sábado, 18 de julho de 2020

Um Manifesto que esstá a dar a volta ao planeta




Num momento em que o planeta enfrenta alterações profundamente negativas provocadas pela pandemia Covid-19, o apoio sistémico, expressivo e forte ao sector cultural constitui-se da maior importância.

A experimentadesign toma assim a iniciativa de traduzir para português e de divulgar o manifesto de Hans Ulrich Obrist (HUO), publicado pela primeira vez a 5 de Maio de 2020, como forma de subscrever as propostas apresentadas neste documento e de, também, contribuir para a sua disseminação nos países de língua portuguesa.

19 Junho 2020


Manifesto
Hans Ulrich Obrist

O New New Deal:
Rumo a uma Nova Era de Imaginação Social


Recentemente deparei-me com um documento colectivo intitulado “The Grey Briefings” redigido pelo Special Circumstances Intelligence Unit, um grupo internacional composto por 90 futuristas, autores, designers, especialistas em tecnologia e decisores políticos. A pergunta que colocam é esta: “O que aconteceria à Europa e América do Norte se a pandemia de COVID-19 durasse um ano ou mais?”. Através do uso de software do MIT, revelam três cenários, sendo que todos implicam o fim do mundo como até agora o conhecemos.
Todos os cenários referem o desemprego em massa. O Primeiro Cenário é o Cenário Piramidal, onde os governos decretam medidas que beneficiam os mais ricos, resultando em desigualdade, pobreza e violência extremas. O Segundo Cenário é o Cenário Leviatã, no qual os governos expandem os seus poderes, utilizando-os para proferir objectivos sociais e benefícios colectivos. O terceiro é o Cenário da Aldeia, onde respostas estatais ineficazes e insustentáveis levam a uma fragmentação e à criação de soluções frágeis de apoio local Do It Yourself.
De acordo com o briefing, o cenário que acaba por melhor funcionar a longo-prazo é o Cenário Leviatã, onde todos fazem sacrifícios e são mobilizados a desenvolver soluções locais, criando experiências bottom-up com apoio governamental. Detém um foco em bens públicos e no bem-estar social, transformando a economia e criando fundações mais resilientes e sustentáveis. Este cenário leva à recuperação pós-crise e a um novo New Deal.
Alicerçados na agência Works Projects Administration, implementada na América em 1935, estes projectos seriam focados para redes públicas, serviços digitais, sistemas de saúde de vanguarda largamente acessíveis e iniciativas de energia, transporte e habitação ambientalmente conscientes. Os governos agiriam como guias e parceiros de implementação. O briefing termina com algumas questões pertinentes. Como seria um Renascimento pós-COVID19? Poderia uma crise de COVID a longo prazo provocar o estímulo necessário a uma nova era de imaginação social? Como podemos imaginar um mundo mais saudável, satisfatório e justo à luz dos desafios criados por esta “Grande Transição”?
De acordo com o briefing, na área da cultura o desafio reside na navegação de um equilíbrio delicado entre respeitar as preocupações das pessoas sobre a mudança; e encorajá-las a experimentar e permanecerem abertas a novas ideias. Como o presidente Franklin D. Roosevelt, autor do New Deal, escreveu em 1932: “O país precisa, e – a menos que eu esteja a confundir o seu temperamento – o país exige uma experimentação arrojada e persistente. É de senso-comum experimentar a aplicação de um método: se falhar, admiti-lo francamente e experimentar um outro. Mas, acima de tudo, tentar algo.
O futuro é muitas vezes construído a partir de fragmentos do passado. No final dos anos 1990, iniciei uma relação de amizade com Helen Levitt (1913 – 2009), a extraordinária fotógrafa de rua, realizadora e amiga de Walker Evans. Levitt relatou que Evans lhe tinha falado de como durante a Grande Depressão colaborara com Dorothea Lange, Gordon Parks, e muitos outros fotógrafos americanos no programa de fotografia da Farm Security Administration (FSA), que foi organizado no âmbito do New Deal em 1937 por Roy Stryker, produzindo 250,000 imagens de pobreza rural.
Levitt disse-me que se algum dia houvesse uma crise à escala global que abalasse as fundações da sociedade (tal como a que estamos a atravessar agora), deveríamos revisitar o legado do New Deal de Roosevelt e o que este fez pela cultura. Relembrando as suas palavras, procurei as notas onde escrevi o que ela transmitiu: como implementar um patronato governamental para a arte, democrático e descentralizado, e como ligar o artista à realidade social. Levitt também explicou que estes grandes projectos de apoio governamental para as artes tiveram um antecessor em 1926, quando o governo mexicano pagou a artistas para decorarem edifícios públicos com murais.
Nos Estados Unidos, o apoio governamental para as artes começou em 1933 como resultado directo da Grande Depressão, que se iniciou em 1929 e levou ao desemprego em massa. Como evidencia o historiador Robert C. Vitz, “a magnitude da crise forçou artistas a explorar novas formas de combater o seu isolamento tradicional, e eventualmente, através da organização de artistas e com o apoio de muitos programas governamentais para a arte, encontraram um novo sentido de comunidade e um novo papel na Sociedade Americana.” Vitz descreve como Morris Graves vagueou pelo Oeste a vender pinturas à beira da estrada, como Jackson Pollock atravessou o país à boleia e saltando para comboios de carga, como Arshile Gorky descreveu os anos da Depressão como sendo a época “mais sombria e devastadora” da sua vida, falando da “futilidade daquela pobreza paralisante para o artista”. Também nos fala de como Marsden Hartley escreveu que “a incerteza não contribui em nada para a paz de espírito necessária à criação de trabalho decente.
