O QUE PODE UM CORPO? IN MEMORIAM DE MARK FISHER
Feb 2, 2019 · 5 min read
Quando Mark Fisher morreu, fez agora dois anos, Franco Berardi escreveu um artigo
em memória do amigo e companheiro, que conhecera em Londres. Mark
Fisher era na altura uma referência incontornável nos círculos
underground e ciberpunk londrinos, graças ao blog k-Punk, cujos textos se encontram reunidos no livro Ghosts of My Life e outros. Mas foi com o livro Capitalist Realism
que Fisher se tornou conhecido para além daqueles círculos londrinos. O
realismo capitalismo é a ideia de que o capitalismo é o único sistema
económico e político possível, e de que não existe alternativa. De que é
mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
Trata-se de um regime que promove a ansiedade e a competição
permanentes, dominado por pensamentos tóxicos e deprimentes, em que a
doença mental e a depressão são endémicas. Em Capitalist Realism Fisher
procurou politizar a depressão de que sofria e que o levou ao suicídio.
Apesar da consciência aguda dos efeitos nefastos na psique humana
provovados pelo capitalismo disfuncional, o livro de Fisher não está
tomado pelo pessimismo ou desespero. Pelo contrário, Ficher exorta-nos a
imaginar «futuros que não aconteceram mas que poderiam ter acontecido»,
não no sentido de reativar palavras e conceitos antigos, mas de criar
alternativas inimagináveis, que o realismo capitalista nega a todo o
momento. Acabar de uma vez com o “there is no alternative” dos anos
negros do thatcherismo e que na realidade, como diz Berardi, sempre
significou “there is no way out” do capitalismo. O sonho de Ficher de um
renascimento da esquerda progressista, capaz de sarar a psique coletiva
da depressão neoliberal, talvez não esteja longe de se concretizar.
Esta é pelo menos a expetativa de Micah Uetricht que, num recente artigo publicado no Jacobin, diz que uma provável vitória de Corbyn, representaria princípio do fim do realismo capitalista.
No
seu artigo, Berardi aponta para uma outra possibilidade: reativar o
corpo social e erótico como instrumento de luta política e de libertação
do controlo suicidário do capitalismo. Como criar linhas de fuga para
fora da exploração que nos deprime e através da qual o capitalismo nos
mantém reféns do medo e da psicose? Como reconquistar a felicidade e a
alegria, quando o fascismo e suas paixões tristes triunfam em todo o
lado, agravando as «feridas de classe», como diz Fisher − a competição, a
precariedade, a pobreza, a exclusão? Berardi lembra como ficava
intimidado pela timidez e fragilidade de Fisher, sempre que o
encontrava. De como era difícil estabelecer com Fisher uma relação
física, táctil: «Não me lembro de alguma vez o ter abraçado, diz
Berardi, como faço normalmente com os amigos». Esta impossibilidade
táctil — de um corpo tocar outro corpo, de um corpo ser afetado por
outro corpo e assim criar um sentido comum, lá onde o sentido não existe
— é a lembrança mais impressiva que Berardi guarda dos seus encontros
com Fisher.
A
decisão de Fisher de por fim à vida aconteceu numa altura em que, como
hoje, a dimensão social se encontrava totalmente tomada pelo desespero.
Não devemos no entanto confundir desespero, com depressão:« o desespero é
uma condição do intelecto, não do coração ou do corpo», diz Berardi. O
desespero resulta da perca de esperança quanto ao futuro. A depressão,
pelo contrário, decorre da perceção da ausência de sentido do mundo. De
acordo com Berardi, o núcleo profundo da depressão encontra-se na
incapacidade de um corpo tocar o corpo do outro e de ser por ele tocado.
E também na impossibilidade de criar, a partir do toque somático, um
sentido que não existe em parte alguma, a não ser «neste tocar-se a pele
um do outro». O desespero e a depressão não se resolvem na esfera do
político, como desejava Fisher. Não se pode dar um sentido político à
depressão quando a depressão é ausência de sentido. A depressão impede a
realização das possibilidades de libertação inscritas no nosso «ser
social e erótico», diz Berardi. O corpo erótico do outro é substituído,
na era da internet, pela corpo como signo, mera informação. A empatia é
substituída pela frustração violenta de corpos conectados, mas não em
contacto, e isto impede a criação «de formas de cumplicidade contra o
poder». Não se trata apenas de uma questão de felicidade individual. O
corpo é fundamental para militância política e suas lutas. Sem a
cumplicidade dos corpos não é possível a solidariedade. E sem a
solidariedade não é possível «a rebelião, a autonomia e a emancipação do
trabalho salariado». É preciso reconstituir o corpo social e psique
humana, a partir de uma militância que recupere o sentido corporal e não
apenas corporativo das lutas, e seja capaz de organizar a vida em modos
opostos e alternativos ao do capitalismo dominante.
Romper
o círculo vicioso neoliberal que transforma, sem cessar, o sofrimento
social, em doença mental, e cujos efeitos Mark Fisher sofreu de forma
tão dramática, como milhões de outras pessoas. De acordo com a
Organização Mundial de Saude, a depressão é hoje uma doença endémica que
afeta mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo. Mark Fisher dizia
que a doença mental é uma «doença de classe», que afeta aqueles que se
encontram apanhados nas rédeas do capitalismo bipolar, oscilando
constantemente entre a euforia e a depressão, o crescimento económico e a
crise. Entre a valorização do individuo como asset e a sua rejeição
como sujeito livre e autónomo.Como sair do realismo capitalista?
Num dos seus artigos, Amador Fernández-Savater diz que o movimento do espanhol 15M foi
«um efeito da sensibilidade», um fenómeno de sensibilização coletiva.
Uma convergência de afetos, vontades e desejos políticos, capazes de
criar um «comum sensível», de se opor à concorrência e à competição, a
guerra de todos contra todos, do capitalismo neoliberal. « A política,
diz Amador Fernández-Savater, não é sobretudo uma questão de denúncia e
de consciencialização, porque não há gota que faça transbordar o copo e o
mal pode ser tolerado indefinidamente; é antes uma espécie de mudança
de pele por meio da qual nos fazemos sensíveis a isto ou alérgicos
àquilo. Não passa por convencer (discurso) ou seduzir (marketing), mas
antes pela abertura de espaços, todo o tipo de espaços nos quais fazemos
a experiência de outra forma de vida, de outra
definição da realidade, de outra visão do mundo. Na luta pela hegemonia,
a pele — a tua, a minha, a de todos — é o campo de batalha.»
Constituir
espaços de liberdade e autonomia que exprimam a força do “estar juntos”
e assim dar um sentido comum à existência. Não será isto o comunismo?
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