que existe de demoníaco na vida e no pensamento, todo o mal em suma,
encontrava-se visivelmente personificado e tornava-se praticamente
suscetível de ser enfrentado em Moby Dick. Ahab empilhara sobre a bossa
branca da baleia a soma de cólera e de furor sentidos por toda a
humanidade a partir de Adão, e como se o seu peito fosse um morteiro
fazia deflagrar lá a granada do seu coração ardente.”
Ao
escolher como alvo do seu ódio, do seu protesto humano, uma criatura
que tanto pode ser manifestação do divino como encarnação do mal,
absoluto e vazio, Ahab assume o seu lado blasfemo e, ao mesmo tempo,
sagrado
O imediato Starbuck, quaker de origem, não
compreende como é que Ahab pode sentir tanto ódio por uma criatura
irracional e chega a considerar esse ódio como uma blasfémia. Mas Ahab é
blasfemo, é o homem revoltado contra Deus, contra a criação, contra o
mundo e contra o espírito que anima e se esconde por trás das “máscaras
de papelão” dos seres. É satânico, num sentido miltoniano. Para ele,
pouco importa que Moby Dick seja agente ou mero instrumento. De uma
maneira ou de outra, dotada ou não de inteligência, Moby Dick encarna o
mal.
No seu silêncio, na sua brancura inescrutável,
nas suas arremetidas violentas como manifestações brutais da natureza,
nas lendas que inspira, à baleia são-lhe atribuídas propriedades
divinas: a ubiquidade (“Uma das mais fantasiosas superstições a que me
referi, relacionada com a Baleia Branca, era a de que ela tinha o poder
da ubiquidade, pois tinha sido encontrada nas duas latitudes ao mesmo
tempo”), a imortalidade, (“a imortalidade nada mais sendo que a
ubiquidade referida ao tempo”), a impossibilidade de ser retratada (“o
grande leviatão é a única criatura do mundo impossível de retratar”) e a
ambiguidade da sua cor, celestial e terrível, como o anjo de Rilke: “é
ela ao mesmo tempo o símbolo mais significativo das coisas espirituais, o
verdadeiro véu do Deus cristão, e ao mesmo tempo o agente que torna
mais intenso o horror das coisas que atemorizam o homem.”
Ao
escolher como alvo do seu ódio, do seu protesto humano, uma criatura
que tanto pode ser manifestação do divino como encarnação do mal,
absoluto e vazio, Ahab assume o seu lado blasfemo e, ao mesmo tempo,
sagrado. Assume, enfim, a sua humanidade. Há nele, como em todos os
homens, um ódio, um desejo de protesto que raramente encontra o objeto
contra o qual se dirigir. Moby Dick é esse objeto. É o fim último da
existência de Ahab. Este revolta-se contra a baleia porque lhe falta o
Deus contra quem blasfemar, o Deus a quem dirigir as suas ofensas. Ele
diz que se o Sol o insultasse, ele replicaria. A baleia, alva como a
luz, é esse Deus e a obsessão de Ahab é a obsessão dos homens em luta
contra um Deus que pressentem, mas que nunca lhes é revelado.
“Morte
a Moby Dick! Que Deus nos persiga se nós não perseguirmos Moby Dick!
Que Deus nos persiga se nós não perseguirmos Moby Dick até lhe darmos a
morte!”
Harold Bloom diz que Ahab é o Prometeu
americano e não o Adão. É o homem que se insurge contra a sua condição,
fadado para a destruição, que não a teme pois sabe que não lhe poderá
escapar e que o melhor, ainda assim, será enfrentá-la, persegui-la, ser
derrotado por ela, destruído pela destruição. Antes isso, escolher o
combate, do que aguardar a condenação: “Morte a Moby Dick! Que Deus nos
persiga se nós não perseguirmos Moby Dick! Que Deus nos persiga se nós
não perseguirmos Moby Dick até lhe darmos a morte!”
Ahab
não é um louco nem um suicida, ou não é mais louco nem mais suicida do
que Cristo (Faulkner chamou ao desfecho de Ahab “uma espécie de Gólgota
do coração”). É um homem que só pode afirmar a dignidade da sua condição
enfrentando esse inimigo invencível: “Não é um louco temerário que te
defronta agora. Confesso o teu poder que está em toda a parte sem que
possa ter o menor direito sobre mim mesmo. No meio da impessoalidade
geral, aqui está alguém.” Ecce homo! Santo e blasfemo. Aliás, como o
próprio Melville, que, depois de concluir o romance, dizia ter escrito
um livro sacrílego e sentir-se tão puro como um cordeiro, acrescentando
uma sentença profética: “Embora tenha escrito os Evangelhos deste
século, hei de morrer na valeta.”
O grande
romance da grande baleia branca e do seu insensato perseguidor foi a
batalha final de Melville. Continuou a escrever e a publicar, mas o
mundo ignorou-o
A profecia cumpriu-se, pelo menos
no que respeita à reputação literária de Melville. “Moby Dick” foi o seu
fim. O grande romance da grande baleia branca e do seu insensato
perseguidor foi a batalha final de Melville. Continuou a escrever e a
publicar, mas o mundo ignorou-o. Amainada a tempestade, o grande monstro
desapareceu nas águas e Melville mergulhou na obscuridade. Quando
morreu, em 1891, estava esquecido. Foi apenas nas comemorações do
centenário do seu nascimento, em 1919, que “Moby Dick” reemergiu,
solitário e imponente, tendo à sua volta um conjunto de obras menores em
relação às quais se destacava como o Leviatã. O tempo, tal como
Melville, pela voz de Ismael, previra, concluía o trabalho: “As pequenas
construções podem ser concluídas pelos arquitetos que as conceberam;
mas as grandes, as verdadeiras, só podem ser terminadas pela
posteridade. Deus me livre de completar seja o que for. Este livro, todo
ele, não passa de um esboço. Nem isso! Não passa do esboço de um
esboço.”
Citações retiradas de Moby Dick, tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves, Relógio D’Água, 2005
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