Os artistas perderam a maior parte do apoio filantrópico que tinham à medida que muitos dos eventos e feiras corporativas (incluindo a feira de arte da Society for Independent Artists apresentada no Grand Central Palace na cidade de Nova Iorque em 1931) deixaram de assegurar rendimentos. Houve uma iniciativa criada pela American Society of Painters, Sculptors and Gravers que, em 1935, sugeriu que os museus remunerassem os artistas pelo aluguer das peças que expunham. Apenas alguns museus, como o Whitney Museum of Art e o San Francisco Museum aderiram, sendo que a ideia acabou por falhar no que tocava à angariação de fundos. Tornou-se cada vez mais evidente que só uma iniciativa governamental de grande escala poderia trazer soluções.
Como explica a historiadora de arte Erica Beckh, houve uma importante reunião na residência de Edward Bruce em Washington D.C a 8 de Dezembro de 1933. Bruce era artista, advogado, empresário, editor e coleccionador. A sua mente generalista e espírito pragmático foram instrumentais para a criação de um programa para ajudar artistas. Juntou vários directores de museus de todo o país para uma reunião – onde também esteve Eleanor Roosevelt – que foi presidida pelo tio de Roosevelt, Frederic A. Delano. Aqui, foi delineado o primeiro programa federal de arte, o Public Works of Art Project (PWAP), com o objectivo de criar oportunidades de trabalho para artistas americanos através de encomendas, como por exemplo esculturas e murais para edifícios federais. Beckh resume:
Administrado pelo Procurement Division of the Treasury Department com fundos alocados pelo Federal Emergency Relief Administration, o PWAP integrava um programa federal de apoio de emergência. Era gerido por uma equipa central em Washington, com assistência de dezasseis comissões regionais de voluntariado, compostas por pessoal de museus e semelhantes. Os objectivos gerais do programa eram (1) estabelecer métodos democráticos de patronato governamental para a arte, (2) descentralizar a actividade artística pelo país, (3) promover a emergência de novos talentos desconhecidos (4) aumentar a apreciação do grande público pelas artes e (5) promover uma inter-relação mais próxima do artista com o seu contexto social.
O PWAP terminou em 1934 e foi substituído por dois programas independentes. O primeiro, também sob a direcção de Bruce, chamava-se Section of Painting and Sculpture (que mais tarde passou a chamar-se Section of Fine Art) e era uma agência permanente, agora desvinculada do Treasury Relief Fund. Esta agência comissariou artistas profissionais para decorar edifícios federais através de concursos públicos e anónimos. Tinha a ideia central de criar mais interesse social pelos artistas.
Como escreveu o artista/muralista George Biddle em 1940, “Esta contratação de mais de 600 artistas em cerca de 800 cidades americanas não custou nem mais um cêntimo aos contribuintes. Foi financiada através de fundos alocados para a construção de edifícios, aprovados pelo Congresso.” Biddle também notou que a “política de selecção através de concurso público, em conjunto com a descentralização (algo inerente, visto que o programa para os edifícios é ele também localizado quase inteiramente em cidades pequenas) é a meu ver o maior contributo e a influência mais saudável deste programa.
O segundo programa, sob a direcção de Holgar Cahill, chamava-se Federal Art Project (FAP). Com o objectivo de agregar as belas artes, arte pública, arte popular, artesanato, arte industrial e a arte folk, integrava a Work Progress Administration (WPA, depois denominada, em 1939, Works Projects Administration), uma agência do New Deal que empregou milhões de pessoas para executarem obras públicas, incluindo a construção de edifícios públicos, estradas e outras obras de grande escala. Um dos principais problemas da Section of Fine Art era que os artistas eram frequentemente pagos em várias prestações, e cada passo precisava de ser aprovado, levando muitas vezes a inibições e cedências na execução dos murais. Contudo, sob o FAP, todos os artistas participantes recebiam um salário, algo que necessitava de menos supervisão.
Nas palavras de Cahill, “É a função dos nossos tempos organizar grandes programas culturais democráticos e participativos para reparar a relação entre artista e público. O choque necessário para iniciar o programa foi a Grande Depressão, que deixou claro que sem a intervenção da comunidade organizada, as artes entrariam numa escuridão de onde poderiam não voltar a sair por várias gerações.
O FAP incluía:
  • Belas Artes: murais, escultura, pintura com cavalete, artes gráficas. Os murais tiveram um maior alcance, ou, nas palavras do muralista George Biddle, “Sempre que a arte do mural atingia a sua máxima expressão, havia também uma religião universal – isto é, uma fé ou propósito social que o artista partilhava com todas as classes sociais.
  • Arte Prática: pósteres, fotografia, arte e artesanato, dioramas, cenários. Esta secção incluía o Index of American Design, uma pesquisa enciclopédica sobre artes decorativas e arte folk nos EUA no século XIX. O projecto contou com mais de 18,000 representações de artesanato e têxteis norte-americanos.
  • Serviços Educativos: galerias e centros de arte, ensino artístico, pesquisa e informação. De particular importância foi a criação de mais de 100 centros comunitários que uniram gerações e tornaram a arte acessível a um público mais vasto.
Como escreveu George J. Mavigliano:
Os centros de arte comunitária ajudaram a desconstruir a noção de que a arte só pode ser apreciada por um conjunto limitado de pessoas. Um número crescente de pessoas começou a reconhecer valor na arte enquanto passatempo recreativo, o que estabeleceu uma ligação entre o artista profissional e o leigo, alargando o espectro artístico na comunidade. Ambos os programas foram criados com o propósito de introduzir o universo da arte a comunidades americanas dele distanciadas até então.
