Livro provocador da jornalista canadense analisa a realidade da falsidade
no indivíduo “duplicado” nas redes sociais. Como o desejo por fama e
adulação alimenta uma performance que pode, rapidamente, levar à “morte
social”? E como isso alimenta a ultradireita?
O escritor era acusado de ser antissemita, de odiar a si mesmo.
Por outro lado, era enaltecido pelos judeus por ser um dos escritores
norte-americanos mais premiados de sua geração
A imaginação possui uma estrutura desvendável. Já o real é totalmente
indecifrável e imprevisível, até que efetivamente ocorra e torne-se
óbvio para os assinantes do jornal de amanhã e para os engenheiros de
obras prontas.
Você pode ficar maravilhado com uma ficção e pode até ficar encafifado com a linguagem onírica de uma obra nonsense.
Mas o susto que leva com a chamada realidade está muito além da
imaginação. “Nunca vi isso!”, pois é, mas agora você está vendo. A maior
parte dos escritores usa suas memórias para produzir ficção, mas Philip
Roth é conhecido como o autor que, mais do que isso, confunde
deliberadamente autobiografia e ficção.
Eu não escrevo ficção porque, para mim, soa como se eu estivesse
escrevendo um monte de mentiras (embora eu adore ler ficção). Só escrevo
memórias e, mesmo assim, filtro todas elas porque acho que sou
responsável pelas palavras que saem da minha boca e, mais ainda, pelas
palavras cravadas, isto é, gravadas ou grafadas. Evito expor as pessoas
que me cercam, vivas, moribundas ou mortas. Não conto o que sei, sei o
que conto. Alguém poderia dizer, então, que conto meias verdades.
Mesmo me abstendo de expor as pessoas que me cercam, minhas memórias
põem a nu um monte de instituições e pessoas, sem nomeá-las, que se
escondem atrás dessas instituições. Pode parecer contraditório, mas,
nestes casos, estou assumindo a responsabilidade de denunciar condutas
que me parecem perversas, vindas de pessoas e instituições acima de
qualquer suspeita.
Goodbye Columbus
Goodbye Columbus marca a estreia do irreverente Philip Roth
no mercado editorial. O que conhecemos como a revolução sexual dos anos
1960, nos Estados Unidos deu-se nos anos 1950, a ponto de ganhar espaço
literário já no final dessa década. O livro Goodbye Columbus
reúne cinco contos, além da história que dá título ao livro, que narra o
relacionamento sexual entre dois jovens namorados, publicada
originalmente em The Paris Review.
Na abertura do conto Goodbye Columbus, já no primeiro
parágrafo, o rapaz tem uma ereção ao observar uma garota puxar, com os
dedos, a parte de trás do maiô, de forma a colocar as suas carnes no
devido lugar. Tive uma ereção, em inglês, seria I had an erection e, mais vulgarmente, I had a hard-on, pouco apropriado para uma obra literária. Philip Roth usou my blood jumped, meu sangue saltou.
O romance segue com a aproximação afetiva e sexual do casal. O rapaz
pede para a namorada usar um diafragma como contraceptivo. A pílula
anticoncepcional só foi introduzida nos anos 1960, mas o diafragma era
amplamente utilizado pelas mulheres casadas norte-americanas desde os
anos 1920. Nos anos 1950, vários ginecologistas começaram a
disponibilizar o contraceptivo para mulheres solteiras. A garota, a
princípio, recusou-se a providenciar um diafragma, mas depois cedeu.
Eles estavam enamorados.
Por descuido, a garota deixou o diafragma na casa dos pais quando
voltou para a universidade. A mãe, limpando as gavetas da menina,
encontrou o artefato debaixo de uma de suas roupas e foi um escândalo.
Quando o rapaz soube do ocorrido, não conseguiu desculpar a namorada
pelo descuido e o romance terminou. Junto com o romance entre os dois
enamorados, acabou a história também, em total desacordo com o sublime
envolvimento do casal até esse ponto.
Ou seja, a história desanda no final. Mas o que valeu o tremendo
sucesso de crítica e público foi a irreverente narrativa literária de
uma relação amorosa e sexual entre dois jovens de classe média, não
casados, já nos anos 1950.
Goodbye Columbus foi publicado em forma de livro em 1959. Em Epstein,
um dos outros cinco contos que compõem o livro, a filha do protagonista
também se relaciona sexualmente com o noivo. Até o sobrinho, em visita
por uma só noite, aproveita a oportunidade para trazer a filha da
vizinha, que acabara de conhecer, para uma relação sexual na casa do
titio Lou Epstein.
Patrimony
Patrimony, que alguns escritores consideram a obra máxima de
Philip Roth, foi publicado em1991 e narra a sua história com o pai. O
pai, dissolvido em lágrimas, pediu para ele não contar a sua cagada (I beshat myself,
eu me caguei) para os netos, nem para a esposa do Philip, e ele
prontamente aquiesceu, “não vou contar para ninguém”. Mas, depois que o
pai se foi, Philip contou a cagada dele para deus e para o diabo, a
cagada que era a herança que seu pai lhe deixou e deu título a Patrimony, a true story.
“A merda estava por todos os lados, espalhada no tapete do banheiro,
escorrendo pela borda do vaso sanitário e, ao pé do vaso, em uma pilha
no chão. Estava borrifada pelo vidro do box do chuveiro de onde ele
tinha acabado de sair; e as roupas descartadas no corredor estavam
coaguladas com merda. Estava no canto da toalha com a qual ele tinha
começado a se secar… ele tinha conseguido espalhar merda sobre todas as
coisas. Eu vi que estava até nas pontas das cerdas da minha escova de
dentes pendurada no suporte sobre a pia”.
“So that was the patrimony… There was my patrimony… the shit.”
E Philip Roth teve ainda que viver com o peso de seu vaidoso pai, em
sonhos, reclamar de ter sido enterrado nu, envolto em seu sagrado manto
judeu, ele que queria partir para a eternidade vestido em um garboso
terno.
Operation Shylock
Algumas pessoas valorizam histórias reais e romances históricos,
principalmente se estiverem disponíveis em forma de filmes. Há pessoas
que não se interessam minimamente por história, mas que se gabam quando
assistem um romance histórico “real”, achando que estão adentrando a
alta cultura.
Antes de partir para Israel em abril de 2023, para me acompanhar na viagem, uma amiga me presenteou com o Operation Shylock,
que tem como foco a relação do irreverente Philip Roth com o sionismo e
o Estado de Israel. Comecei a ler o livro ainda em São Paulo e achei
instigante. Quando cheguei na altura da metade do livro, eu já estava
completamente paranoico, pensando em desistir dessa minha viagem a
Israel. Empreendi a viagem, mas sem a companhia do Philip, que deixei
para terminar de ler na minha volta a São Paulo, quando redigi Jaffa.
Philip Roth era acusado de ser antissemita, de odiar a si mesmo. Por
outro lado, era enaltecido pelos judeus por ser um dos escritores
norte-americanos mais premiados de sua geração. Em Operation Shylock,
publicado em 1993, em um jogo de espelhos, há três Philip Roth – o
autor, o protagonista (que acumula a função de narrador) e o duplo do
protagonista (e o protagonista, no meio da obra, também assume o papel
do duplo, que então poderia até ser considerado um quarto Philip).
No romance, o protagonista, embora íntegro, depois de ser sequestrado
pelo Mossad, decide colaborar com o serviço secreto, para poder, como
queria acreditar, denunciar as formas de atuação do Estado de Israel. O
cínico agente sênior, que convence Philip Roth a colaborar com o Mossad,
afirma que “O que nós fizemos com os palestinos é perverso. Nós os
tiramos de suas casas e os oprimimos. Nós os expulsamos, espancamos,
torturamos e assassinamos. O Estado Judeu, desde que nasceu, se dedicou a
eliminar a presença palestina na Palestina histórica e a desapropriar a
terra de um povo nativo. Os palestinos foram expulsos, dispersos e
dominados pelos judeus. Para criar um Estado Judeu, nós traímos nossa
história – fizemos com os palestinos o que os cristãos fizeram conosco:
nós os transformamos sistematicamente no desprezado e subjugado Outro,
privando-os, desta forma, de sua condição humana. Independentemente do
terrorismo ou dos terroristas, ou da estupidez política de Yasser
Arafat, a verdade é esta: como povo, os palestinos são totalmente
inocentes, e como povo os judeus são totalmente culpados”.
A estrutura da obra é perfeita, o autor suprime o último capítulo do
romance porque foi rejeitado pelo Mossad, o capítulo que denunciava as
formas de atuação do Estado de Israel, que havia sido a razão que tinha
levado o protagonista e narrador a colaborar com o serviço secreto
israelense, em uma ação que expôs e provocou a morte de seu amigo
palestino de infância. O Mossad ameaçou arruinar a reputação de Philip
Roth enquanto escritor e fazê-lo em pedaços, em uma operação de
inteligência sem limites, acionada por uma coordenada, mas dissipada
campanha articulando boatos, piadinhas infames, insultos, calúnias,
denúncias de deficiências morais, superficialidade, vulgaridade,
covardia, avareza, indecência, falsidade, traição, difamação…
Intimidado, Philip, o protagonista, suprime o último capítulo, mas,
em nota ao leitor, o autor afirma que “Qualquer semelhança com fatos,
locais e pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência. Esta
confissão é falsa”.
*Samuel Kilsztajné professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Jaffa amz.run/7C8V.
in blogue A Viagem Dos Argonautas
CARLOS PATRÃO – o filme “AINDA ESTOU AQUI”, de WALTER SALLES
Fui ontem ao Cinema para ver o aclamado e premiado Ainda Estou Aqui, do laureado Walter Salles, que já nos tinha brindado com Central do Brasil e Diários de Motocicleta.
Grande filme, com uma pungente actuação de Fernanda Torres, no papel de
uma viúva que procura saber do paradeiro e da verdade do que sucedeu ao
marido (um antigo deputado do Partido Trabalhista Brasileiro) raptado
nas suas barbas, em casa, em 1971, por um comando militar. Uma vida de
luta que só alcança alguma justiça em 1996, já depois da Ditadura
militar, quando finalmente o Estado brasileiro emite a certidão de
óbito.
Para além da teia dramática e das
brilhantes actuações o filme prima por uma fotografia com efeito retro
que nos transporta magicamente para os anos 70 do século XX, uma época
mítica, de grande esperança, esmagada por ditaduras e/ou pelo
neo-liberalismo, ainda hoje vigente, em alguns casos como no Chile, por
ambos.
