Biblioterapia: como é que os livros curam?
Terapias alternativas
Biblioterapia: como é que os livros curam?
Catarina Lamelas Moura
A
ideia – de que os livros podem ajudar a ultrapassar os mais diversos
problemas – é simples. César Ferreira e Sandra Barão Nobre são
biblioterapeutas.
Emília
quer dar novo rumo à sua vida — como tantas outras pessoas, decidiu que
quer ocupar-se com aquilo que lhe dá mais prazer, o restauro.
Além disso foi-lhe diagnosticada uma doença auto--imune, mas o que
agora está a ajudá-la são os livros. Mais concretamente, as sessões de
biblioterapia.
Nos
últimos meses, César Ferreira, o biblioterapeuta com espaço de
atendimento na Lx Factory em Lisboa, já recebeu desde crianças com
dificuldades de leitura e dislexia a pessoas a lidar com o luto. No
Porto,
Sandra Barão Nobre lançou o próprio “consultório” há um ano. A
actividade, que hoje já se estabeleceu em países como o Reino Unido e
começa a ganhar adeptos em Portugal, é bem menos esotérica do que possa
parecer. Na acepção mais simples, define-se — segundo
a Infopédia — como o “tratamento de doenças através da leitura de
livros”. Na verdade, provavelmente já todos o fizemos de uma forma ou de
outra, ao recomendar um livro a alguém, aponta Sandra Barão Nobre.
Aliás,
o aproveitamento da leitura para fins terapêuticos vem do tempo dos
gregos e dos romanos. Ao longo da história, há relatos de
médicos que utilizavam passagens da Bíblia para ajudar à cura e, ao
longo do século XX, começaram a surgir os primeiros estudos nesta área.
Um dos grandes impulsionadores da prática foi o filósofo Alain de
Botton, que em conjunto com outros colegas, fundou,
em 2008, The School of Life — uma organização dedicada à “inteligência
emocional”, que oferece aulas e diferentes tipos de terapia. Num dos
vídeos do YouTube, que soma mais de 2,6 milhões de seguidores, é
explicado em menos de cinco minutos por que é que a
literatura é importante para o ser humano: “Dá-nos um leque de emoções e
eventos que levaríamos anos, décadas, milénios, para sentir
directamente.” Ou seja, é um “simulador de realidade” que nos permite de
forma segura sentir na pele, por exemplo, como é passar
por um divórcio, matar alguém e ter remorso e abandonar o emprego para
fazer uma viagem à volta do mundo.
É no
The Therapist, recentemente aberto no Lx Factory, que César Ferreira
pratica a biblioterapia. O espaço alberga outros tipos de terapias
alternativas como a medicina chinesa e a aiurvédica. “Neste caso estamos
a trabalhar o propósito da vida”, explica ao
PÚBLICO, no início da consulta com Emília. Na primeira sessão, a
cliente vinha à procura de algo sem saber ao certo o quê. “Tenho uma
doença que, pela lógica, vai limitar-me o meu futuro. E qualquer pessoa
procura o futuro”, desabafa.
O Alquimista, de Paulo Coelho, e Mude
a Sua Vida em 7 Dias, de Paul McKenna são alguns dos livros
que já lhe foram recomendados. Hoje tem toda a certeza que quer mudar
de profissão e fazer do hobby do
restauro a sua actividade
principal, mas aquilo que ainda a está a travar é a “questão
financeira”. Ao longo da sessão, César vai explorando vários aspectos,
colocando perguntas como “Achas que, se tivesses essa parte [financeira]
segura, avançavas imediatamente?” e “Quanto tempo podes
dedicar ao restauro por dia?”. Actua quase como um profissional de coaching.
Pessoas que lêem muito
Não
há propriamente um curso que consiga por si só formar um
biblioterapeuta. “Para se ser um bom biblioterapeuta tem de se ter,
acima
de tudo, competência ao nível da análise humana”, explica César
Ferreira, licenciado em Filosofia e mestre em Ciências da Informação e
da Comunicação. Depois, evidentemente, há que ler muito e ter interesse
em literatura, continua. Antes de ter mudado de vida
— o que agora está a ajudar Emília a fazer — era bibliotecário. Também
já fez várias formações na área do comportamento humano e defende que
“nunca iria ser um bom biblioterapeuta”, se se focasse só numa área. “A
formação mais valiosa que tenho é aquilo que
sempre fui durante a minha vida.”
Já
Sandra Barão Nobre tornou-se bibioterapeuta por conta própria, em Maio
de 2016. Antes de abandonar definitivamente o emprego de “livreira
online” na Wook, da Porto Editora, fez as malas e viajou durante seis
meses, por 14 países — e deu início a um projecto paralelo, que resultou
no livro Volta
ao Mundo com os Leitores, um livro que actualmente está
nos tops das livrarias. Quando regressou a Portugal, percebeu que “não
conseguia continuar a trabalhar como antes”. Então, tirou o certificado
de coaching
practitioner — a sua educação formal é em Relações
Internacionais — e fez um curso de biblioterapia para a infância e
juventude na Universidade do Porto. Os biblioterapeutas devem ser
“pessoas empáticas que leiam muito”, defende.