Mavigliano lembra-nos o discurso de Cahill no octogésimo aniversário do filósofo John Dewey, no qual Cahill enfatizou o valor atribuído por Dewey à fruição de arte no dia-a-dia e à ligação entre arte e sociedade. O filósofo acreditava que a arte não deveria ser vista como uma mera componente da educação estandardizada, mas sim como algo a experienciar através da participação.
Cahill escreve que a sua inspiração em Dewey deriva do “facto de que as ideias filosóficas têm a capacidade de ser transformadas em programas de acção… o pensamento do filósofo enquadra-se na experiência do dia-a-dia”. Cahill inspira-se no livro de Dewey, Art as Experience (1934), que consiste num manifesto pela democratização da arte e foi uma das principais influências por detrás do meu projecto expositivo Do It. Art as Experience descreve como “o crescimento do capitalismo tem tido uma enorme influência no desenvolvimento do museu enquanto casa digna para as obras de arte, e na promoção da ideia de que elas estão distanciadas da vida comum”. Dewey procurava recriar uma continuidade entre as formas refinadas e intensas da experiência que atribuía à obra de arte e os eventos quotidianos que dão forma à nossa experiência.
Como refere Jilian Russo, “Para Dewey, a filosofia requer aplicação prática, testes, e participantes activos para gerar mudança.” Foi precisamente isto que Cahill fez no FAP, que se tornou um laboratório alargado, prático e concreto em que aplicou e promoveu as ideias de Dewey.
Depois de Pearl Harbor e da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, o Congresso, na altura bastante conservador, começou a opôr-se cada vez mais aos projectos artísticos do governo. Tinham sido cinco anos incrivelmente produtivos de patronato, o que originara milhares de obras de arte públicas. Milhões de pessoas tinham frequentado aulas de arte e artesanato abertas a todos em 107 centros comunitários. As competições anónimas, tanto regionais como nacionais, também tinham contribuído para criar um sentimento de comunidade. Certas exposições tinham sido visitadas por milhões de pessoas, algumas delas a contemplar obras de arte pela primeira vez.
As inúmeras iniciativas do programa permitiram que jovens artistas trabalhassem num ambiente de outro modo destituído, e estiveram na base de uma explosão de talento criativo nas décadas subsequentes. Stuart Davis, Marsden Hartley, Arshile Gorky, Philip Guston, William de Kooning, Lee Krasner (que afirmou que o WPA lhe salvara a vida), Jacob Lawrence, Norman Lewis, Alice Neel, Ad Reinhart e Mark Rothko beneficiaram do programa num momento crucial das suas carreiras emergentes, apesar das condições abismais.
Hoje, num momento de extrema crise no mundo, um período de preocupação profunda e precariedade para os artistas e para todos, um projecto de estímulo à criação artística na escala do WPA é uma necessidade urgente. A ideia é verdadeiramente relevante para o momento presente, tanto no que diz respeito ao reforço da economia como à ajuda e protecção dos artistas. Neste momento em particular, é importante que (como Helen Levitt me disse na conversa que originou este texto) as instituições culturais reflictam sobre como podem ir para além das suas paredes de modo a chegar a todas as pessoas. É o nosso papel colectivo, enquanto instituições públicas, apoiar os artistas e a cultura neste período. Quando as instituições culturais tornam as suas plataformas acessíveis aos artistas, muitos dos problemas mais terríveis do mundo podem ser explorados com honestidade e esperança. Se alguma vez houve um mundo necessitado de artistas, é o de hoje. No rescaldo do vírus, quando o mundo começar a reconstruir-se, as cidades têm de dar um passo em frente. As regiões têm de dar um passo em frente. Os países têm de dar um passo em frente. Os governos têm de ajudar a desenhar uma infraestrutura de mudança.
Ao pensar num novo New Deal, e em como o programa governamental FDR poderia ser uma ferramenta para os dias de hoje, é interessante consultar o livro The Green New Deal (2019) de Jeremy Rifkin. Nele, Rifkin propõe um plano urgente para enfrentar as alterações climáticas, transformar a economia e criar uma cultura verde, pós-combustíveis fósseis. Assim como a mobilização e criação de um programa federal em larga escala durante a Grande Depressão, que contou com o apoio de todos os partidos políticos e possibilitou a infraestrutura para a Segunda Revolução Industrial, o Green New Deal irá gerar toda a electricidade a partir de fontes renováveis, criar emprego e promover a investigação na nova economia verde.
É importante salientar que este é um momento muito diferente da década de 1930 e, como refere Rifkin, isto não pode ser uma réplica do New Deal do FDR. É, sim, um Green New Deal para o século XXI, centrado na recolha local de energias renováveis e gerido por infraestruturas regionais que se interligam além-fronteiras, como o wifi. No século XXI, cada estado, cidade e país do mundo pode ser relativamente auto-suficiente na criação e resiliência de energia verde. A infraestrutura da Revolução Industrial funciona de forma mais eficaz e eficiente quando é dimensionada transversalmente e liga uma infinidade de pequenos players. O Green New Deal clama por essa lateralidade na cooperação, de modo a caminhar para uma Terceira Revolução Industrial com custos marginais e uma pegada de carbono próximos do zero.
Esta é a primeira parte de um ensaio de duas partes. Escreverei um segundo capítulo sobre o Green New Deal e o mundo da arte que se debruçará sobre o projecto “Back to Earth” da Serpentine [Gallery].
Hans Ulrich Obrist