A ditadura brasileira, uma das mais
longas e repressivas da América do Sul, durou mais de 20 anos (64-85),
em Portugal é secundarizada, talvez pelos laços que nos ligam ao Brasil,
talvez porque tinha uma junta militar em que os ditadores se revezavam e
é mais difícil personificar, ao contrário do Paraguai, Chile e
Argentina, em que as associamos os caudilhos, Stroessner, Pinochet e
Videla. Mas matou e torturou tanto ou mais que as outras, tendo
funcionado como uma referência em toda a América latina, aluna aplicada
da sinistra Escola das Américas, que os EUA mantiveram em funcionamento
entre 46-84 no Panamá (sempre o Panamá) para exportarem a contra
revolução.
O filme retrata bem os chamados anos de
chumbo no Brasil, com os seus raptos, tortura, assassinatos e
desaparecimentos, que vão de 1969 a 1974 e coincidem com a presidência
do general Emílio Médici.
Carlos Patrão
PS:
Apesar da tentativa de boicote ao
filme pela extrema direita Bolsonarista no Brasil, o mesmo está a ter um
enorme sucesso, quer no Brasil, quer na Europa, e em Portugal. Ontem
para o ver fiz uma primeira tentativa no Nimas, cuja sessão estava
esgotada, e tive que me dirigir ao City Alvalade a onde lá consegui
arranjar dois bilhetes no canto da sala.
Por Franklin Cunha* “Quem não conhece a história
corre o risco de vê-la repetir-se”. George Santayana O historiador belga
Henry Pirene, preso durante dois anos pelos alemães durante a primeira
guerra mundial, escreveu de memória uma História Social e Econômica da
Europa Medieval. Nas condições miseráveis da prisão, aproveitava os
intervalos da escritura do livro […]
Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
O historiador belga Henry Pirene, preso durante dois anos pelos
alemães durante a primeira guerra mundial, escreveu de memória uma
História Social e Econômica da Europa Medieval.
Nas condições miseráveis da prisão, aproveitava os intervalos da
escritura do livro para ministrar aulas de história aos seus
companheiros de desgraça, muitos deles operários e camponeses
analfabetos. Ele e o holandês Johan Huizingha, com seu livro “O Outono
da Idade Média”, foram os melhores e mais fidedignos historiadores
daquele período obscuro de nossa história.
Certamente, ao dedicar tantos esforços e sacrifícios para nos contar
os fatos corretos e verdadeiros da chamada Idade das Trevas, pensavam
como o filósofo George Santayana, citado na epígrafe deste texto.
O papel importante da intelectualidade sempre foi, em todo o mundo, o
de alertar as diversas classes sociais, escassamente informadas ou
deformadas pelos historiadores oficiais e pelos meios de comunicação,
dos perigos dos regimes não democráticos e de denunciá-los quando estes
assaltam o poder.
Relembrando o que aconteceu em nossa vizinha Argentina durante a
ditadura militar, entre os anos de 1973 a 1983, assinalamos os trágicos
fatos que lá sucederam porque nunca é demais descrevê-los. O General
Jorge Rafael Videla, falecido na prisão em 2013, instaurou, por um golpe
de estado, uma das ditaduras mais atrozes da história argentina e das
Américas. Em seu governo, foram desaparecidas cerca de 30.000 pessoas
entre as quais se encontravam operários, estudantes, jornalistas e
intelectuais opositores do governo. E muitas crianças arrancadas dos
ventres de suas mães e entregues a famílias de militares e policiais.
Foram cometidas, em nome do Estado, diabólicas atrocidades como os voos
da morte, os assassinatos seletivos, os sequestros, torturas e
assassinatos de intelectuais, jornalistas, operários e estudantes pelas
forças de segurança.
De uma dessas atrocidades, por exemplo, poucos se lembram.
No dia 4 de maio de 1976, o jornalista portenho Haroldo Conti sua
esposa e filhos foram sequestrados, agredidos em frente a sua casa por
um esquadrão do serviço secreto do exército, e Conti, empurrado para
dentro de um camburão, nunca mais foi visto.
Duas semanas depois deste sequestro, o então presidente Videla
organizou um almoço na Casa Rosada para o qual foram convidadas várias
personalidades de destaque na cultura argentina: Jorge Luis Borges,
Ernesto Sabato, o famoso cardiologista René Favaloro, Horacio Ratti,
presidente de la Sociedade Argentina de Escritores, Bioy Casares e o
padre Leonardo Castellani que conhecia Conti de sua época no seminário e
que intercedeu por ele. Por sua vez, Ratti entregou ao ditador uma
lista de onze escritores desaparecidos, inclusive o jornalista Rodolfo
Walsh que nesta altura já tinha sido assassinado a tiros em plena rua
por um comando da polícia. Finalmente, em 1980, Videla confirmou para
jornalistas espanhóis que Conti e Walsh estavam mortos, sem informar os
locais e as circunstâncias. Como os restos mortais nunca foram
encontrados, seus nomes continuam integrando a longa lista dos
desaparecidos pela ditadura.
Videla, homem alheio à Cultura, achou politicamente conveniente se
aliar com alguns representantes de prestígio das artes, das ciências e
das letras. Ernesto Sabato que havia feito declarações depreciativas à
democracia na ocasião do golpe do General Ongania, não deixou de elogiar
Videla na revista alemã GEO (1977). Foi um entusiástico propagandista
da preparação política do mundial de futebol de 1978, da guerra das
Malvinas e aconselhava aos exilados políticos a não colaborar com as
campanhas anti-argentinas, que depreciavam o governo do momento.
A enorme predisposição ao esquecimento da sociedade civil e a
hipocrisia da maioria dos dirigentes políticos possibilitaram que, em
1984, Sabato se apresentasse como um herói cívico e fosse nomeado pele
Presidente Alfonsin para a presidência da CONADEP (Comisión Nacional
sobre la Desaparición de Personas).
Tanto Borges quanto Sabato, ícones da literatura argentina, foram
acusados de ser complacentes com os crimes da ditadura. Videla, em sua
aposentadoria, publicou o livro Disposición Final, no qual revela que no
almoço já citado Borges o saudou dizendo “Ave, Cesar , vencedor dos
peronistas”.
Mais grave foram as declarações que os dois grandes escritores
fizeram aos jornalistas depois do almoço que durou duas horas. Sabato
disse que “O general me causou uma excelente impressão. Trata-se de um
homem culto, modesto e inteligente. Impressionou-me a amplitude de
critérios e a cultura do presidente”. E Borges, tão breve quanto
incisivo, não deixou por menos: “Ele é um perfeito cavalheiro “.
O encontro de Videla com Borges e Sabato está documentado com fotos
numa edição do suplemento Ñ do jornal Clarín. De qualquer forma, vários
fatos posteriores demonstraram a proximidade amistosa que ambos
escritores mantiveram com a ditadura militar. Nunca foram perseguidos, e
até pelo contrário, foram mostrados como exemplo da cultura argentina.
Sabato, em 1978, até justificou o regime ao dizer: “A imensa maioria dos
argentinos rogava intensamente que as Forças Armadas tomassem o poder”.
E inclusive afirmou que a situação do país estava melhorando.
Quanto a Borges, além de nunca ter denunciado as torturas e
desaparecimentos, em 1976 foi ao Chile, onde recebeu o diploma de Doutor
Honoris Causa da Universidade e depois foi recepcionado por Pinochet.
Segundo o filósofo Juan Pablo Feinmann, o encontro de ambos não se
limitou a um simples ato protocolar. Na ocasião, Borges discursou e
disse “Agradeço ao Chile haver mostrado à Argentina como se luta contra o
comunismo, porque elegeu a branca espada antes do que a furtiva
dinamite”.( In Filosofia política del poder mediático – Ed. Planeta
2013)
Com o passar dos anos, Borges e Sabato foram se afastando e até
começaram a criticar a ditadura. Borges apoiou o movimento das Mães da
Praça de Maio e em 1980 publicou no Clarín uma “ Solicitação pelos
desaparecidos” e se manifestou contra a aventura das Malvinas. Sabato,
convidado pelo presidente Alfonsin, foi nomeado para a já referida
“Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) e no ano seguinte
entregou à imprensa documentos que provaram ter o regime militar
praticado 8.960 desaparições e criado 340 centros de detenção e tortura.
Alguns admiradores de Borges e Sabato ( entre eles o autor deste
texto), não gostam que se lembre desses desagradáveis acontecimentos
ocorridos durante a ditadura genocida na Argentina. Mesmo assim, devemos
lembra-los para mostrar as vicissitudes que passam os escritores quando
se intrometem em política apenas informados pela mídia mercenária e
pelos preconceitos e desinformações da classe média da qual fazem parte.
O capítulo sobre o apoio, participação e a colaboração de
intelectuais brasileiros na ditadura nos imposta em 1964, merece a pena
de um competente e lúcido historiador que os temos a basto.
.oOo.
Franklin Cunha é médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
O historiador belga Henry Pirene, preso durante dois anos pelos
alemães durante a primeira guerra mundial, escreveu de memória uma
História Social e Econômica da Europa Medieval.
Nas condições miseráveis da prisão, aproveitava os intervalos da
escritura do livro para ministrar aulas de história aos seus
companheiros de desgraça, muitos deles operários e camponeses
analfabetos. Ele e o holandês Johan Huizingha, com seu livro “O Outono
da Idade Média”, foram os melhores e mais fidedignos historiadores
daquele período obscuro de nossa história.
Certamente, ao dedicar tantos esforços e sacrifícios para nos contar
os fatos corretos e verdadeiros da chamada Idade das Trevas, pensavam
como o filósofo George Santayana, citado na epígrafe deste texto.
O papel importante da intelectualidade sempre foi, em todo o mundo, o
de alertar as diversas classes sociais, escassamente informadas ou
deformadas pelos historiadores oficiais e pelos meios de comunicação,
dos perigos dos regimes não democráticos e de denunciá-los quando estes
assaltam o poder.
Relembrando o que aconteceu em nossa vizinha Argentina durante a
ditadura militar, entre os anos de 1973 a 1983, assinalamos os trágicos
fatos que lá sucederam porque nunca é demais descrevê-los. O General
Jorge Rafael Videla, falecido na prisão em 2013, instaurou, por um golpe
de estado, uma das ditaduras mais atrozes da história argentina e das
Américas. Em seu governo, foram desaparecidas cerca de 30.000 pessoas
entre as quais se encontravam operários, estudantes, jornalistas e
intelectuais opositores do governo. E muitas crianças arrancadas dos
ventres de suas mães e entregues a famílias de militares e policiais.
Foram cometidas, em nome do Estado, diabólicas atrocidades como os voos
da morte, os assassinatos seletivos, os sequestros, torturas e
assassinatos de intelectuais, jornalistas, operários e estudantes pelas
forças de segurança.
De uma dessas atrocidades, por exemplo, poucos se lembram.
