sábado, 5 de dezembro de 2020

Sobre a grande pintora ARTEMISIA

 

Jornal Pùblico-ÍPSILON- Vasco Câmara

Devia ter inaugurado em Abril mas só abriu em Outubro por causa da pandemia. Um mês depois voltou a fechar pelas mesmas razões. Reabriu ontem na National Gallery de Londres a retrospectiva de Artemisia Gentileschi (Roma, 1593-Nápoles, c.1656), a primeira grande exposição dedicada à pintora num museu deste prestígio e dimensão. São mais de 30 os quadros expostos, cerca de metade do total da obra de Artemisia, mas é o suficiente para impressionar quem a vir. As críticas não podiam ser mais entusiastas. No Guardian, Jonathan Jones chamou-a uma “revolutionary exhibition” e, sobretudo, “the most thrilling exhibition I have ever experienced at the National Gallery”.

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Qualquer ideia de “delicadeza” dos traços e temas femininos — estereótipo tão repetido pela crítica de arte nos séculos XIX e XX — é subvertida pela intensidade e força de uma Judite a degolar um Holofernes com a ajuda de uma “criada” que, não tendo direito a nome, nada tem de subalterno Eamonn M. McCormack/Getty Images

A exposição começou a ser pensada em 2018 quando a National Gallery comprou o auto-retrato da artista representada como Catarina de Alexandria. Pintado entre 1615 e 1617, foi a primeira obra de Artemisia a fazer parte de uma coleção pública britânica. Mas é apenas a oitava obra de uma mulher artista exposta no principal museu de Trafalgar Square, que conta com 700 pintores. Tamanha disparidade não é proporcional à realidade. Como têm demonstrado muitos estudos e exposições nos últimos anos, são muitas mais — e melhores — as artistas mulheres do passado do que aquilo que a história da arte nos dá a conhecer através das várias dimensões em que se constrói enquanto disciplina — museus, exposições, livros, revistas académicas e de divulgação, ou programas universitários.

Em 2018, outro grande museu de “arte antiga”, o Museu do Prado, iniciou um questionamento sobre o lugar das mulheres artistas nas suas colecções e exposições. Uma das consequências foi ter retirado das reservas o Nascimento de São João Baptista de Artemisia Gentileschi. Mesmo assim, entre as 1700 obras do maior museu da Península Ibérica apenas 7 são de mulheres. Mas o efeito mais visível deste repensar do cânone foi a exposição sobre duas pintoras italianas, antecessoras de Gentileschi, inaugurada em Madrid em Outubro de 2019: Historia de dos pintoras. Sofonisba Anguissola y Lavinia Fontana. O mesmo trabalho de reflexão sobre a disciplina da história da arte resultou na exposição recentemente inaugurada em Madrid, Invitadas. Fragmentos sobre mujeres, ideología y artes plásticas en España (1833-1931).

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VCG Wilson/Corbis via Getty Images

Mesmo assim, e antes desta iniciativa da National Gallery, Artemisia era a artista feminina da “arte antiga” sobre a qual mais se tinha escrito e mais exposições individuais se tinham realizado. Isto poderá dever-se a três razões principais: em primeiro lugar, existe uma quantidade substancial de obras assinadas e documentos escritos, nomeadamente em grandes colecções italianas, apesar da atribuição da sua obra continuar em revisão. Em segundo lugar, a sua história de vida, marcada pela violação que sofreu e o processo judicial que se seguiu, atraiu sobre ela uma curiosidade inusitada e tornou-se indissociável da construção da sua personalidade artística. Por último, ao privilegiar mulheres fortes e temas bíblicos onde personagens masculinas se convertem nas vítimas, mortais, dos seus actos de violência, favoreceu uma leitura em espelho entre vida e obra, bem como a identificação da própria pintora como feminista, vários séculos antes de a palavra existir.

Já foi escrito inúmeras vezes, e também a propósito de Artemisia, que é preciso ter cuidado com as interpretações espelhadas entre vida e obra. Mas como não o fazer no caso da pintora? As Judites e Holofernes são pintadas logo depois da violação e há na iconografia da pintora uma persistência de homens abusadores e predadores e de mulheres que se vingam da violência, ou que pelo menos lhe resistem. Mulheres que matam ou que se matam, mulheres que não aceitam passivamente serem vítimas, mulheres onde Artemisia converge alegoria e auto-retrato, ficção e realidade — como no extraordinário La Pittura [imagem da capa desta edição], na colecção real da Rainha Isabel II de Inglaterra, em que uma enorme pintora (ela própria?) transborda a tela enquanto pinta, como se a vida nunca lhe chegasse. E assina: Arte-mi-sia — “que a arte me seja”.