 



quarta-feira, 15 de julho de 2020

Um grande tradutor de uma obra-prima


Carlos Ascenso André. “Nada na Eneida é feito a papel químico”

Ricardo Graça. Cortesia do Jornal de Leiria Teresa Carvalho 14/07/2020 11:44
A nova tradução portuguesa da Eneida tem o selo editorial da Cotovia e a marca de um tradutor que põe saber, exigência e entrega em tudo quanto lhe sai das mãos: do pequeno bilhete de reparos deixado ao aluno de línguas e literaturas clássicas à grande tradução.

Na tradução da Eneida aplicou Carlos André o seu melhor saber de especialista em literatura latina e a sensibilidade de poeta recém-assumido. Foi nos idos de 1983 que, do século I a.C., a obra máxima de Virgílio lhe acenou, naquele jeito desafiante que consente esperas mas não admite recusas. O professor de línguas e literaturas clássicas da Universidade de Coimbra, muito embora nunca tivesse deixado de manter convívio com o grande poema latino, demorou-se. Horácio e Tibulo, cujas traduções publicou também na Cotovia, intrometeram-se. E havia ainda muito para fazer: um mestrado para concluir, aulas para preparar, um doutoramento em literatura latina, teses para orientar, ensaios para escrever, uma Faculdade para dirigir, um Centro para fundar – o Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau (IPM) que coordenou até 2018. E havia Camões, que nunca lhe deu sossego. Quase quatro décadas passadas, a Eneida aí está – em verso e na língua de Camões. 
O primeiro encontro do leitor com o protagonista da Eneida pode ser perturbante. Virgílio põe-lhe diante um homem desalentado, desistente, em lágrimas. Eneias é o único herói épico que, na sua primeira aparição, nos surge a desejar a morte. Não como glória triunfada, à semelhança de um  Aquiles, mas sem honra nem brilho, como vontade esvaziada de sentido, como se fosse preferível morrer uma só vez a tantas vezes. A imagem que se nos prende à retina é a de um vencido. Não será a única. Três livros adiante, quando o foco narrativo subitamente se volta sobre ele, como uma câmara cinematográfica pronta a surpreender-lhe o heroísmo, que vê o leitor? O predestinado herói fundador de Roma, ocupado com a construção de Cartago, a cidade inimiga donde sempre veio desgraça para Roma. Eneias é também o único herói épico que se esquece do seu próprio projecto de heroísmo nos braços de uma mulher, Dido. Das contradições da Eneida falou ao i Carlos Ascenso André, o autor da nova tradução portuguesa da epopeia latina.
Como é que foi a sua recente peregrinação pela China? Sei que até ganhou um epíteto: o Fernão Mendes Pinto do século XXI.
Ganhei outro: o cônsul de Portugal [Vítor Sereno] também dizia que eu era o jesuíta do português [risos]. A experiência foi fantástica, a um ponto tal que eu acho que me mudou. Fui uma pessoa e vim outra, e isto não é retórica.  E ainda bem. Cumpri a missão, regressei no tempo em que quis regressar. Convém dizer que Portugal não me enviou para a China. Foi um senhor chinês que foi a Coimbra convidar-me. Perguntei-lhe: mas qual é o projecto? E ele disse: não sei, é apoiar o desenvolvimento do português em Macau e na China; vai dirigir um centro que nós estamos a criar e esse centro vai ser o que o professor for capaz de fazer.
E aceitou de imediato ou hesitou?
Hesitei, a responsabilidade era muita. Estava com 60 anos, na altura, e já não é propriamente idade para emigrar, mas achei que o desafio era fascinante. O que mais mexeu comigo foi a dimensão, o confronto com uma outra escala. Ao fim de alguns meses em Macau, entendi que a minha missão se cumpria no interior da China e, portanto, passei a viajar. Cheirava-me aqui uma universidade que tinha um projecto de lançar o português e lá ia eu perguntar que ajuda era necessária. Esta viagem permanente por sítios que estavam algures no meu imaginário, outros de que nem sequer tinha ouvido falar,  marcou-me. Tive um impacto emotivo quando vi do alto o rio  Yangtzé. Ou o rio Amarelo, na cidade de Lanzhou, que no meu imaginário era perdido no norte da China, a caminho da Mongólia. E até fui fazer rafting, queria fazer a experiência. 
E o que mais fez durante este período de andanças?