No dia 4 de maio de 1976, o jornalista portenho Haroldo Conti sua
esposa e filhos foram sequestrados, agredidos em frente a sua casa por
um esquadrão do serviço secreto do exército, e Conti, empurrado para
dentro de um camburão, nunca mais foi visto.
Duas semanas depois deste sequestro, o então presidente Videla
organizou um almoço na Casa Rosada para o qual foram convidadas várias
personalidades de destaque na cultura argentina: Jorge Luis Borges,
Ernesto Sabato, o famoso cardiologista René Favaloro, Horacio Ratti,
presidente de la Sociedade Argentina de Escritores, Bioy Casares e o
padre Leonardo Castellani que conhecia Conti de sua época no seminário e
que intercedeu por ele. Por sua vez, Ratti entregou ao ditador uma
lista de onze escritores desaparecidos, inclusive o jornalista Rodolfo
Walsh que nesta altura já tinha sido assassinado a tiros em plena rua
por um comando da polícia. Finalmente, em 1980, Videla confirmou para
jornalistas espanhóis que Conti e Walsh estavam mortos, sem informar os
locais e as circunstâncias. Como os restos mortais nunca foram
encontrados, seus nomes continuam integrando a longa lista dos
desaparecidos pela ditadura.
Videla, homem alheio à Cultura, achou politicamente conveniente se
aliar com alguns representantes de prestígio das artes, das ciências e
das letras. Ernesto Sabato que havia feito declarações depreciativas à
democracia na ocasião do golpe do General Ongania, não deixou de elogiar
Videla na revista alemã GEO (1977). Foi um entusiástico propagandista
da preparação política do mundial de futebol de 1978, da guerra das
Malvinas e aconselhava aos exilados políticos a não colaborar com as
campanhas anti-argentinas, que depreciavam o governo do momento.
A enorme predisposição ao esquecimento da sociedade civil e a
hipocrisia da maioria dos dirigentes políticos possibilitaram que, em
1984, Sabato se apresentasse como um herói cívico e fosse nomeado pele
Presidente Alfonsin para a presidência da CONADEP (Comisión Nacional
sobre la Desaparición de Personas).
Tanto Borges quanto Sabato, ícones da literatura argentina, foram
acusados de ser complacentes com os crimes da ditadura. Videla, em sua
aposentadoria, publicou o livro Disposición Final, no qual revela que no
almoço já citado Borges o saudou dizendo “Ave, Cesar , vencedor dos
peronistas”.
Mais grave foram as declarações que os dois grandes escritores
fizeram aos jornalistas depois do almoço que durou duas horas. Sabato
disse que “O general me causou uma excelente impressão. Trata-se de um
homem culto, modesto e inteligente. Impressionou-me a amplitude de
critérios e a cultura do presidente”. E Borges, tão breve quanto
incisivo, não deixou por menos: “Ele é um perfeito cavalheiro “.
O encontro de Videla com Borges e Sabato está documentado com fotos
numa edição do suplemento Ñ do jornal Clarín. De qualquer forma, vários
fatos posteriores demonstraram a proximidade amistosa que ambos
escritores mantiveram com a ditadura militar. Nunca foram perseguidos, e
até pelo contrário, foram mostrados como exemplo da cultura argentina.
Sabato, em 1978, até justificou o regime ao dizer: “A imensa maioria dos
argentinos rogava intensamente que as Forças Armadas tomassem o poder”.
E inclusive afirmou que a situação do país estava melhorando.
Quanto a Borges, além de nunca ter denunciado as torturas e
desaparecimentos, em 1976 foi ao Chile, onde recebeu o diploma de Doutor
Honoris Causa da Universidade e depois foi recepcionado por Pinochet.
Segundo o filósofo Juan Pablo Feinmann, o encontro de ambos não se
limitou a um simples ato protocolar. Na ocasião, Borges discursou e
disse “Agradeço ao Chile haver mostrado à Argentina como se luta contra o
comunismo, porque elegeu a branca espada antes do que a furtiva
dinamite”.( In Filosofia política del poder mediático – Ed. Planeta
2013)
Com o passar dos anos, Borges e Sabato foram se afastando e até
começaram a criticar a ditadura. Borges apoiou o movimento das Mães da
Praça de Maio e em 1980 publicou no Clarín uma “ Solicitação pelos
desaparecidos” e se manifestou contra a aventura das Malvinas. Sabato,
convidado pelo presidente Alfonsin, foi nomeado para a já referida
“Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) e no ano seguinte
entregou à imprensa documentos que provaram ter o regime militar
praticado 8.960 desaparições e criado 340 centros de detenção e tortura.
Alguns admiradores de Borges e Sabato ( entre eles o autor deste
texto), não gostam que se lembre desses desagradáveis acontecimentos
ocorridos durante a ditadura genocida na Argentina. Mesmo assim, devemos
lembra-los para mostrar as vicissitudes que passam os escritores quando
se intrometem em política apenas informados pela mídia mercenária e
pelos preconceitos e desinformações da classe média da qual fazem parte.
O capítulo sobre o apoio, participação e a colaboração de
intelectuais brasileiros na ditadura nos imposta em 1964, merece a pena
de um competente e lúcido historiador que os temos a basto.
.oOo.
Franklin Cunha é médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
Considerações sobre o livro de Carlos Estevam: Freud, Vida e Obra
No livro, o autor, Carlos Estevam, explica os principais fundamentos
da psicanálise de forma simples e acessível para o grande público. O
livro é fácil de ler e entender apesar da complexidade das ideias de
Sigmund Freud.
Trata-se de um livro educativo que tomou como base orientativa o
clássico “O método psicanalítico e a doutrina de Freud” de Roland
Dabiez. Segundo o autor, seu livro pode ser considerado como “uma
espécie de versão popular do ensaio de Dabiez.”
O livro é dividido em duas partes: as ideias e a vida de Freud.
As ideias de Freud
Cabe a pergunta: o que é a alma humana?
Para Freud, é melhor usar a palavra psiquismo em vez de alma. Isso
porque quando falamos de alma logo vem a ideia de uma entidade separada
de nosso corpo, que continua vivendo após a morte e vai para o céu ou
para o inferno. Como quem deve explicar as coisas da alma é a religião,
Freud estudou o funcionamento do psiquismo, ou seja, o que acontece
conosco em vida.
O psiquismo engloba todas as nossas sensações, emoções, pensamentos,
juízos, vontades, desejos e as situações de conflito entre elas. Além
disso, não devem ser esquecidas a memória e a imaginação.
O psiquismo é o conjunto de processos mentais ou psíquicos, inclusive
os conflitos entre vontades e desejos. É diferente do corpo (processos
somáticos) e da alma (processos metafísicos).
É consciente todo processo psíquico de que tomamos conhecimento. Diz o
autor “[…] a consciência é como se fosse uma pequena lanterna num
quarto escuro: o objeto que ela está iluminando torna-se consciente,
pode ser visto por mim e os outros objetos que ela não está iluminando
tornam-se pré-conscientes, ficam mergulhados na obscuridade e não podem
ser vistos, naquele momento. O pré-consciente está constituído, assim,
pelos processos psíquicos que momentaneamente desapareceram do campo
iluminado pela consciência.
Contudo, os processos pré-conscientes
podem voltar a ser conscientes outra vez. Basta a pessoa querer que isso
aconteça. Basta virar a lanterna em direção à ideia que queremos e ela
se tornará consciente. Ao contrário, se ela quiser mandar a ideia
embora, é só fazê-lo. Assim, segundo Estevam, “o pré-consciente está
formado pelos processos psíquicos que podemos tornar conscientes
espontânea e voluntariamente, sempre que tivermos necessidade”.
Muito diferentes são os processos psíquicos inconscientes, que não
podem ser evocados voluntariamente. Para que se tornem conscientes, são
requeridas técnicas especiais, como a hipnose, a sugestão ou a
psicanálise.
Até aqui já temos noção do que quer dizer consciente, pré-consciente e
inconsciente. O leitor já pode, assim, entender o diagrama abaixo:
O ego, quer dizer eu. Isso é fácil de entender. E, como indicado pelo
diagrama, o ego está formado pelos processos psíquicos conscientes e
pré-conscientes. As crianças, no entanto, não formaram ainda suas
personalidades e, por isso, não possuem um ego de adulto. Isso nos
remete à pergunta: de onde surge o ego?
Segundo o autor, “o ego surge daquilo que, no diagrama, está situado
abaixo dele, ou seja, o infra-ego e o super-ego. Esses dois, combinados,
dão como resultado o ego.”
Vamos, então, buscar saber o significado de infra-ego e super-ego.
O infra-ego (ou “primitivo” ou ainda “isso”) são os
impulsos poderosos que não conseguimos controlar e que vêm do fundo do
nosso psiquismo. Eles são os processos psíquicos que constituem o
infra-ego, que é amoral.
O super-ego é a sociedade, é a moral, é a educação. É formado pela
moralidade e hábitos que a sociedade nos inculca desde que nascemos, no
nosso processo de educação e socialização. Ele está dentro de nós, mas
vem de fora.
Como as crianças ainda estão em processo de socialização, elas agem
por impulsos. O super-ego delas, ainda em formação, não as reprime
totalmente. Fica claro, então, que a sociedade faz com que cada um de
nós adquiramos um super-ego, por meio da educação recebida em casa, na
escola, no trabalho e na vida em geral. Vamos adquirindo consciência
moral, formando nosso super-ego que, segundo Estevam, “é a sociedade
dentro de nós.” Esse processo de formação do super-ego Freud batizou de
introjeção. Significa injetar, ou seja, tomar algo que está fora e
inculcá-lo dentro de nós. A introjeção internaliza o exterior, as
convicções morais que estão no nosso meio.
Os instintos do infra-ego desconhecem convenções sociais. Pauta-se
pela satisfação de necessidades orgânicas e psicológicas. O único
processo psíquico capaz de conter o infra-ego é o super-ego, que as
crianças ainda não introjetaram por completo.
Voltando ao ego, ele é o resultado de uma luta travada a cada minuto
dentro de nós entre o infra-ego (instinto) e super-ego (consciência
moral). Com o desenvolvimento permanente dessa luta, vai se formando o
ego, que nada mais é do que o nosso infra-ego disciplinado pelo
super-ego.
Recalque e sublimação
Olhando-se de novo para o diagrama, que retrata os processos
psíquicos, permitamo-nos compreendê-lo de forma dinâmica, como se fosse
um filme. As tendências psíquicas se enfrentam umas às outras, cada qual
enfrentando suas antagonistas e buscando sempre a vitória. Era dessa
forma que Freud via os processos psíquicos.
Diz o autor: “Nossos impulsos instintivos são grosseiros e chocantes.