A
biblioterapeuta diz que, regra geral, “as pessoas chegam com assuntos
muito concretos” para resolver e, em grande parte dos casos,
estão ligados aos relacionamentos. Na primeira sessão, procura
“conhecer a pessoa o melhor possível”: o que a levou a procurar a
biblioterapia, quais são os seus objectivos, o que é que acha que a
biblioterapia pode fazer naquele momento e quais os hábitos
de leitura. A partir daí, prepara um relatório fundamentado com cerca
de dez livros. Nas sessões seguintes, à medida que vão avançando na
lista, a conversa gira à volta da leitura e do que esta suscitou. Em
média, diz, cada pessoa demora entre duas a três
sessões a atingir os seus objectivos.
Num
dos casos mais peculiares, Sandra recebeu uma cliente que precisava de
ajuda para desenvolver novos interesses literários. Já tinha
lido muitos livros, inclusive de diferentes géneros, mas estava
saturada e não conseguia perceber porquê. No final, a biblioterapeuta
recomendou que explorasse literatura além das fronteiras da Europa e
América.
Sandra
Barão Nobre prefere recomendar livros de ficção. “O trabalho interior
que é feito é muito mais intenso e profundo quando se lê
um bom livro de ficção. Acredito sobretudo no poder transformador da
ficção pelo papel da metáfora”, explica. Dentro da não-ficção, recomenda
por vezes livros de desenvolvimento pessoal, mas evita a auto-ajuda.
“Não tenho preconceito nenhum [em relação à auto-ajuda],
mas é muito óbvia. Isso qualquer leitor, quando acha que precisa de
ajuda, vai a uma livraria procurar.” César Ferreira concorda: “A ideia é
a pessoa viver a história, mas que, no final, não acabe ali.” Um dos
processos importantes da biblioterapia, continua,
“é a pessoa passar os seus desafios para a personagem e conseguir
perceber como a personagem os resolve”.
Durante
as consultas, é preciso saber orientar os clientes. O biblioterapeuta
diz que é importante ter confiança no caminho: “É uma das
coisas que procuram em nós.” Além do mais, continua, “a partir do
momento em que se faz um bom diagnóstico, tem-se o caminho muito
facilitado”. Assim foi durante a tarde de sexta-feira. No final da
consulta Emília já falava noutro tom: “Se calhar é uma questão
emocional e eu estava a desculpar-me com a questão financeira. Durante a
infância [a segurança financeira] foi algo que sempre me foi
transmitido.”
Emília saiu do consultório com mais dois livros para ler: O Peregrino, de
Luís Ferreira, e A Única Coisa,
de Jay Papasan e Gary Keller. O primeiro “é um livro de acção”, sobre o
Caminho de Santiago — que Emília sonha percorrer até à Galiza — e o
segundo deverá ajudá-la
a concentrar-se no restauro, tomando os passos necessários para que se
torne na sua actividade principal. Neste caso concreto, o terapeuta
recomendou que desse especial atenção a um capítulo de perguntas.
Vários tipos de consulta
Além
das sessões individuais de acompanhamento de 90 minutos (60 euros),
César recebe grupos — nomeadamente famílias, cujos filhos estão
a ter alguma dificuldade com a leitura — e faz sessões de leitura em
voz alta com massagem. Também na Lx Factory lecciona aulas de speed reading (leitura
rápida). O espaço lisboeta vai receber em
breve um segundo biblioterapeuta, revela Joana Teixeira, dona do The
Therapist. Este vai complementar a área com uma componente de
cineterapia, que envolve filmes e séries. Para Outubro, está previsto
um workshop de
biblioterapia.
Sandra Barão Nobre está a desenvolver a biblioperapia corporativa. A ideia — que já experimentou durante algum tempo numa start
up — é “trabalhar com pequenos grupos, colocando toda a
gente focada numa determinada obra ou conjunto de obras, em prol de um
objectivo comum”.
Na
biblioterapia clínica trabalha em conjunto com médicos. No Centro
Hospitalar do Porto, onde é voluntária, vai uma vez por semana ler
a uma unidade do Hospital de Santo António. “Aí lido com uma equipa que
acredita profundamente nos benefícios da leitura em voz alta às pessoas
que estão internadas”, conta. Por vezes, chega a coordenar esforços com
os profissionais, para que lhe dêem informação
sobre o perfil dos doentes, faixa etária e hábitos de leitura — assim
consegue fazer escolhas mais personalizadas.
A
biblioterapia não substitui — nem o pretende fazer — outros tipos de
terapia, como a psicologia ou a psiquiatria. Sandra Barão Nobre
diz que por vezes recebe pessoas que estão a ter um tipo de
acompanhamento médico e que a procuram, de forma complementar. Apesar de
nunca ter acontecido, garante que está atenta a possíveis sinais que
sugiram que alguém tenha necessidade de acompanhamento
médico especializado.
Sandra
prefere não chamar à biblioterapia ciência, pois “a ciência implica que
os resultados da metodologia aplicada sejam sempre os
mesmos”. Ora, “um livro será sempre diferente nas mãos de cada leitor”.
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