Andava por lá de noite, a passear sozinho nas cidades. Olhavam para mim como um estranho, mas ali o estranho era-me eu.  Frequentei alguns dos templos chineses, primeiro como turista, depois com olhos de cultura. Comecei a conviver com escultores, a gostar da pintura chinesa,  a  ser um leitor assíduo de Confúcio e, às tantas, dou-me conta de que Confúcio é contemporâneo de Sócrates. E é curioso como, a esta distância, há os dois maiores vultos da humanidade. Comecei a ver o mundo a outra luz e a dar-me conta da pequenez deste nosso país. Coimbra, a minha universidade, passou a ser insignificante. A Europa é do tamanho da China. Estou num país em que o meu continente  é do tamanho desse país. Fui-me transformando. Enquanto director da Faculdade de Letras, eu era um gestor muito pragmático, frio na gestão das coisas. Vim muito mais espiritual do que fui, sem que isso signifique nenhuma crença. Acho que regressei bastante mais sereno, mais humilde,  capaz de viver com os meus iguais e saber que são todos meus iguais e  a respeitar o que deve ser respeitado.  Uma coisa que me espantou sempre foi o respeito que tinham por mim, por duas razões: os meus cabelos brancos e por  ser professor. Ser professor para eles é um pedestal, não de ciência mas de honorabilidade.  Um professor tem de ser honorável e é ele que tem de construir essa noção.
A humildade não é lição que se aprenda na Universidade de Coimbra?
A lição da humildade faria bem à Universidade de Coimbra e a muitos dos seus agentes. 
Nesta sua tradução da Eneida, as notas de rodapé estão reduzidas a um aparato que poderíamos considerar mínimo. Pretendeu com isto marcar alguma distância da Academia, sempre imersa em notas de rodapé, e do seu modo de fazer?
Eu aprendi, ao longo dos últimos anos, a não ter a presunção de pilotar quem quer que seja. Deixei de ser piloto. Se pensarmos num autor de leitura difícil em Portugal, somos levados a pensar em Aquilo Ribeiro ou Camilo ou, no campo do romance histórico, em Alexandre Herculano, um certo Saramago ou num certo Fernando Campos. Os romances desses autores são-nos servidos sem notas. O leitor corrente é obrigado a ler “A Casa do Pó” sem saber de nada do que se passa naquele trajecto estranho, sinuoso e quase clandestino do séc. XVI. Se quer uma leitura perfeita de “O Prisioneiro da Torre Velha”, do mesmo autor,  tem de conhecer a vida toda de Dom Francisco Manuel de Melo e de tudo quanto rodeia isso, mas não está lá nada. O próprio autor não anotou e nenhum dos editores quer anotar. Que direito tenho eu de anotar um texto narrativo – porque a Eneida é um texto narrativo – com essa profusão toda, pilotando assim o meu leitor? Podem dizer-me: “mas há as questões mitológicas, há as personagens”. E eu a isso respondo com a enorme tranquilidade filha do tempo que vivemos: mas essas estão todas na Wikipédia. Se o meu leitor quer saber quem é Juno, ou quem é Mezêncio, está lá. Não há necessidade de anotar aquilo que se  encontra com um clique. É preciso é anotar aquilo que o leitor, mesmo percorrendo tudo, não encontra. Ir mais longe do que isso era tornar a obra uma obra académica, e eu acho que Virgílio é grandioso de mais, é inesgotável. Tornar a obra grandiosa era esgotá-la, era uma ofensa à grandeza de Virgílio.
Sobre Virgílio o leitor comum saberá pouco. Que depois de escrever as Bucólicas e as Geórgicas, escreveu a Eneida e que – diz a lenda biográfica -  à beira da morte, a quis destruir. Quem foi este homem?
O que temos sobre Virgílio são sobretudo notas soltas, testemunhos de Sérvio, Donato, alguns desabafos de Propércio e de Horácio. Sabemos que vivia na corte de Augusto, o que é estranho para um epicurista; que era protegido de Mecenas, a quem terá apresentado Horácio. Teve um percurso filosófico. A escola de Sino, em Nápoles, foi a que mais o marcou. Fez toda a sua vida de reflexão.    Temos vaga informação de que, depois das guerras civis, ficou deserdado das suas terras em Mântua e veio até Roma para tentar salvar alguma coisa. Ele viveu sempre muito preso da dimensão de Roma e de Itália. E é por isso que escreve, assim encadeadas, as três obras: as Bucólicas, as Geórgicas, um poema de descrença, que sabe que a chacina, a razia foi longe demais, e a Eneida. No final, decidiu fazer uma viagem à Tróade (onde fora Tróia) para conhecer os espaços onde tinham acontecido as coisas que ele narrava e não suportou a viagem. “A Morte de Virgílio”, de Hermann Broch, um romance densíssimo, faz jus ao retrato crepuscular de Virgílio. Há tudo para saber e nunca chegaremos a sabê-lo. Isto deixa-nos muitas aporias, a que o tradutor não tem que dar solução.