Os ímpetos de agressividade, os sentimentos de ódio contra tudo o que
se opõe aos nossos desejos, os impulsos sexuais violentos e brutais
transformam o homem num ser animalesco e intolerável. A necessidade de
viver em sociedade convivendo com outros homens nos obriga a adotar uma
das duas seguintes atitudes: ou bloqueamos e impedimos a exteriorização
dos impulsos vindos do infra-ego ou então adotamos uma segunda
alternativa e transformamos esses instintos baixos e animalescos em
ações boas e moralmente elevadas, em ações compatíveis com as
necessidades da convivência social. A primeira solução chama-se ato de
recalcar, recalcamento ou, simplesmente, recalque. A segunda solução
chama-se o ato de sublimar ou a sublimação. Recalque e sublimação são
assim os dois processos psíquicos de que lançamos mão para dominar os
instintos egoístas do infra-ego”.
Qual o mecanismo do recalque? O super-ego se encarrega desse
trabalho. Ele faz a seleção e a repressão dos nossos impulsos
instintivos. O super-ego atua como a fronteira que existe em nosso
psiquismo. É como se fosse uma autoridade de fronteira, entre dois
países, que se chama censura. Recalcar significa obrigar os elementos
indesejáveis a voltarem para o lugar de onde vieram. A censura recalca
os impulsos inconscientes que querem se tornar conscientes, mas que por
serem condenáveis do ponto de vista das convicções do super-ego, são
obrigados a continuar onde estavam e, portanto, não conseguem tornar-se
conscientes. É o que é demonstrado na parte esquerda do diagrama.
Vendo o diagrama como um filme, entenderemos o recalque como uma
força constituída por um grupo de ideias e sentimentos que se opõe a
outro grupo de ideias e sentimentos que são recalcados por serem
contrários às convicções da consciência moral.
Os impulsos recalcados muitas e muitas vezes formam complexos.
Complexo é conjunto. Nesse caso, é o conjunto formado por aqueles
desejos recalcados e pelas emoções dolorosas sentidas todas as vezes que
os impulsos são recalcados. Os complexos atrapalham a plena expressão
da personalidade. Derivam para sentimentos de inferioridade, crises de
ansiedade, obsessões e estados angustiantes.
Na parte central do diagrama há uma seta que consegue sair do
inconsciente e chegar no seu destino final. Esse é um exemplo de um
impulso que não foi bloqueado pelo super-ego. Ele não foi censurado e
poderá se manifestar na vida consciente.
Agora falta explicar a seta que está no lado direito do diagrama.
Este é um impulso que tenta passar pelo super-ego, é bloqueado, insiste
de novo, e consegue passar. Esses são os impulsos sublimados. A
tentativa de burla do super-ego é feita todos os dias por nossos
impulsos, que fingem ser o que não são e muitas vezes são bem-sucedidos,
logrando se manifestar na vida consciente do ego, sem que o ego ou
outras pessoas consigam descobrir sua verdadeira identidade. Isso é a
sublimação.
Para Freud, a sublimação é positiva. A maior parte das grandes vidas e
dos grandes feitos ocorridos na história da humanidade só foram
possíveis graças à sublimação.
Diz o autor: “Os grandes artistas, os grandes cientistas, os grandes
líderes políticos, todas as personalidades que conseguiriam se erguer
acima da média e se tornaram figuras de projeção graças ao talento e à
tenacidade que revelaram na realização dos projetos mais extraordinários
e audaciosos, todos os grande homens foram, com frequência, homens
cujos instintos não se manifestaram como eram, não procuraram apenas se
satisfaze de forma direta e imediata e, em vez disso, sublimaram-se,
deixaram de ser instintos egoístas e sequiosos, transformaram-se em
forças positivas de grande valor social”.
Para entender a sublimação Freud diz que uma tendência humana se
apresenta muito intensificada quando incorporou a si, a fim de se
fortificar, forças sexuais instintivas, da mesma forma que um pequeno
riacho pode ser engrossado extraordinariamente pelas águas de um rio
caudaloso. Pode assim acontecer que um homem se dedique ao seu trabalho
com o mesmo entusiasmo apaixonado com que outras pessoas se dedicam aos
seus amores, pois o trabalho pode representar para ele o que o amor
representa para os outros, ou seja, um modo de dar expansão ao seu
instinto sexual. A sublimação é essa capacidade que tem o instinto
sexual de renunciar ao seu objetivo imediato em troca de outros
objetivos não sexuais e mais apreciados pela sociedade.
A vida de todos os dias
No capítulo 1 foi apresentada uma panorâmica das ideias de Freud.
Neste, vamos seguir um roteiro mais detalhado, abordando os atos da vida
cotidiana, os sonhos, o sexo, as neuroses e as psicoses.
Em A psicopatologia da vida cotidiana Freud examina o
cotidiano das pessoas. Pequenos erros, esquecimentos, falhas de
comportamento, atos falhos. Isso tudo passa desapercebido, como se tais
equívocos não tivessem importância. Para Freud esses pequenos
acontecimentos têm sempre razão de ser. Não são fatos insignificantes,
mas sim, significantes pois sempre estão querendo dizer algo sobre nós. É
o nosso inconsciente se manifestando. Tendências afetivas ocultas,
fatos produzidos por causas inconscientes. Freud desenvolveu a técnica
associativa para detectar as causas inconscientes de tais
acontecimentos.
O autor cita o exemplo de Rousseau que passava sempre pelo mesmo lado
de uma rua, ainda que isso lhe custasse mais tempo. Depois de muito
analisar Rousseau descobriu a razão: era o nojo que ele sentia por um
mendigo que fazia ponto na calçada oposta, que ele sempre evitou.
Rousseau não podia admitir para si mesmo que tinha nojo de um ser humano
e, então, seu psiquismo escondia dele essa fraqueza. Sentia nojo
inconscientemente. O fato exterior era um sinal, um efeito do processo
psíquico interior, mas Rousseau só depois de algum tempo tomou
consciência da relação entre os dois.
Um menino de nove anos que sofria de neurastenia passou suas férias
matando e comendo gafanhotos. Ele contou isso para o seu médico. Este,
usando a técnica associativa lançou mão do ping-pong de palavras.
Escolheu a palavra gafanhoto. A associação do menino foi com verde. E o
que lhe lembrava o verde? Um professor por quem sentia profunda aversão.
Outra associação que ele fazia era que comer gafanhotos lhe fazia
recordar de uma passagem do evangelho que conta como São João Batista
vivia no deserto alimentando-se de gafanhotos. E João Batista era
idolatrado pelo menino como uma pessoa muito forte, quase um gigante.
Ideia de força e poder. O menino estava, decerto, bancando o mocinho
que, para ele, era São João Batista.
Mas por que o menino queria ser forte e poderoso, precisamente em
suas férias? O menino era tímido e medroso e só se sentia bem junto com
sua mãe. O pai lhe inspirava pavor, assim como o professor “verde”.
Durante as férias o menino se livraria de ambos e teria sua mãe só para
si. Contudo, o pai ficou doente e monopolizou a atenção da mãe
frustrando a expectativa edipiana do menino de tê-la com exclusividade.
Assim, ele inventa uma fantasia compensadora: matar os inimigos
simbolizados pelo gafanhoto e comê-los para se sentir mais forte e
poderoso, como João Batista.
Segundo o autor, Freud “julgava ser possível conhecer o que as
pessoas ocultam sem lançar mão da hipnose, apenas observando o que elas
dizem ou deixam entrever”.
Nas palavras de Freud, “quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir,
se convence que os mortais não podem ocultar nenhum segredo. Aquela que
não fala com os lábios, fala com a ponta dos dedos; nós nos traímos por
todos os poros. Por isso é perfeitamente realizável a tarefa de tornar
conscientes as partes mais íntimas do nosso psiquismo”.
Um amigo de um médico lhe pergunta o nome de uma loja que vendia
determinado produto. O médico embora conhecesse bem a loja não conseguiu
se lembrar do nome, apesar de esforçar-se para fazê-lo. Sempre que isso
acontece dizemos que estamos com a memória fraca. Para Freud, em alguns
casos, a causa do esquecimento é a existência de uma luta entre forças
psíquicas opostas. Uma força procura recordar e a outra esquecer. O
médico, dias depois, passando pela loja, viu que seu nome era lago.
Usando o método de associação de ideias fixou sua atenção na palavra.
Veio a lembrança de um velho amigo chamado Dr. Lago, que era o
artilheiro de uma equipe de futebol.
Na sequência, veio outra lembrança: o lago indiano no qual pescava
quando era criança. E assim sucessivamente, associando ideias até que
chegou na lembrança dele e de seu irmão brincando no lago com seu
cachorro, atirando pedras para ele buscar, até que, inadvertidamente,
acertou uma pedra no cachorro que afundou e morreu. Essa era uma
lembrança muito dolorosa que inconscientemente procurava esquecer.
O fato de inúmeras ideias estarem de alguma forma ligadas entre si é o que se chama de tematismo psíquico.
A vida noturna – os sonhos
Um dos grandes méritos da doutrina de Freud foi a constatação de
inexistir uma separação entre a vida normal que levamos e a vida do
doente mental. Ao mostrar que o anormal está mais próximo do normal do
que supomos, Freud indica que a cura do anormal e o restabelecimento da
normalidade é muito menos complicado do que supomos. Isso aparece com
toda clareza na teoria central da psicanálise: a teoria do sonho.
A grande inovação de Freud foi centrar atenção científica nos sonhos.
Dizia ele: “a interpretação dos sonhos é a principal estrada que leva
ao conhecimento dos aspectos inconscientes de nossa vida psíquica.”
Foi a partir do estudo do sonho que ele conseguiu formular uma teoria sobre a neurose.
Segundo Freud, “devemos notar que nossas produções oníricas, isto é,
os nossos sonhos, por um lado se assemelham intimamente com as produções
dos doentes mentais e, por outro lado, são normais no estado de saúde
perfeita”.
Dito de outra forma, complementa Carlos Estevam, “as pessoas sadias
quando estão sonhando se assemelham muito aos doentes mentais, e nem por
isso deixam de ser menos sadias. Aquele que não consegue compreender o
significado dos sonhos não conseguirá compreender os processos psíquicos
mórbidos”.
Os estudiosos anteriores a Freud pensavam que os sonhos eram
provocados pelas sensações experimentadas quando se dorme. Para Freud,
ao contrário, não sonhamos com o que está acontecendo fora de nós: nós
sonhamos com o que existe dentro de nós. Para ele, o sonho não é um
problema somático, mas um processo psíquico.