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Artemisia, um nome de guerra

Tentei fazer um exercício semelhante ao que têm feito muitas instituições culturais em todo o mundo — quando e onde é que ouvi, li ou vi o nome ou a obra de Artemisia Gentileschi? Licenciei-me em Lisboa, em História e História da Arte, entre 1990 e 1994, mas aí nunca ouvi falar de Artemisia, tal como nunca ouvi falar de nenhuma mulher artista. Mais problemática, no entanto, não foi a total ausência de nomes femininos nos cânones que me foram sendo transmitidos na universidade “da Idade Média ao início do século XX”. Mais grave foi eu não ter reparado nisso. A masculinidade do conhecimento está tão naturalizada que dificilmente nos apercebemos dela.

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A sua obra, onde há uma persistência de homens predadores e de mulheres que se vingam da violência, ao privilegiar mulheres fortes e temas bíblicos onde personagens masculinas se convertem nas vítimas dos seus actos de violência, favoreceu a identificação da pintora como feminista, vários séculos antes de a palavra existir Fine Art Images/Heritage Images via Getty Images 

 

Só quando fui estudar para Londres, em 1994, é que fui confrontada com abordagens feministas à história da arte e pela primeira vez ouvi falar de mulheres artistas dos séculos XIX e início do XX. Mas também não foi em Inglaterra que ouvi falar de Artemisia nem a vi em nenhum museu. Em 1638-39 Artemisia passara uma temporada em Londres a visitar o pai, Orazio, então pintor da corte do rei Charles I, grande coleccionador e mecenas. Mas as encomendas que nesse período foram feitas a Artemisia pela nobreza inglesa permaneceram todas em colecções privadas, e inacessíveis ao público. Até agora.

A primeira vez que vi o seu nome impresso foi num livro humorístico publicado em 1998 pelas Guerrilla Girls, o grupo de artistas-ativistas nova-iorquino e anónimo que, com humor, tem denunciado, desde há 35 anos, as desigualdades de género no mundo da arte. Susana e os Velhos — a história bíblica em que dois homens lascivos assediam uma jovem ameaçando-a com a acusação de adultério, caso ela não ceda aos seus avanços — é a primeira pintura assinada por uma Artemisia ainda adolescente e é também a obra que abre este compêndio de história da arte ocidental feito só de artistas mulheres, em jeito de paródia às histórias da arte só com nomes masculinos, ou seja, aquelas por onde estudei.

Em 2000, quando fui viver para Florença, pude ver, pela primeira vez, a obra de Artemisia. Era a única mulher artista exposta nos Uffizi, um dos museus mais visitados do mundo, onde os locais só vão quando os turistas dão algum descanso à cidade, entre Janeiro e Março. Qualquer ideia de “delicadeza” dos traços e temas femininos — estereótipo tão repetido pela crítica de arte sobretudo nos séculos XIX e XX — é logo subvertida pela intensidade e força de uma Judite a degolar um Holofernes com a ajuda de uma “criada” que, não tendo direito a nome, nada tem de subalterno. As duas aliadas para se vingarem do homem assírio que atacara os judeus. Como numa BD seiscentista, a cena seguinte — a cabeça de Holofernes já dentro de um cesto carregado pela mesma dupla, Judite e criada — encontra-se exposta na Galeria Palatina do Palazzo Pitti, a dez minutos a pé, do outro lado da Ponte Vecchio. Poucos anos depois, no Museo di Capodimonte, em Nápoles, voltei a ver uma pintura da artista, a sua primeira versão de Judite e Holofernes pintada antes daquela que está exposta nos Uffizi florentinos. Neste momento, as duas pinturas encontram-se expostas em Londres, lado a lado.

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Só em 2012, já depois de ter dedicado a Artemisia Gentileschi um capítulo do meu livro A Arte sem História. Mulheres e Cultura Artística (XVI-XX) é que tive a oportunidade de ver, no pequeno Musée Maillot em Paris, uma exposição retrospectiva: Artemisia. Gloire, pouvoir et passions d’une femme peintre. O fascínio que já tinha por ela — obra e vida — só aumentaram.