Quando é que começou a namorar a Eneida?
O namoro vem desde 1983, quando tive a Eneida leccionada pelo professor Walter de Medeiros. Já a tinha estudado em literatura latina, mas só no curso de mestrado a comecei a ver com outros olhos.
Depois de tantos anos de convívio com o poema de Virgílio, porque é que só agora avançou com a tradução?  
Nunca seria capaz de traduzir a Eneida em vida do Doutor Walter de Medeiros. Não é por acaso que a obra lhe é dedicada. Era uma espécie de ofensa. Disse-me que não a traduzia por não ser capaz. Dizia que precisava de 12 anos para traduzir, um ano por cada livro. Quando chegasse ao fim, o início estava tão longe que precisaria de 6 anos para rever (já íamos em 18). E, portanto, já não teria anos de vida para este trabalho. Perante esta atitude, não tive coragem. Depois da sua morte, em 2012, precisei de uns três anos para ser capaz de vencer a resistência e avançar. Tive dois estímulos muitos importantes: Vasco Graça Moura e Frederico Lourenço. No início não foi fácil, porque na China tinha funções exigentes, uma actividade intensa que me retirava tempo. Quando saí da China, fiquei dispensado e pude conviver com o texto da Eneida em permanência. E aí ganhei outro ritmo.
O primeiro quadro da Eneida afasta-se bastante da galeria dos quadros épicos de Homero.   Põe-nos diante de um Eneias desalentado, impotente, frágil, em lágrimas, que preferia ter morrido em Tróia a ter de enfrentar aquela tempestade. Depois, em Cartago, esquece-se do seu próprio projecto de heroísmo.  Apetece perguntar: e é isto um herói?  
Há uma diferença nas lágrimas. Na tempestade, chora despudoradamente à vista de toda a gente. Quando vê, na gruta de Dido, as pinturas da guerra de Tróia, volta a chorar. Com Dido, quando está para partir, ele chora mas é dentro, a lágrima não se vê. Há uma transformação dele que não a da falta de vontade, apenas um controle de emoções que lhe é imposto pelas circunstâncias de ter recebido uma ordem. Eneias faz um percurso contra-vontade. Se for ler na Eneida todas as vezes que ele quis ir ao contrário, não lhe chegam os dedos das mãos. Quer sempre voltar atrás, mas tem de ir para a frente. Ele é um desistente que não pode desistir, luta contra tudo, a começar por lutar contra si. A grandeza de Eneias é ser herói sem deixar de ser humano, assenta na sua própria fragilidade. Fez todo o seu percurso porque tinha de o fazer, ainda por cima sabendo que não chegaria ao fim dele. Sabe, desde o início, que não será ele o fundador de Roma, nunca verá o império nem nada de parecido. Eneias ganha sem ganhar. 
A Eneida é uma obra de algumas traduções para português. O que é que esta nova tradução vem acrescentar?  
Não acrescenta nem retira, é diferente. Não tenho o atrevimento de dizer que ela é mais, ou menos. Já houve um tempo em que eu era assim, tinha muita vaidade nas coisas; agora não. Procurei fazer uma tradução que fosse um compromisso entre o texto original, o tempo do texto original, o meu texto e os meus leitores neste tempo. Para estabelecer este compromisso não posso deixar de ter presente que há dois mil anos entre uma coisa e a outra e eles carrearam para dentro do poema muita informação à qual eu não posso ser insensível.  Não a conheço toda, mas ela está lá, viajou.  Há uma transferência do texto original para o leitor actual. Procurei ser fiel a coisas que eu considerava importantes: o verso, o código retórico: se há quiasmo, há quiasmo; se há repetição, há repetição, se há onomatopeia, há onomatopeia. Há um esforço da minha parte de manter alguma fidelidade, procurei manter a dimensão semântica, que assenta na metáfora. Quando Virgílio usa uma linguagem cifrada, eu acho que não devo decifrar a linguagem. O meu trabalho tem uma preocupação de natureza estética. 
Houve problemas práticos, dificuldades que se eriçaram mais nesta tradução?
Há sempre muitas dificuldades de tradução. E às vezes são coisas aparentemente simples. Por vezes, a palavra óbvia não funciona. Dou-lhe um exemplo. No momento da tempestade, quando há a união física de Dido e Eneias,  haveria a tentação de introduzir ali um tom erótico, um pouco de amor; mas não há amor, não há erotismo. O que há é um acasalamento. Se o leitor é levado por palavras nossas a uma noção erótica ou de amor, o texto original sai defraudado. Eu, que tinha traduzido tanto erotismo em Ovídio, tentei traduzir respeitando o que está no texto: chamaram casamento a uma coisa que não era. É o que lá está. E quem apadrinhou foram as ninfas, que não estavam a cantar, estavam a ulular, que é uma coisa tenebrosa, sinistra. Foi assim que se deu o acasalamento a que eles chamaram casamento. A tradução tem de ser sensível a isto. 
O leitor comum pode ter a tentação de pensar que está perante uma velharia literária com mais de dois mil anos. O que é que a epopeia de Virgílio tem para entregar aos leitores do século XXI?    
A Eneida tem virtualidades de que normalmente não se fala. Pode ser lida como uma normal narrativa do primeiro ao último verso – e é uma história. E pode ser lida por fragmentos, em espaços.  O leitor que se demore, por ex., no livro IV, que é a tragédia de amor de Dido e Eneias, vai descobrir um livro de amor estranho, porque não é uma tragédia de amor normal, é um livro da desistência do amor. Vai ter uma descoberta de um outro Eneias, e uma leitura diferente de Dido. E isso basta-lhe. O leitor do livro VI tem de ser culto, tem de perceber toda a filosofia que subjaz a esta transformação do mundo. Este livro tem lugar em todas as leituras e quem o ler com atenção verá que a Eneida não é uma epopeia de duas ou três personagens. É uma galeria infinda: Eneias, Evandro, Camila, Palante. O painel de figuras é vastíssimo. E quando encontrarmos estas personagens todas e pensarmos no mundo moderno, somos convidados a questionarmo-nos  perante a nossa história. Acho que o grande mistério da Eneida é a sua dimensão profética. E hoje faz todo o sentido.
Quer desenvolver?