Para Freud, diferente de seus antecessores, os sonhos não podem ser
apenas uma barafunda de imagens que vão se sucedendo sem nenhuma ordem
lógica. Ao contrário, para ele, são coerentes. Têm um sentido. Têm certa
lógica e certa unidade. A culpa pela incapacidade de interpretá-los é
nossa e não dos sonhos. Os processos psíquicos que se desenrolam em
nosso psiquismo quando estamos sonhando apresentam um certo grau de
organização, ou seja, existem conexões entre as imagens que aparecem nos
sonhos; algo parecido com as associações espontâneas de ideias. Existe
um certo tematismo: são imagens que pertencem a uma única história e,
por mais embaralhadas que estejam, elas buscam contar alguma coisa na
linguagem dos sonhos.
Mas como provar essa tese? Como descobrir o sentido dos sonhos?
Para Freud, o sonho é apenas um efeito, um sintoma de uma causa mais
profunda, assim como a fumaça é um efeito do fogo. Se não conseguirmos
ver o fogo, a fumaça parecerá absurda. São os processos psíquicos não
conscientes, ou seja, pré-conscientes ou inconscientes, que produzem os
sonhos. Só vemos a fumaça, nunca vemos o fogo, daí não entendermos
porque sonhamos.
O método das associações
Só conseguiremos descobrir o sentido dos sonhos se lançarmos mão do método das associações espontâneas.
Uma ideia puxa a outra de forma natural. É como se a primeira ideia
estendesse a mão e puxasse por conta própria a segunda ideia para dentro
do nosso espírito. A segunda ideia vem trazida pela primeira ideia, e
não por nós. É importante observar que essa relação atua no nosso
espírito sem que tomemos conhecimento de sua existência. Por que a
associação ocorre quando nos lembramos de uma determinada coisa e não de
outra? Quando a ideia evoca a outra, ela não evoca qualquer outra, mas
apenas as ideias que estão ligadas a ela por algum tipo de relação. E a
associação não precisa da nossa interferência: ela é uma relação
objetiva e não subjetiva.
Quando deixamos nosso pensamento fluir livremente, sem interferirmos
no rumo que esse processo vai tomando, vemos que as ideias vão se
associando e passando diante de nós como nuvens passando pelo céu umas
atrás das outras. Nesse processo poderão vir emoções desagradáveis e
indesejáveis. Mas não sabemos de antemão qual será a concatenação de
ideias. Não somos nós que comandamos o desfile das ideias; são elas que
se impõem sobre nós, umas atrás das outras, umas trazidas pelas outras,
graças à relação objetiva que existe entre elas.
Essa relação objetiva entre ideias espontaneamente associadas
proporcionou a Freud a base científica sobre a qual repousa o seu método
psicanalítico. O método dele é científico porque se baseia num fato
objetivo. E é esse método que nos fornece a chave para decifrar o
sentido dos sonhos. Ora, como as imagens que aparecem nos sonhos possuem
uma ligação associativa com os processos psíquicos inconscientes que
produzem o sonho, tudo o que precisamos fazer para descobrir as causas
dos sonhos é ir percorrendo as associações. É como seguir o fio da
fumaça para chegar no fogo que a originou.
O psicanalista pede ao seu paciente que se recoste num sofá
confortável, feche os olhos e deixe seu pensamento deslizar livremente.
Ele cria uma situação parecida com a de quem está dormindo. A única
obrigação do paciente é participar, guiado pelo terapeuta, do processo
de associação, onde se detecta aquelas que formam um “tematismo”, ou
seja, uma história que revela qual o verdadeiro significado do sonho.
Para Freud, diz o autor, “cada sonho apresenta dois tipos de
conteúdo: um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. O primeiro é
aquilo que aparece no próprio sonho. O segundo é o conteúdo oculto, é o
sentido oculto que só conseguimos descobrir por meio de análise.” Quando
aplicamos o método associativo, partimos do conteúdo manifesto e
acabamos por descobrir o conteúdo latente (formado de pensamentos e
sentimentos que podem ser ou pré-conscientes ou inconscientes), que nos
revela a causa real do sonho. Para Freud é importante observar que nunca
é consciente o processo pelo qual o conteúdo latente é transformado em
conteúdo manifesto, processo que Freud denominou como “o trabalho do
sonho”.
A primeira tese fundamental de Freud é que o sonho tem um sentido. A
segunda tese fundamental é de que todo sonho é a realização de um
desejo.
À primeira vista há a impressão de que o sonho atrapalharia o sono.
Dormiríamos melhor sem sonhar? Para Freud, o sonho facilita o sono.
Segundo ele, “o sonho é o guardião do sono”. Um desejo é uma excitação
psíquica. O desejo nos acorda do sono. O sonho, guardião do sono,
elimina a excitação causada pelo desejo satisfazendo-o através do sonho.
Uma pessoa que está passando fome só consegue dormir se sonhar.
Segundo Freud, “dormindo nós experimentamos a satisfação do desejo e, satisfazendo o desejo, nós continuamos a dormir”.
Os detratores de Freud argumentaram que se o sonho representa a
realização de um desejo, todos os sonhos nos trariam prazer, já que ao
realizarmos um desejo sentimos prazer. E nesse caso, não poderiam
existir pesadelos. Freud se safa desse questionamento de forma simples,
alertando-nos sobre o papel da censura durante nosso sono. O conceito da
censura complementa a teoria de Freud sobre a interpretação dos sonhos.
Existem as seguintes possibilidades quando um desejo proibido chega
na barreira da censura: (i) se os guardas também estão dormindo, ela
passa diretamente tal como está, sem ser notado; (ii) se os guardas
estão semi-adormecidos e não conseguem bloquear totalmente a passagem, o
desejo de manifesta de uma forma mais ou menos perturbada; e (iii) se
os guardas estão atentos e impedem realmente a passagem e procuram
efetivamente recalcar o desejo, este lança mão do artifício que já
conhecemos: disfarça-se e consegue assim se manifestar de forma
indireta. Esta é a possibilidade mais corriqueira e, por isso, os sonhos
se apresentam embaralhados e confusos.
Aqui, cabe a afirmação de Freud: “o sonho é a realização disfarçada
de um desejo recalcado.” Um bom exemplo é o sonho que combina dois
fatores: de um lado, o desejo de matar, de outro, a censura. Daí decorre
o sonho que se realiza disfarçando um desejo recalcado.
Mas, e o pesadelo?
Nos sonhos buscamos satisfazer os impulsos instintivos mais
primitivos e anti-sociais, tudo aquilo que foi recalcado e que não pode
aparecer à luz do dia. Segundo Freud, “os desejos censurados são acima
de tudo a manifestação do nosso egoísmo sem limites e sem escrúpulos.”
Carlos Estevam explica: “ao dormir, nos desligamos do mundo exterior e
concentramos todo o nosso interesse sobre nós mesmos. Nosso “eu” fica
supervalorizado, passa a desempenhar o papel principal em todas as cenas
e, sentindo-se livre e desembaraçado de todas as obrigações morais e
sociais, nosso “eu” se entrega de corpo e alma aos apetites sexuais,
lançando-se com sofreguidão à procura do prazer. A essa iniciativa de
procurar o prazer onde quer que ele se encontre, Freud deu o nome de
libido. A libido busca os objetos que trazem prazer, de preferência os
objetos proibidos”.
Diz Freud: a libido […] “escolhe não somente a mulher do próximo, mas
também os objetos aos quais a humanidade inteira costuma conferir um
caráter sagrado: o homem escolhe sua mãe ou sua irmã, a mulher escolhe
seu pai ou seu irmão”.
E continua: nos sonhos […] “ódio tem trânsito livre. A fome de
vingança, os desejos de morte em relação a pessoa que amamos acima de
tudo na vida, nossos pais, irmãos, irmãs, esposos e filhos, tais desejos
nada têm de excepcional nos sonhos: são impulsos censurados que parecem
provir de um verdadeiro inferno”.
Egoísmo e erotismo são as duas fontes dos sonhos.
Mas, o ser humano não é só animalesco. Além de seus instintos
egoístas e eróticos, existem a moral elevada, as aspirações socialmente
apreciadas, provenientes da censura. Essas tendências animalescas e
socialmente elevadas entram em choque e vivem em permanente conflito.
Por isso, nem todo sonho é agradável. Por esse motivo, temos pesadelos.
E, assim, Freud os define: “[…] o pesadelo é frequentemente a
realização não velada de um desejo, mas de um desejo que, em vez de ser
bem-vindo, foi repelido e recalcado. A angústia que acompanha a
realização desse desejo é um sinal de que o desejo recalcado se mostra
mais forte do que a censura e de que ele está se realizando ou vai se
realizar, contrariando a censura. O sentimento de angústia que
experimentamos representa a angústia diante da força desses desejos que,
até aquele momento, tínhamos conseguido reprimir”.
É realmente difícil entender como é possível que certos sonhos, muito
desagradáveis, possam ser explicados como a realização de algum desejo.
Mas é o que acontece.
Os mecanismos do sonho
Recapitulando: (a) Todo sonho possui um conteúdo manifesto e um
conteúdo latente; (b) o sonho representa uma espécie de tradução do
conteúdo latente em conteúdo manifesto; (c) esse processo foi denominado
por Freud de “trabalho do sonho”.
Dentre os principais tipos de trabalho do sonho Freud distinguiu
quatro mecanismos: a condensação, o deslocamento, a dramatização e a
simbolização. São diferentes maneiras de transformação do conteúdo
latente do sonho em conteúdo manifesto.
Na condensação, o sonho costuma ser curto, pobre e lacônico apesar de suas causas serem muito mais ricas, profundas e complexas.
O deslocamento é o processo pelo qual a carga afetiva que é libertada
durante o sonho não recai, como seria natural, sobre o seu verdadeiro
objeto: a carga afetiva desvia sua direção e vai recair sobre um objeto
secundário, aparentemente insignificante. Esse é um dos mecanismos
fundamentais e tanto ocorre nos sonhos como nos fenômenos psíquicos
patológicos.
A dramatização é um outro mecanismo fundamental do sonho. Esse
fenômeno consiste no fato de que nunca sonhamos com ideias ou relações
entre ideias. O conteúdo dos nossos sonhos é sempre constituído por
imagens e associações entre imagens. Quando estamos acordados podemos
raciocinar, quando estamos dormindo, só podemos imaginar. A atividade
mental do sonho se limita a imagens de origem sensorial, imagens
visuais, auditivas, táteis, etc. é uma atividade mental de tipo inferior
ao pensamento racional. Em outras palavras, os sonhos traduzem as
ideias em imagens, e por isso, a interpretação dos sonhos tem de
percorrer o caminho oposto, ou seja, descobrir qual é o significado
racional das imagens oníricas.
A simbolização se dá quando as imagens que aparecem nos sonhos estão em relação com outras imagens.
