Poeta de canções, dramaturgo e romancista: Chico Buarque é mais do que Bob Dylan
Escritor
foi o último a saber que ganhou o Prémio Camões por estar em Paris,
onde tem residência, para comemorar o aniversário. Antes já ganhara tudo
o que podia.
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"Quero
ficar no teu corpo feito tatuagem" é o verso inicial de uma canção da
peça Calabar - O Elogio da Traição que Chico Buarque escreveu com Ruy
Guerra e subiu aos palcos em 1973. Pode dizer-se que só Calabar
justificaria o Prémio Camões que Chico Buarque recebeu ontem após a
escolha do júri porque reúne nessa canção - e outras como Anna de
Amsterdam - a sedução capaz de pôr milhões a cantar enquanto pensam na
condição humana da protagonista.
Mas Calabar não é só música
porque nessa peça já estava tudo o que faz de Chico Buarque um dos
maiores criadores da língua portuguesa, a razão pela qual Portugal e
Brasil instituíram este prémio: além de compositor musical, é poeta e
escritor de letras, autor de teatro e com meia dúzia de narrativas de
ficção de fôlego.
A escolha de Chico Buarque implode pela primeira
vez com a norma de atribuir o Camões a "especialistas" do clube da
literatura, ficcionistas e poetas, uma orientação que vem desde a
primeira escolha, Miguel Torga (1989), passou por Jorge Amado (1994), e
no ano passado calhou a Germano Almeida.
Decerto
que o nome de Chico Buarque não surgiu por acaso na lista de autores
lusófonos que estão na calha todos os anos para este prémio, afinal a
atribuição do Prémio Nobel a Bob Dylan gerou imensas especulações e o
nome do brasileiro serviu sempre como exemplo de que se ele fosse o
escolhido pela Academia Sueca seria uma decisão certa.
Depois de
Bob Dylan todas as confusões podem surgir no campo do que é realmente a
literatura, colocando de um lado os que apelam aos poemas de Homero e às
trovas medievais como verdadeiros antecedentes literários ou dão a mão à
obra poética de Leonard Cohen enquanto obra assente em literatura. De
qualquer modo a ata do júri avançou com um argumento de peso
relativamente à obra de Chico Buarque: "A contribuição para a formação
cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua
portuguesa".
Tal como o poeta/letrista/músico norte-americano,
também Chico Buarque é conhecido da maioria pelo que canta. Mas ambos
têm uma outra faceta, sendo que aí Chico Buarque ainda leva mais
vantagem. Não escreveu apenas Calabar e não teve parceria só com Ruy
Guerra, a dramaturgia do brasileiro tinha gerado antes a peça Roda Viva e
depois Gota d"Água, A Ópera do Malandro e O Grande Circo Místico.
Nos
últimos anos, depois de em 1970 ter publicado Chapeuzinho Amarelo, em
1974 a novela Fazenda Modelo, tornou-se escritor de verdade com um
romance inesperado, Estorvo (1991), seguido de Benjamim (1995),
Budapeste (2003), Leite Derramado (2009) e o mais recente, O Irmão
Alemão (2015). Nem sempre conseguiu escapar às críticas de ter a vida
facilitada por ser famoso mas a obra vai confirmando que não é apenas
capaz de escrever canções. Prova disso é ter recebido já três Prémio
Jabuti, o mais importante do seu país, entre muitos outros.
Pelo
meio escreveu centenas de poemas a que por facilidade se dá o nome de
letras de canções, mesmo que sejam muito mais do que esse suporte para
cantar acompanhado com o violão, como ainda recentemente fez ao passar
pelo Coliseu de Lisboa e Porto durante várias noites e foi secundado por
milhares de vozes como se estivessem a declamar o Mar Salgado de
Fernando Pessoa.
A atribuição do Prémio Camões a um letrista é
inédito, mesmo que um dos poetas mais populares galardoado
anteriormente, Ferreira Gullar (2010), também tivesse sido musicado pelo
cantor cearense Fagner. Até Jorge Amado viu versos seus serem canções, o
próprio António Lobo Antunes (2007) teve aquilo que chamava de "umas
letrinhas" escritas em almoços sobre as toalhas de papel transformadas
num disco inteiro de Vitorino e a poesia de Saramago (1995) também foi
cantada. Ou seja, podem-se sossegar as consciências, o bicho da letra de
canção nunca esteve fora da verdadeira literatura.
Entre
o júri que deu o Camões por unanimidade a Chico Buarque estava o
escritor e compositor Antonio Cicero, que deu o exemplo da canção
Construção como um poema "raro de se fazer". Ele e os outros membros do
júri não demoraram muito tempo a conjugarem as suas preferências e em
duas horas Chico Buarque estava escolhido.
Reação a Bolsonaro
Quanto
à decisão do júri, que deve ser muito menos contestada do que a da
Academia Sueca pelos lugares onde a lusofonia impera, os grandes
detratores estarão no próprio Brasil que elegeu Bolsonaro recentemente.
Aliás, notou-se alguma parcimónia nos foguetes que o anúncio costuma
merecer no Brasil na imprensa. A razão também poderia ter sido a
surpresa, afinal os académicos gostam de escolher entre os seus e não
alguém tão de fora.
No entanto, Chico Buarque faz parte da metade
do povo brasileiro que é contra o governante populista que ocupa o
Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro, alem de ser apoiante de Lula e do
PT. Situação que parece estar a tornar-se numa tradição, pois os mais
recentes premiados brasileiros com o Camões são do contra. Também Raduan
Nassar (2016) contestava a manobra de impeachment de Dilma e saiu do
seu retiro no interior de São Paulo ao fim de vinte anos para apoiar
publicamente a ex-Presidente.
Não
esquecer que o sucesso de Chico Buarque enquanto artista e compositor
começou durante a ditadura militar, um regime que só terminou nos anos
1980, tendo sido obrigado a exilar-se, a gravar discos que a polícia
política censurava - como a palavra sífilis no Fado Tropical - e só
passou a compor livremente já a sua carreira ia longa. Feijoada Completa
foi o primeiro disco em que pôde lançar sem penalização da censura.
Mesmo assim quando a abertura política já estava a ser ensaiada, Chico
Buarque esteve para ficar ligado a um atentado durante o espetáculo do
1. De Maio do RioCentro que organizou mas a bomba explodiu antes do
tempo no exterior do pavilhão.
Exemplo
de algum distanciamento posterior da política encontra-se em vários
discos, desde o último Caravanas até a um dos seus melhores trabalhos de
anos mais recentes, o tema Morro Dois Irmãos.
Quem for reler a
peça Calabar vai rever os tempos atuais no Brasil, substituídos que
foram os ocupantes portugueses e holandeses por uma estrutura política
que continua a fazer o "elogio da traição", o subtítulo da peça Calabar.
Talvez se questione sobre a atualidade dos versos de uma outra canção
da peça e considere que este Prémio Camões acertou mesmo no
escritor/poeta/compositor que o júri escolheu: "Não existe pecado do
lado de baixo do Equador.
in Diário de Notícias, Portugal
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