A Eneida é a história do ocidente, já o disse Eliot. Disse-o, mais recentemente, o professor francês Xavier Darcos, que tem um livro com um interessante jogo de palavras, “Virgile, notre vigie”. A Eneida não é a história de Eneias. É a história de Eneias e de Augusto. Ambos se enlaçam de um tal modo que não percebemos se é Eneias que é Augusto ou se é Augusto que é Eneias. É a história de um império, a história de todos os impérios. Ao fazer isto, Virgílio vai filiar a história da Europa em Tróia, no Oriente, e não na Grécia. Mas depois liga-a a um árcade porque o principal aliado de Eneias é Evandro, que é árcade, ou seja, grego. É ali que se dá a aliança que se desfez com a guerra de Tróia. Ou seja: há uma guerra que destrói um império, há um sobrevivente desse império que virá a fundar a raiz de um novo império, mas alicerçando essa fundação numa ponte com os destruidores do seu império. E isto, sendo complexo, faz-nos ir buscar as raízes da Europa a outro lado que não onde habitualmente se vão buscar. Tudo isto é um caldo. Nós, leitores, sabemos que este império cresceu e morreu  e, depois deles, muitos outros. A história da Europa é a história dos impérios da Europa: o austro-húngaro, o francês de Francisco I e Napoleão, o britânico. E nesses impérios há muita gente que cometeu os desmandos que Augusto cometeu. Depois, na prática,  Eneias recusa a sua filiação divina, nunca é um herói homérico, é sempre um ser humano, o que já é contraditório. Virgílio escreve o poema fazendo com isto a divinização de Augusto, responde ao desejo dele de ter origem divina, mas com um Eneias que nunca é divino. Quer dizer, faz uma legitimação deslegitimada. Por outro lado, este Eneias, à semelhança de Augusto, tem um percurso que é uma sementeira de cadáveres.
O pio que não era pio...  O epíteto que lhe é aplicado ao longo de todo o poema [pius Aeneas] nem sempre lhe assenta.
Sem dúvida. Basta pensar na cena final, diante de um inimigo prostrado, desguarnecido, impotente. Pior: Turno estende as mãos, suplicante. Tudo aquilo por que lutou entrega de bandeja: a honra, o poder, a noiva e o território. Turno não leva, cede. É o momento em que Eneias hesita, se deixa levar pelas fúrias e mergulha a lança a sangue frio, num sacrifício bárbaro que contraria tudo aquilo que o pai lhe tinha dito [hás-de poupar os que se submetem].
Mas voltemos à dimensão profética da Eneida.
Augusto é de facto o artífice da pax romana, mas é, usando um anacronismo, um maquiavélico, é frio. Desenhou a régua e esquadro o seu percurso de triunfo. Se Augusto tivesse levantado um dedo para o defender, Cícero não teria sido morto. Augusto deixou cair quem tinha de deixar cair, matou quem lhe convinha matar,  defendeu quem lhe convinha defender.  Os nossos impérios na Europa foram feitos de personagens contraditórias como esta: Henrique VIII, Carlos V, Filipe II. Não sou capaz de olhar para este século XXI e para estes imperadores sem deixar de pensar  que vivemos num tempo dos sonhadores de impérios. Nunca o mundo teve tantos candidatos a imperador ao mesmo tempo: um na América, um na China, um na Rússia, no Brasil. Temos até aprendizes de imperador de segunda, imperadores fantoches como nas Filipinas. Outro que acha que é herdeiro de um império, na Turquia. Ao lermos a Eneida, temos de nos confrontar com esta leitura da história do ocidente. O mundo de hoje é herdeiro de uma história feita de impérios que se sucederam e, de repente, parece que os impérios não se querem suceder mas querem coexistir. E esta é a preocupação que eu, com a minha vida de mundo, tenho neste momento. Acho que a Eneida se encaixa na perfeição neste ocidente que nós somos.
A leitura que acabou de fazer pede reflexão, noções de um segundo nível de complexidade. Os nossos dias a tudo parecem pedir legibilidade máxima e alta definição...
Desafio o leitor a não ir com pressa, convido-o a deter-se nas figuras, até porque elas não se repetem e não temos de as procurar, surgem no tempo certo. Dou-lhe um exemplo curioso: Mezêncio, que  é uma figura escabrosa, particularmente  macabra e odiado pelo seu povo, tanto que teve de fugir e juntar-se a Turno [o inimigo de Eneias]. Tinha práticas absolutamente macabras, castigava um criminoso grudando-lhe um cadáver para que a putrefação se contaminasse. Claro que é uma forma de homenagear o morto com a vida, servir um vivo ao morto, mas é uma coisa horrível. Mas o que é curioso é que Eneias mata primeiro o filho dele, Lauso, e, na sua morte, o narrador tem uma verdadeira exclamação épica: “Enquanto houver vida jamais tu vais morrer no meu canto”. Isto dito de um inimigo é uma coisa notável. Mas depois, com a morte de Mezêncio, o narrador perde a isenção, comete o pecado de se mostrar e tem em relação a esta figura explicações de simpatia que são absolutamente inimagináveis num canto desta natureza. Não há duas personagens iguais. Nada na Eneida é feito a papel químico, todas as personagens são individuais.
Que tempo de vida prevê para esta sua tradução?
As obras-primas – e acho que a Eneida é a obra-prima – são eternas, uma tradução é efémera. Tenho consciência de que esta minha tradução, por muito bem que digam dela, tem prazo de validade. Sobre uma tradução, no tempo em que é publicada, passam muitos anos e isso significa que a linguagem se alterou. Não nos damos conta, mas a linguagem altera-se todos os dias, todos os anos, todos os decénios. A palavra 'amor' hoje não significa o que significava há 10 anos, a palavra 'casa' também significa outra coisa. Quando os anos passam sobre as palavras, normalmente acrescentam alguma coisa, às vezes acrescentam mal porque lhe acrescentam usura, e quando acrescentam usura em excesso, estragam a palavra; outras vezes acrescentam bem: trazem-lhes semântica. 
E o que mais pode contribuir para o envelhecimento de uma  tradução?
A transformação do leitor. Eu traduzo para um leitor potencial: um leitor minimamente cultivado no século XXI. Em 2050, não sei como ele vai ser, sei que se vai transformar. Se eu concebo a tradução como um  fato para uma pessoa, obviamente que esse fato está transformado, passou de moda,  não  no sentido banal da expressão, mas no sentido em que já não veste da mesma forma. E há um terceiro elemento: as obras transformam-se com o tempo em função das leituras que delas vão sendo feitas. Nos próximos 30 anos, vai haver muitas pessoas que vão continuar a ler a Eneida, e esta continuação de leitura vai transformá-la. O leitor, ainda que não tenha cultura e não tenha acesso a essas leituras e interpretações, respira o ambiente onde essas transformações aconteceram. O poema está transformado. E isso faz com que a minha tradução já não seja a mesma. A Eneida não foi feita para isso, mas ela transforma-se. Não é uma frustração, é uma consciência da realidade.
in jornal I, com a devida vénia