O sexo
Os estudos de Freud sobre o sexo escandalizaram a sociedade de sua
época. A importância do sexo na vida humana não podia ser aceita pela
moral da época.
Carlos Estevam comenta que “as ideias novas são sempre combatidas
quando surgem, principalmente quando vêm se chocar contra velhos
preconceitos ou velhos privilégios arraigados há muito tempo”.
Para Freud instinto sexual é uma força que nos excita e que atua
continuamente: essa força nos dá um tipo especial de prazer todas as
vezes que a satisfazemos de uma maneira acertada. O instinto existe e
atua visando a realização de um determinado objetivo. Esse objetivo pode
ser facilmente alcançado pelo fato de que a satisfação do instinto
provoca em nós uma sensação de prazer. Se não sentíssemos prazer ao
satisfazer nossos instintos, certamente eles desapareceriam.
Para Freud, uma coisa é o sexual, outra coisa, o genital. As relações
genitais são apenas uma parte da vida sexual: as sensações sexuais não
se limitam apenas às sensações genitais. É muito grande o número das
sensações sexuais anteriores ao prazer sexual propriamente dito. Antes
de entrarmos numa relação genital, experimentamos uma enorme quantidade
de processos psíquicos como, por exemplo, esperanças e temores, desejos e
atrações, encantamentos e ternuras, ansiedade e agressividade, etc.
Todos esses processos são sexuais e não genitais. Daí Freud constatar
que os processos genitais constituem apenas uma pequena parte de nossa
vida sexual. A vida sexual é constituída pelas emoções sexuais somadas
aos fenômenos genitais.
Freud desenvolveu a teoria da dupla função. A boca, por exemplo, nos
dá prazeres gustativos, mas, também, nos proporciona prazer sexual, como
o beijo. Toda vez que uma parte do corpo é transformada em fonte de
excitação sexual, Freud dá a essa parte do corpo o nome de zona erógena,
ou seja, zona que é capaz de gerar erotismo.
Para Freud o significado de sexo é muito amplo, com base no qual desenvolveu sua teoria do sexo.
Ao afirmar que as crianças, desde a mais tenra idade, exercem
atividades sexuais, Freud gerou grande indignação em contemporâneos já
que, durante séculos a humanidade supôs que as crianças eram anjos
inocentes assexuadas. Isso porque, com toda certeza, não levaram em
conta a distinção entre o sexo e os fenômenos genitais.
Para Freud o sexo dos adultos é o resultado de um longo processo de
evolução que começa desde o nascimento. O instinto sexual está em nós
desde que nascemos e vai se desenvolvendo até a maturidade da idade
adulta. Quando essa evolução não se processa normalmente aparecem os
casos de perversão sexual. São anomalias, aberrações sexuais.
Para Freud, o primeiro período da sexualidade infantil vai desde o
nascimento até a idade de cinco anos quando, então, entra em latência,
fica encubado, e é desviado para outras atividades. Ocorre um processo
de sublimação que vai dos cinco anos até a puberdade. Nesse período de
latência aparecem as forças do super-ego que provocam a sublimação do
instinto sexual. Surgem os sentimentos de vergonha e de pudor em relação
ao sexo.
Na puberdade, o instinto sexual se robustece, despertando outra vez
para a vida. O aparelho genital começa a funcionar de forma diferente.
Segundo Freud o que as crianças experimentam primeiro são as
sensações bucais. Novamente entra a teoria da dupla função. A boca é uma
zona erógena e o prazer que a criança sente ao chupar é um prazer
sexual, também conhecido como erotismo bucal ou erotismo oral.
Para Freud existem dois tipos de prazeres sexuais diferentes. O de um
beijo, por exemplo, é chamado por ele de prazer preliminar. O prazer da
ejaculação, ou orgasmo, é chamado prazer de satisfação, que só é
possível depois da puberdade. Na infância os prazeres já são sexuais,
apesar não existir ereção nem orgasmo.
Segundo Freud, “quanto mais tarde, na época em que o verdadeiro
objeto sexual, o membro viril já é conhecido, surgem reflexos que
desenvolvem de novo a excitação da zona bucal, que havia permanecido
erógena. Não é preciso um grande esforço de imaginação para colocar no
lugar do seio materno ou o dedo que o substituiu, o objeto sexual atual,
o pênis. Assim, essa perversão tão chocante que é a sucção do pênis tem
uma origem das mais inocentes”.
A segunda fase percorrida pelo instinto sexual na infância é aquela
em que o ânus aparece como fonte de prazer sexual. É a fase anal. Por
exemplo, a sensação de alívio que nos dá o ato de defecar, é para Freud
um prazer de natureza sexual. Não fora assim, nunca poderia haver o
coito anal entre os adultos, que é uma perversão sexual comum em todos
os povos da terra.
Segundo Freud, a perversão sexual só pode existir baseando-se em
algum tipo de atividade que foi normal durante a infância. O indivíduo
adulto sente prazer, por exemplo, no coito anal em virtude de ter havido
alguma atrofia ou algum desvio no desenvolvimento normal de suas
sensações anais durante a infância.
Ao urinar, a criança, ao mesmo tempo que satisfaz uma necessidade
fisiológica, experimenta um prazer sexual. Isso nada tem de
extraordinário já que a micção está intimamente relacionada com a
ejaculação.
Para Freud, diferentemente de seus antecessores, não é na puberdade
que nasce o instinto sexual. Nela é o momento em que o instinto sexual
adquire sua forma definitiva, em que ele se torna maduro e adulto. As
várias partes que constituem a sexualidade infantil vão se juntando uma
às outras, vão se unindo para formar um todo único. Todas as zonas
erógenas que anteriormente viviam de forma independente uma das outras
passam a se ligar entre si e ficam todas subordinadas ao comando da zona
genital, que passa a predominar sobre as demais.
Carlos Estevam acrescenta: “A passagem para a puberdade não se faz da
mesma forma no homem e na mulher. No homem a passagem é direta; na
mulher há duas fases: na primeira a sensibilidade se localiza no
clitóris e, só depois de algum tempo, é que ela passa a se localizar na
vagina. O fato de ter de passar por duas etapas genitais coloca a mulher
numa situação de inferioridade, pois nela são maiores as probabilidades
de haver uma interrupção no processo normal de desenvolvimento. Por
esse motivo é que Freud distingue dois tipos de frigidez feminina: a
frigidez parcial em que a vagina é insensível, e só o clitóris tem
sensibilidade; e a frigidez completa em que nenhuma das duas regiões
pode ser excitada”.
O complexo de Édipo
Édipo é o personagem principal de um mito grego cuja história foi
marcada por dois acontecimentos trágicos: Édipo casou-se com sua mãe e
matou o seu próprio pai. Depois disso, corroído pelo remorso, furou os
seus próprios olhos para se punir.
Segundo Freud, essa mesma história se repete na vida das crianças em relação aos seus pais e mães.
O complexo de Édipo é um fenômeno que pode ocorrer de três formas diferentes: na infância, na adolescência e na idade adulta.
Durante a primeira infância o complexo de Édipo, embora tenha
natureza sexual, não pode apresentar características genitais. Isso
acontece quando o menino começa a manifestar uma exagerada preferência
pela mãe. O menino passa a desejar que a mãe exista somente para ele,
torna-se ciumento em relação ao pai e faz tudo para eliminá-lo de sua
convivência com a mãe. Ao mesmo tempo, ou posteriormente, sente-se
culpado de uma falta grave, experimenta remorsos em relação ao pai. A
mesma coisa acontece com a menina: ela passa a desejar o pai e a repelir
a mãe. Nesse caso o nome que se dá ao complexo é o de complexo de
Electra.
Freud afirma que o complexo de Édipo é coisa normal, que aparece e depois desaparece durante a infância.
Carlos Estevam resume o que acontece na evolução normal do complexo
de Édipo, que aparece, ganha força e depois, pouco a pouco, vai sendo
eliminado sem maiores problemas:
O menino se liga à sua mãe por meio dos cuidados, das atenções e dos
carinhos maternais. Com o tempo ele passa a querer sua mãe só para si.
Pouco a pouco, ele descobre a importância do pai. Percebe que não é só
ele que ama sua mãe. O pai também a ama e por isso torna-se seu rival. O
menino deseja casar com sua mãe, deseja possuí-la completamente só para
si, sem interferência do pai. Como ela já tem um marido, o menino
deseja eliminar aquele rival inoportuno. Luta para conseguir isso mas,
evidentemente, não pode vencer o pai, pois este é muito mais poderoso do
que ele. O jeito que encontra para se vingar é o de tornar-se
agressivo, cínico, desobediente, zombeteiro, etc.
Com o tempo, o menino muda sua maneira de amar. Em vez de querer a
mãe só para si, ele passa daqui por diante a uma nova tendência: deseja
proteger a mãe, tenta envolve-la com o manto protetor contra o que possa
vir contra ela. Não permite que ninguém a magoe. Nessa fase, continua
em competição com o pai, mas já agora admirando as qualidades do pai.
Passa a imitá-lo, deseja igualar-se a ele e tornar-se mais importante do
que ele. A essa altura, o menino já está “bancando o homenzinho”.
Ao ir se tornando adulto, o menino vai ficando independente, se
desligando pouco a pouco da mãe. À medida que sua personalidade viril
vai se firmando, ele deixa de competir com o pai e começa a tratá-lo
normalmente. Como um adulto normal, ele passa a se interessar pelas
outras mulheres. Um belo dia se casa normalmente, sem que o complexo de
Édipo tenha deixado qualquer marca mais profunda em sua personalidade.
Quando, entretanto, por algum motivo, determinados fatores impedem
esse desenvolvimento normal, aí as consequências podem ser muito
dolorosas. Dependendo do caso, o complexo de Édipo pode estragar
completamente a vida do adulto: os homens que não conseguem vencê-lo
tornam-se frequentemente afeminados, acovardados e medrosos; as mulheres
adquirem uma virilidade excessiva e prejudicial; Homens e mulheres
tornam-se impotentes e frios, demonstrando grande timidez sexual;
Experimentam sentimentos de inferioridade e o medo permanente de não
serem aprovados nas coisas que fazem; Sentem-se culpados por atos que
não realizaram sem que haja motivo algum para isso; Tornam-se
excessivamente agressivos ou, ao contrário, sentem-se desarmados diante
da vida; e frequentemente, o complexo de Édipo provoca a
homossexualidade masculina ou feminina.
As manifestações de Édipo durante a infância são plenamente normais.
Na adolescência, a coisa é mais complicada pois a pessoa já entrou na
sua fase genital. Não são raros os casos em que a atração pela mãe
aparece ligada a sensações de prazer localizadas na zona genital.