É verdade, é verdade, é verdade”... A vida faz parte da obra

Nasceu em Roma, em finais de 1593, onze anos depois da morte de Santa Teresa d’Ávila (1515-82) e umas décadas antes do nascimento de Josefa de Óbidos (1630-84). Morreu cerca de 1656, com sessenta e poucos anos, na cidade de Nápoles. Como acontece com grande parte das mulheres pintoras até ao século XIX, era filha de pintor e foi no atelier paterno que fez a sua formação. Quando as mulheres não tinham acesso a outros espaços de aprendizagem esta era a única forma de o talento artístico de uma mulher se manifestar. A mãe morreu de parto quando Artemisia contava 12 anos e a adolescência foi passada a pintar (e a tomar conta dos três irmãos mais novos). Ao contrário de pintoras suas antecessoras como Sofonisba Anguissola ou Lavinia Fontana, para quem a pintura fez parte de uma educação sofisticada, Artemisia não aprendeu a ler nem a escrever. O atelier do pai foi a sua escola. Não podendo, devido ao seu género, frequentar as academias de nu onde se aprendia anatomia, ou mesmo sair de casa, terá aprendido a copiar quadros do pai e gravuras, objectos baratos e acessíveis na sua Roma contemporânea. Aos 17 anos, quando o pai já lhe reconhecera o enorme talento e já assinava telas em nome próprio, foi violada por Agostino Tassi (1578-1644), pintor conhecido do pai que este contratara para lhe dar aulas. Sobre este acontecimento de Maio de 1611 nada saberíamos se Orazio Gentileschi não tivesse denunciado o seu colega de profissão (não sem antes ter tentado que este se casasse com a filha para encobrir o sucedido) e não se conhecesse o processo judicial que prova bem a humilhação — e mesmo a tortura — a que uma mulher seiscentista se tinha que sujeitar se, como Artemisia, se atrevesse a denunciar o seu agressor. O processo foi descoberto no século XIX, mas só publicado em 1981 por Eva Menzio, e depois traduzido do italiano para outras línguas. Pode agora ser visto, pela primeira vez, na exposição londrina.

O julgamento teve lugar em 1612, na corte do Papa Paulo V, e, como aconteceu a tantas mulheres ao longo dos séculos, sujeitou a vítima a nova agressão. Artemisia foi submetida a um exame ginecológico descrito publicamente e sofreu a denominada tortura das Sibilas, para provar que não estava a mentir — “è vero, è vero, è vero” — repetiu enquanto as cordas apertavam os seus dedos até aos limites da dor. Tassi foi considerado culpado, mas como o Papa apreciava a sua pintura, a única condenação que sofreu foi a de ter de sair, temporariamente, da cidade. Uma pena que, de facto, nunca chegou a cumprir. As consequências deste evento na vida de Artemisia foram imediatas e profundas. Para tentar mitigar os danos e a vergonha do processo público e possibilitar-lhe um recomeço, o pai julgou oportuno trocar Roma por Florença e lá casar a filha com um pintor, desconhecido, da sua eleição.

A arte, a vida e a carreira: as cartas

Em Florença, Artemisia deixou telas, conhecimentos e cartas. Aprendeu a ler e a escrever, assistiu ao teatro, música, dança e todo o tipo de eventos performativos que os Medici promoviam na sua corte, recebeu encomendas de Cosimo II e foi a primeira mulher a inscrever-se na Accademia delle Arti del Disegno, em 1616. Mas se em Florença se fez pintora profissional, alcançou reconhecimento e prestígio e teve o seu primeiro atelier individual, também foi lá que contingências da vida pessoal a fizeram regressar a Roma anos depois. “Inquietação, inquietação”. O casamento arranjado do qual nasceram cinco filhos, quase todos mortos na primeira infância, cedo se tornou numa entente cordiale, que permitiu a Artemisia consumar a sua paixão pelo amante, um aristocrata florentino, que ajudou o casal materialmente em inúmeras ocasiões. As cartas que escreveu durante este período permitem-nos saber de uma intimidade que só o tempo — a história — pode legitimar. 

No catálogo da National Gallery, Francesco Solinas assina um artigo sobre toda a correspondência escrita por Artemisia, com destaque para as cartas de amor enviadas ao amante, que ele próprio descobriu apenas em 2011, no arquivo privado da família florentina Frescobaldi. São as únicas escritas pela sua própria mão — ou seja, com os erros gramaticais e a letra pueril a revelarem uma alfabetização tardia e frágil. As muitas outras cartas enviadas por Artemisia — a mecenas, príncipes, aristocratas, familiares e amigos — eram ditadas a secretários enquanto pintava, segundo ela própria explicou.

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Susana e os Velhos — a história bíblica em que dois homens lascivos assediam uma jovem ameaçando-a com a acusação de adultério, caso ela não ceda aos seus avanços — é a primeira pintura assinada por uma Artemisia ainda adolescente e é também a obra que abre um livro humorístico publicado em 1998 pelas Guerrilla Girls, o grupo de artistas-ativistas nova-iorquino que, com humor, tem denunciado, desde há 35 anos, as desigualdades de género no mundo da arte

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