terça-feira, 14 de julho de 2020

MARK FISHER

Feb 2, 2019 · 5 min read
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Quando Mark Fisher morreu, fez agora dois anos, Franco Berardi escreveu um artigo em memória do amigo e companheiro, que conhecera em Londres. Mark Fisher era na altura uma referência incontornável nos círculos underground e ciberpunk londrinos, graças ao blog k-Punk, cujos textos se encontram reunidos no livro Ghosts of My Life e outros. Mas foi com o livro Capitalist Realism que Fisher se tornou conhecido para além daqueles círculos londrinos. O realismo capitalismo é a ideia de que o capitalismo é o único sistema económico e político possível, e de que não existe alternativa. De que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Trata-se de um regime que promove a ansiedade e a competição permanentes, dominado por pensamentos tóxicos e deprimentes, em que a doença mental e a depressão são endémicas. Em Capitalist Realism Fisher procurou politizar a depressão de que sofria e que o levou ao suicídio. Apesar da consciência aguda dos efeitos nefastos na psique humana provovados pelo capitalismo disfuncional, o livro de Fisher não está tomado pelo pessimismo ou desespero. Pelo contrário, Ficher exorta-nos a imaginar «futuros que não aconteceram mas que poderiam ter acontecido», não no sentido de reativar palavras e conceitos antigos, mas de criar alternativas inimagináveis, que o realismo capitalista nega a todo o momento. Acabar de uma vez com o “there is no alternative” dos anos negros do thatcherismo e que na realidade, como diz Berardi, sempre significou “there is no way out” do capitalismo. O sonho de Ficher de um renascimento da esquerda progressista, capaz de sarar a psique coletiva da depressão neoliberal, talvez não esteja longe de se concretizar. Esta é pelo menos a expetativa de Micah Uetricht que, num recente artigo publicado no Jacobin, diz que uma provável vitória de Corbyn, representaria princípio do fim do realismo capitalista.
No seu artigo, Berardi aponta para uma outra possibilidade: reativar o corpo social e erótico como instrumento de luta política e de libertação do controlo suicidário do capitalismo. Como criar linhas de fuga para fora da exploração que nos deprime e através da qual o capitalismo nos mantém reféns do medo e da psicose? Como reconquistar a felicidade e a alegria, quando o fascismo e suas paixões tristes triunfam em todo o lado, agravando as «feridas de classe», como diz Fisher − a competição, a precariedade, a pobreza, a exclusão? Berardi lembra como ficava intimidado pela timidez e fragilidade de Fisher, sempre que o encontrava. De como era difícil estabelecer com Fisher uma relação física, táctil: «Não me lembro de alguma vez o ter abraçado, diz Berardi, como faço normalmente com os amigos». Esta impossibilidade táctil — de um corpo tocar outro corpo, de um corpo ser afetado por outro corpo e assim criar um sentido comum, lá onde o sentido não existe — é a lembrança mais impressiva que Berardi guarda dos seus encontros com Fisher.
A decisão de Fisher de por fim à vida aconteceu numa altura em que, como hoje, a dimensão social se encontrava totalmente tomada pelo desespero. Não devemos no entanto confundir desespero, com depressão:« o desespero é uma condição do intelecto, não do coração ou do corpo», diz Berardi. O desespero resulta da perca de esperança quanto ao futuro. A depressão, pelo contrário, decorre da perceção da ausência de sentido do mundo. De acordo com Berardi, o núcleo profundo da depressão encontra-se na incapacidade de um corpo tocar o corpo do outro e de ser por ele tocado. E também na impossibilidade de criar, a partir do toque somático, um sentido que não existe em parte alguma, a não ser «neste tocar-se a pele um do outro». O desespero e a depressão não se resolvem na esfera do político, como desejava Fisher. Não se pode dar um sentido político à depressão quando a depressão é ausência de sentido. A depressão impede a realização das possibilidades de libertação inscritas no nosso «ser social e erótico», diz Berardi. O corpo erótico do outro é substituído, na era da internet, pela corpo como signo, mera informação. A empatia é substituída pela frustração violenta de corpos conectados, mas não em contacto, e isto impede a criação «de formas de cumplicidade contra o poder». Não se trata apenas de uma questão de felicidade individual. O corpo é fundamental para militância política e suas lutas. Sem a cumplicidade dos corpos não é possível a solidariedade. E sem a solidariedade não é possível «a rebelião, a autonomia e a emancipação do trabalho salariado». É preciso reconstituir o corpo social e psique humana, a partir de uma militância que recupere o sentido corporal e não apenas corporativo das lutas, e seja capaz de organizar a vida em modos opostos e alternativos ao do capitalismo dominante.
Romper o círculo vicioso neoliberal que transforma, sem cessar, o sofrimento social, em doença mental, e cujos efeitos Mark Fisher sofreu de forma tão dramática, como milhões de outras pessoas. De acordo com a Organização Mundial de Saude, a depressão é hoje uma doença endémica que afeta mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo. Mark Fisher dizia que a doença mental é uma «doença de classe», que afeta aqueles que se encontram apanhados nas rédeas do capitalismo bipolar, oscilando constantemente entre a euforia e a depressão, o crescimento económico e a crise. Entre a valorização do individuo como asset e a sua rejeição como sujeito livre e autónomo.Como sair do realismo capitalista?
Num dos seus artigos, Amador Fernández-Savater diz que o movimento do espanhol 15M foi «um efeito da sensibilidade», um fenómeno de sensibilização coletiva. Uma convergência de afetos, vontades e desejos políticos, capazes de criar um «comum sensível», de se opor à concorrência e à competição, a guerra de todos contra todos, do capitalismo neoliberal. « A política, diz Amador Fernández-Savater, não é sobretudo uma questão de denúncia e de consciencialização, porque não há gota que faça transbordar o copo e o mal pode ser tolerado indefinidamente; é antes uma espécie de mudança de pele por meio da qual nos fazemos sensíveis a isto ou alérgicos àquilo. Não passa por convencer (discurso) ou seduzir (marketing), mas antes pela abertura de espaços, todo o tipo de espaços nos quais fazemos a experiência de outra forma de vida, de outra definição da realidade, de outra visão do mundo. Na luta pela hegemonia, a pele — a tua, a minha, a de todos — é o campo de batalha.»
Constituir espaços de liberdade e autonomia que exprimam a força do “estar juntos” e assim dar um sentido comum à existência. Não será isto o comunismo?
luis manuel rangel
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sábado, 4 de julho de 2020

Bernardine Evaristo

Atenção a este nome!
Venceu o BOOKER PRIZE o ano passado e foi agora escolhida autora do ano British Book Awards. Em setembro, vai ser publicada pela primeira vez em Portugal.