Quando o complexo de Édipo não é eliminado normalmente durante a
infância e continua a atuar nas idades posteriores, é de se esperar que
venha a se manifestar sob várias formas de sintomas durante a vida
adulta.
Carlos Estevam resume esse assunto: “Suponhamos que o menino, amando a
mãe e odiando o pai, não consiga enfrentar de homem para homem a luta
contra o pai. Ao se dar isso, o complexo entra num caminho anormal de
evolução. Não conseguindo lutar frente a frente contra o pai, o menino
se sente inferiorizado e logo a seguir começa a experimentar sentimentos
de remorsos cuja origem ele desconhece. Sente que alguma coisa de
errado está acontecendo, mas é incapaz de descobrir sua causa. Sente-se
culpado em relação ao pai, mas não sabe por que, uma vez que esses
processos psíquicos são inconscientes e recalcados. Para redimir-se de
sua culpa, o menino procura encontrar algum meio de conseguir o perdão
do pai. Esforçando-se para ser perdoado a fim de se libertar de usa
angústia inconsciente, a primeira coisa que o menino faz é abandonar a
ideia de uma luta de homem a homem contra o pai. Ele se desfaz de sua
agressividade para obter a indulgência e a admiração do pai. Para
agradar ao pai ele vai cada vez mais abrindo mão de sua virilidade, vai
se tornando subserviente e submisso, vai se rebaixando e se
inferiorizando. Em vez de bancar o homem, ele passa a bancar a mulher,
procura se identificar com a mãe para dividir com ela as simpatias e
atenções do pai”.
Chegando à idade adulta, nos casos extremos o rapaz se torna um
homossexual. Nos casos menos graves, ele se torna um tipo submisso e
acovardado, que experimenta sempre a necessidade de sentir-se inferior
aos demais. De um modo geral, é o seguinte o mecanismo desse processo.
Tornando-se adulto, o rapaz tende a ver uma reprodução de seu pai em
todos os homens com quem entra em relação. Encara todos os superiores
como se fossem o próprio pai. Como continua experimentando o sentimento
de culpa, procura obter as boas graças do chefe, do professor, do
patrão, das autoridades em geral. Ele faz de tudo para ser agradável
porque necessita, mais do que qualquer outra pessoa normal, de se sentir
aprovado pelos outros, e conquistar a simpatia e a indulgência dos
outros.
O complexo de castração
Existe em certas crianças o medo mental de serem castradas ou a até
mesmo a convicção de que já foram castradas (no caso das meninas). Esse
complexo pode surgir das mais diferentes maneiras. O sentimento de
inferioridade da menina por não possuir um pênis, a ideia de que todos
nascem meninos e alguns são castrados para virar meninas, a repressão
dos pais ao contato frequente que as crianças têm com suas partes
genitais, dentre outros.
Neuroses e psicoses
Existem muitos tipos de neuroses e de psicoses. Qual a diferença
entre elas? De um modo geral a diferença está no grau de consciência que
a pessoa tem do seu estado.
A pessoa pensa, por exemplo, que os outros a estão perseguindo. Se
ela sente isso mas, ao mesmo tempo, tem consciência de que isso é um
absurdo, então ela é apenas uma neurótica. Mas, se ao contrário, acha
que o que está sentindo é verdade, que sua alucinação não é uma ilusão,
mas algo verdadeiro, então isso é uma psicose.
A psicose é uma doença mais grave do que a neurose porque o doente
não consegue comparar o que ele imagina com o que acontece na realidade;
e perde a consciência do seu estado.
Toda pessoa normal sente medo quando se encontra diante de um perigo.
O medo que o neurótico sente não é um medo normal; é um medo mórbido,
patológico, doentio. Esse medo deriva de um perigo imaginário, um perigo
que não existe. O perigo não existe, é imaginário, mas a angústia que
ele sente é real.
Se vem à mente de uma pessoa normal a ideia de se castrar, o que ela
faz? Tira essa ideia da cabeça e passa a pensar em outra coisa. O
neurótico, fica lutando com essa ideia, mas não se castra. Para Freud,
em nosso psiquismo existem duas locomotivas andando no mesmo trilho em
sentidos opostos. Chega um momento em que uma locomotiva paralisa a
outra já que as duas estão fazendo força em direções contrárias. Há uma
luta, a ideia de conflito entre duas forças opostas. Assim, para Freud a
causa mais importante das neuroses é a existência de algum conflito
interno entre as forças psíquicas que compõem o nosso psiquismo. Para
ele, muito mais do que fatores orgânicos, são fatores psíquicos que
importam. Ao estudar um caso de neurose a atenção de Freud se voltava
para os elementos psíquicos adquiridos ao longo da vida. Necessário,
portanto, buscar descobrir quais foram os acontecimentos da infância, a
educação, as influências exercidas pelo ambiente, as emoções
experimentadas, etc. Exatamente ao longo da vida da pessoa que devem ter
surgido os conflitos, os dramas e as lutas interiores, que acabaram
encontrando uma válvula de escape na neurose. Nossos impulsos naturais e
legítimos, oriundos do nosso instinto de conservação, muitas vezes são
reprimidos, impulsos esses que vão sendo recalcados no inconsciente dia
após dia, como um rio que vai sendo represado. Termina chegando o dia em
que a água transborda, muitas vezes sem razão aparente. O neurótico tem
reações estranhas, descabidas, crises de ansiedade, sonhos delirantes,
confusão mental, vontade de suicidar-se, etc. Assim, resumidamente, para
Freud, a origem da neurose provém dos recalques dos nossos impulsos
instintivos e, em especial, nos recalques dos impulsos sexuais. Se a
educação vence os instintos, o impulso é recalcado para o inconsciente.
Algum dia a força que foi recalcada voltará a aparecer, mais poderosa do
que nunca. Se isso não acontece, o impulso recalcado se manifestará
através de crises (perversões sexuais, somatizações, ira, etc).
Os leigos podem pensar que é fácil curar uma neurose. Seria só
mostrar para a pessoa que ela está equivocada, experimentando uma
obsessão. Para Freud, ao contrário, não se deve dizer jamais ao doente
que ele está errado ao sentir um determinado medo, obsessão ou delírio.
Só o próprio doente é capaz de curar-se, o que só acontece quando ele
mesmo descobrir qual é a causa de sua neurose.
Carlos Estevam comenta: “através da psicanálise pode-se ajudar o
doente a mergulhar no seu inconsciente a fim de encontrar a causa que
está provocando os sintomas neuróticos. O sintoma é apenas um efeito e
não uma causa, só pode ser combatido com êxito se for atacado pelas
costas”.
Freud cita um caso de uma paciente do Dr. Joseph Breuer, iniciador da
psicanálise. Uma moça que sentia sede e não conseguia tomar nenhum
líquido. Tinha que comer frutas para saciar sua sede. O máximo que
conseguia era segurar o copo e encostá-lo em seus lábios para logo
atirá-lo longe. Submetida por Breuer à técnica de associação de ideias,
estando em sono hipnótico, lembrou-se que um dia viu o cachorro da
empregada de sua casa, por quem nutria profundo ódio, tomando água no
copo d’água que mantinha em seu quarto. Ao ver tal situação sentiu um
impulso de explodir com a empregada e demiti-la, mas não o fez, pois,
seu pai sempre a protegia. Essa lembrança escondida no inconsciente veio
para o campo iluminado da consciência. Ao fazê-lo expressou toda sua
ira recalcada. Quanto terminou a sessão, tomou um copo d’água
normalmente.
A psicanálise, nesse caso, ajudou a doente a limpar seu psiquismo,
eliminando uma confusão mental. Isso foi possível porque a moça
conseguiu se recordar da ocasião em que os sintomas apareceram pela
primeira vez. Ela mesma descobriu a causa de seu problema, quando teve
forte reação emotiva, exteriorizando sua cólera represada. Contudo, uma
lembrança esquecida não podia ser relembrada voluntariamente já que
aquele fato já não estava mais no seu consciente, mas sim, no
inconsciente, sendo requerida a técnica psicanalítica.
Nas palavras do autor, “a cura se deu pelo simples fato de a doente
ter sido capaz de trazer de volta à consciência o acontecimento que
havia produzido um traumatismo no seu psiquismo; o desabafo de cólera
que acompanhou a recordação foi uma descarga afetiva de uma energia que
estava represada e lutando para vir à luz do dia. A doente se curou
quando descarregou a cólera que não pudera se manifestar no momento
porque a censura não conseguira nem recalcar completamente o impulso
instintivo, nem deixar que ele se manifestasse completamente. Se o
impulso tivesse sido totalmente recalcado ou se se tivesse podido se
manifestar totalmente, é provável que os sintomas não tivessem surgido.
Os sintomas se formam pela volta do impulso recalcado que tenta por
todos os modos forçar a sua saída”.
Freud costumava dizer que o neurótico se refugia na sua doença. Em
poucas palavras, a essência da cura pela psicanálise é a tomada de
consciência, permitindo a possibilidade de uma escolha, quebra o
automatismo doentio: a tomada de consciência destrói os hábitos mórbidos
ao reduzi-los à lembrança dos acontecimentos que lhes deram nascimento.
Ou seja, a psicanálise cura ao transformar o inconsciente em
consciente.
A histeria
A histeria é uma das formas de neuroses que se manifesta das mais
variadas formas. Antes de Freud, quando uma pessoa se comportava de
forma histérica, repetindo monotonamente o mesmo gesto, tendo rompantes,
paralisia, cegueira, surdez, etc., pensava-se que ela estaria se
fingindo de doente. Freud observou que a histeria não é fingimento, e
nem mesmo uma doença orgânica, mas sim um distúrbio de natureza
psíquica, causado por fatores psíquicos.
Tome-se o exemplo de Arlete, uma pessoa de 34 anos que sofria de
crises nervosas do tipo que se manifestavam por sensação de sufocamento,
contração do corpo, paralisia dos membros e perda dos sentidos. Médicos
e familiares estavam certos de que se tratava de causas orgânicas. Foi
medicada, submetida a intervenções cirúrgicas, fez hipnoses, clínicas de
repouso, tudo em vão. Para provar que uma paralisia do braço não
passava de fingimento, o médico usava de artifícios para que o paciente
mexesse o braço, provando não existir paralisia, caso em que não haveria
movimento. Vendo que o braço se mexia, o histérico se convencia e
deixava de sentir aquele sintoma. Dias depois, porém, aparecia outro
sintoma. E assim ocorriam inúmeras variações nos sintomas.
Nas palavras do autor: “Para Freud, estavam apenas arrancando as
folhas de uma planta daninha, e não a própria raiz do mal. Para ele, na
origem da histeria deveria ter havido algum conflito psicológico que
acabou sendo resolvido de forma incompleta por um ato de recalque, ou
seja, algum processo psíquico inconsciente que recalcou alguma
experiência afetiva dolorosa, ocorrida na vida da pessoa. A causa está
recalcada no inconsciente e o histérico só vê os sintomas os quais,
muitas vezes, trazem a eles uma certa satisfação, pois terminam sendo
uma espécie de realização de um desejo recalcado. Os complexos que
produzem esses sintomas estão fortemente arraigados no psiquismo e é a
eles que é preciso combater”.
Estudando a histeria Freud identificou o que ele chamou de mecanismo
da conversão, uma de suas principais contribuições à teoria da histeria.
A energia afetiva recalcada não permanece o tempo todo somente como
energia psíquica, já que sofre uma transformação que ocorre quando se
converte em um sintoma físico como paralisia, tremores, contrações, etc.
Os processos psíquicos represados no inconsciente encontram uma porta
de saída no corpo.
Voltando ao caso de Arlete, e validada a ideia de sua doença ser
produzida por causas psíquicas, não existiria outro recurso senão o de
usar as técnicas da psicanálise, tais como a livre associação e a
interpretação dos sonhos, que permitem descobrir o passado do doente. No
caso dela, o psicanalista acabou descobrindo que ela sofreu um profundo
choque emocional quando tinha apenas sete anos de idade. Foi estuprada
por um homem que a segurou com as duas mãos pelo pescoço, como se a
estivesse estrangulando.
A família, sem saber de nada, confirmou que aos sete anos ela teve
forte febre e delírios. Arlete sentia que tinha perdido o corpo e que a
única coisa que lhe restava era a cabeça. Arlete começou a associar, em
sonhos, seu pai, com o homem da praia. Os sintomas estavam ligados aos
conflitos psíquicos intensos que, desde a infância, não a abandonaram
até os 34 anos de idade, quando superou as consequências do trauma.
As psicoses são distúrbios psíquicos mais graves e mais complicados
do que as neuroses. No estudo da psicose, o tratamento não pode ficar
restrito aos processos psíquicos já que os processos de natureza
orgânica também têm extrema importância.
O próprio Freud não estudou a fundo a psicose, não tendo se especializado no assunto.
A vida de Freud
Freud nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg, Moravia. Sua família,
de origem judaica, emigrou para a capital da Áustria quando Freud tinha
apenas 4 anos. Em 1881 concluiu seu curso de medicina defendendo uma
tese sobre o sistema nervoso central. Durante vários anos trabalhou numa
clínica neurológica para crianças, onde descobriu um tipo de paralisia
cerebral que, posteriormente, ganhou seu nome.
Em 1885 tornou-se professor assistente da Universidade de Viena. Em
1902 foi nomeado professor titular. Em 1884 um médico vienense chamado
Josef Breuer contou a Freud os resultados de suas experiências na cura
de sintomas graves de histeria fazendo com que o doente, submetido ao
sono hipnótico, conseguisse recordar-se das circunstâncias que deram
origem à sua enfermidade e expressasse as emoções vividas naquelas
circunstâncias. Tais experiências, conhecidas como método catártico
constituíram o ponto de partida para o desenvolvimento posterior da
psicanálise.
Escreveu com Breuer o livro Estudos sobre a histeria, publicado em 1895.
Pouco depois, Freud abandona a hipnose e a substitui pelo seu método
das livres associações. Foi nesse caminho que Freud logrou formular sua
descoberta a respeito dos processos psíquicos inacessíveis à
consciência.
O inconsciente sempre foi objeto de exploração por poetas e filósofos
de todos os tempos. Freud teve o mérito de ter sido o primeiro a
descobrir o instrumento capaz de atingi-lo e explorá-lo em sua essência.
Contudo, sua teoria da sexualidade infantil foi muita rejeitada pela
academia causando, inclusive, seu afastamento de Breuer.
Durante dez anos Freud trabalhou sozinho no desenvolvimento da
psicanálise. Em 1906, já na companhia de diversos colegas tais como
Adler, Jung, Jones e Stekel, realizou o primeiro Congresso Internacional
de Psicanálise. Alguns anos mais tarde fundou a Associação
Internacional Psicanalítica, com filiais em diversos países.
Durante toda sua vida Freud foi vítima da hostilidade pública contra
suas teses e ideias, consideradas imorais e anticientíficas. Mesmo assim
ele foi incansável na divulgação de seus trabalhos científicos.
No fundo, a hostilidade que recebeu ao longo de quase toda sua vida
provinha da faceta hipócrita dos formadores de opinião de plantão que
não queriam admitir a existência de toda a lama e sordidez contidas no
inconsciente social.
Apesar de ter sido muito perseguido pelos nazistas, Freud continuou
vivendo na Áustria. Queimaram os livros de sua biblioteca em praça
pública e tentaram proibi-lo de continuar com seus estudos e pesquisas, o
que ele nunca aceitou.
Em 1938, depois de insistentes convites de muitos países do mundo,
Freud, já sofrendo de um câncer de boca em estágio avançado, aceitou
mudar-se para a Inglaterra. Contudo, era necessário pagar um resgate
exigido pelos nazistas. Diversas instituições internacionais de vários
países angariaram recursos para possibilitar sua viagem. Mas os recursos
nunca eram suficientes pois o valor ia sendo incrementado pela horrenda
chantagem dos nazistas. Foi necessária a interferência do Presidente
Roosevelt junto às autoridades alemãs para que ele pudesse viajar. Viveu
somente um ano na Inglaterra, tendo falecido em 23 de setembro de 1939.
*Marcos de Queiroz Grillo é economista e mestre em administração pela UFRJ.
Referência
Carlos Estevam. Freud: vida e obra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2008, 128 págs. [https://amzn.to/3BTHk0S]
Para
entender o que significa a palavra “futuro”, é preciso, antes, entender
o que significa uma outra palavra, que não estamos mais acostumados a
usar, senão na esfera religiosa: a palavra “fé”. Sem fé ou confiança,
não é possível futuro. Só há futuro se pudermos esperar ou crer em
alguma coisa.
Sim, mas o que é fé? David Flüsser,
um grande estudioso da ciência das religiões – também existe uma
disciplina com esse estranho nome – estava justamente trabalhando sobre a
palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam para “fé”. Um dia, ele se encontrava por acaso em uma praça de Atenas e, em um certo momento, levantando os olhos, viu escrito em caracteres capitais, à sua frente: Trapeza tes pisteos.
Estupefato com a coincidência, olhou melhor e, depois de alguns
segundos, se deu conta de que se encontrava simplesmente diante de um
banco: trapeza tes pisteos significa, em grego, “banco de crédito”.
Eis qual era o sentido da palavra pistis, que ele estava tentando entender há meses: pistis,
“fé”, é simplesmente o crédito do qual gozamos junto de Deus e do qual a
palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que
acreditamos nela.
Por
isso, Paulo pode dizer em uma famosa definição que “a fé é substância de
coisas esperadas” [ou, segundo a versão da Bíblia Pastoral, “um modo de
já possuir aquilo que se espera”]: ela é o que dá realidade àquilo que
não existe ainda, mas em que acreditamos e confiamos, em que colocamos
em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Algo como um futuro existe na
medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade às
nossas esperanças.
Mas a nossa
época, como se sabe, é de escassa fé ou, como dizia Nicola Chiaromonte,
de má-fé, isto é, de uma fé mantida à força e sem convicção. Portanto,
uma época sem futuro e sem esperanças – ou de futuros vazios e de falsas
esperanças. Mas, nesta época muito velha para crer realmente em alguma
coisa e esperta demais para estar verdadeiramente desesperada, o que
será do nosso crédito, o que será do nosso futuro?
Porque, olhando bem, ainda há uma esfera que gira totalmente ao redor do eixo do crédito, uma esfera em que acabou toda a nossa pistis, toda a nossa fé. Essa esfera é o dinheiro, e o banco – a trapeza tes pisteos –
é o seu templo. O dinheiro nada mais é do que um crédito, e sobre
muitas notas de crédito (sobre a libra esterlina, sobre o dólar, mesmo
que não – sabe-se lá por que; talvez deveríamos começar a suspeitar
disso – sobre o euro) ainda está escrito que o banco central promete
garantir esse crédito de algum modo.
A chamada
“crise” que estamos atravessando – mas aquilo que se chama de “crise”,
isso já está claro, nada mais é do que o modo normal em que funciona o
capitalismo do nosso tempo – começou com uma série insensata de
operações sobre o crédito, sobre créditos que eram descontados e
revendidos dezenas de vezes antes que pudessem ser realizados. Isso
significa, em outras palavras, que o capitalismo financeiro – e os
bancos que são o seu órgão principal – funciona jogando sobre o crédito –
ou seja, sobre a fé – dos homens.
Mas isso
também significa que a hipótese de Walter Benjamin, segundo a qual o
capitalismo é, na verdade, uma religião e a mais feroz e implacável que
jamais existiu, porque não conhece redenção nem trégua, deve ser tomado
ao pé da letra. O Banco – com os seus funcionários pardos e
especialistas – tomou o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o
crédito, manipula e gerencia a fé – a escassa e incerta confiança – que
o nosso tempo ainda tem em si mesmo. E o faz do modo mais irresponsável
e sem escrúpulos, tentando lucrar dinheiro com a confiança e as
esperanças dos seres humanos, estabelecendo o crédito de que cada um
pode gozar e o preço que deve pagar por isso (até mesmo o crédito dos
Estados, que docilmente abdicaram à sua soberania).
Desse modo,
governando o crédito, ele governa não só o mundo, mas também o futuro
dos seres humanos, um futuro que a crise torna cada vez mais curto e a
prazo. E se hoje a política não parece mais possível, isso se deve ao
fato de que o poder financeiro sequestrou de fato toda a fé e todo o
futuro, todo o tempo e todas as expectativas.
Enquanto
essa situação durar, enquanto a nossa sociedade que se acredita laica
permanecer subserviente à mais obscura e irracional das religiões, será
bom que cada um retome o seu crédito e o seu futuro das mãos desses
tétricos pseudosacerdotes, banqueiros, professores e funcionários das
várias agências de rating. E talvez a primeira coisa a fazer é
parar de olhar apenas para o futuro, como eles exortam a fazer, para, ao
contrário, voltar o olhar para o passado.
Apenas
compreendendo o que aconteceu e, sobretudo, tentando entender como pôde
acontecer, será possível, talvez, reencontrar a própria liberdade. A
arqueologia – não a futurologia – é a única via de acesso ao presente.
* Artigo publicado originalmente no jornal La Repubblica, em 16.02.2012. A tradução para o português é de Moisés Sbardelotto para o IHU-Unisinos