A Ditadura Fascista e os caminhos da Arte em Portugal
Quando
a extrema-direita e os saudosistas do salazarismo (incluindo, assuma-o
ou não, o presidente PS da CM de Santa Comba Dão) ressurgem com
crescente agressividade, recordar o que foi o regime fascista em
Portugal é de novo obrigatório. Entre as mais corajosas e combativas
frentes da resistência conta-se a dos intelectuais antifascistas, que
nunca permitiu espaço de manobra e de credibilidade às tentativas de
captação do regime. Esse combate dos intelectuais permanece inteiramente
actual.

Falar
dos caminhos da Arte em Portugal durante o longo e negro período dos 48
anos da ditadura fascista, derrubada pelos capitães de Abril em 1974,
exige que, em primeiro lugar, se entendam as características desse
regime opressor.
Muito sinteticamente: um golpe militar, em 28 de Maio de 1926,
apoiado pelas forças mais reaccionárias, instaurou um Governo de
Ditadura Militar, que rapidamente evoluiu para uma Ditadura Fascista,
com a dissolução do Parlamento, a proibição de todos os partidos
políticos, a criação de uma Censura sobre os jornais, livros e todos os
meios de comunicação, a instauração de uma polícia política feroz contra
todos os adversários do regime e a depuração do aparelho militar, com
expulsão e prisões de militares fieis ao regime republicano. São estes
os pilares do novo regime.
Oliveira Salazar tornou-se chefe do Governo em 1932, só depois de lhe
estarem garantidas as condições para liquidar todos os que se lhe
poderiam opor. Salazar estava ligado e tinha o apoio dos regimes
fascistas de Mussolini, instaurado em Itália desde 1922, e de Hitler,
que acabara de ser nomeado Chanceler em 1932. Eles foram os modelos
seguidos por Salazar, no plano político e também de propaganda.
Foi seguindo esses exemplos que Salazar criou, em 1933, o
Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), para o qual nomeou António
Ferro, um intelectual que tinha passado em 1927 pela direcção da Revista
Orpheu dos modernistas portugueses e que depois publicou grandes
elogios àcerca dos regimes de Mussolini e de Hitler, no livro ”Viagens à
volta de duas ditaduras”, e escreveu uma biografia glorificando
Salazar, editada em Itália, o que lhe garantiu a nomeação e a confiança
deste, para dirigir a chamada “política do espírito”: designação do
ditador à sua política de captação dos intelectuais, subordinada aos
objectivos do regime.
O momento culminante deste trabalho de propaganda política surgiu em
1940, com a inauguração da Exposição do Mundo Português, ligada a um
conjunto de Obras Públicas sob orientação do engenheiro Duarte Pacheco,
e, no plano artístico e propagandístico, sob a direcção de António
Ferro.
Salazar proclamou a grandiosidade do regime, afirmando que ”esse ano
de 1940 seria perpetuado no dobrar dos tempos e na imaginação dos
vindouros”.
A imponência simbólica da Exposição de Belém contou com a captação
de numerosos arquitectos e artistas plásticos, particularmente os
adeptos do regime, como Pardal Monteiro, autor das gares marítimas de
Lisboa, Veloso Reis, do Museu de Arte Popular, que permanece ainda, o
arquitecto Cottinelli Telmo e o escultor Leopoldo de Almeida,
responsáveis, entre outras obras, pelo Padrão dos Descobrimentos, que se
mantém junto ao rio.
Na Exposição, foi glorificado o Império Colonial português, com
aldeias africanas reconstruídas e habitadas pelos povos das colónias,
exibidos ali como animais num Jardim Zoológico.
Durante a Exposição, foram encenados grandiosos e sumptuosos desfiles históricos, da autoria de Leitão de Barros.
Muitos escultores executaram obras para a Exposição, como Francisco
Franco, Barata Feio e também Canto da Maia, António Duarte e outros.
Mas os artistas que António Ferro mais elogiava e pretendia que
fossem um exemplo a seguir pelos escultores portugueses, como um
receituário, eram Leopoldo de Almeida e Barata Feio, que marcavam os
limites do academismo.
Pintores como Almada Negreiros e sua mulher Sara Afonso, Bernardo
Marques e Eduardo Viana, embora tenham participado na Exposição de Belém
e expusessem nos salões do SPN, mantinham maior independência.
É necessário esclarecer que a “Exposição do Mundo Português”
ocorreu em 1940, quando Hitler e Mussolini, aliados entre si e amigos de
Salazar, estavam no seu apogeu, tendo ajudado militarmente a vitória de
Franco contra a República Espanhola e iniciado, em 1939, a II Guerra
Mundial, em que, na altura, obtinham grandes vitórias.
A derrota do nazi-fascismo, particularmente graças aos êxitos
militares do Exército Soviético, culminando com a vitória das forças
aliadas em Maio de 1945, determinou a viragem na correlação de forças
mundial e fez tremer Salazar, cujos aliados tinham sido vencidos.
As enormes manifestações com que, em Portugal, celebrámos esta
vitória, deram um enorme impulso às forças da Oposição e permitiram a
criação do MUNAF e o MUD Juvenil, sob o impulso do Partido Comunista
Português.
Nessa onda de unidade das forças antifascistas, os intelectuais
progressistas tiveram um importante papel. Um papel que vinham tendo há
muito, embora discretamente. É necessário não esquecer que a génese do
movimento antifascista a nível cultural, inspirado pela teoria marxista
do materialismo histórico, vinha desde os meados dos anos trinta a ser
divulgada por jornais como “O Diabo”, de que um dos directores foi o
advogado Campos Lima (bem conhecido em Portimão), “O Sol Nascente” e a
revista “Vértice”.
Foram as importantes polémicas literárias desenvolvidas por esses
periódicos que originaram o nascimento do neo-realismo na literatura, em
defesa de uma “arte útil”, virada para os problemas reais da sociedade.
Foi uma nova geração de escritores que então surgiu, exigindo uma
maior intervenção cívica e cultural dos escritores e artistas, contrária
aos ideais do regime fascista.
Destacaram-se, nesta frente, Alves Redol (Gaibéus-1939); Manuel da
Fonseca (Rosa dos Ventos-1940); Soeiro Pereira Gomes (Esteiros-1941) e
Carlos de Oliveira (Uma abelha na chuva-1953).
A estes escritores, juntaram-se outros, como José Cardoso Pires,
Ilse Losa, Urbano Tavares Rodrigues, Augusto Abelaira e Sttau Monteiro,
que se centraram também numa mais ampla preocupação, não só quanto ao
conteúdo, mas também quanto à forma.
Aliás, foi a batalha pelo conteúdo (sem desprezar a forma), que
caracterizou este período, em que surgiu com força o movimento
neo-realista português.
Logo a seguir à vitória contra o nazi-fascismo, com o temporário recuo
de Salazar e o crescendo das forças da Oposição, e na sequência do já
desenvolvido movimento literário do neo-realismo, os artistas plásticos
progressistas ganharam força para contestar as imposições políticas de
António Ferro, que lhes fechava as portas das únicas grandes salas de
exposições, que eram as do SPN (que depois da guerra mudou de nome para
Secretariado Nacional de Informação, SNI) e os Salões da Sociedade
Nacional de Belas Artes, em que era imposto um estreito academismo.
Tratou-se então de conquistar, por meio de um amplo trabalho
unitário, uma direcção aberta à modernidade para a SNBA, que dispunha de
amplos salões de exposição, até então fechados a artistas que não
fossem adeptos do regime, e académicos quanto ao estilo.
Foi graças a um amplo movimento iniciado pelos alunos da ESBAL e por
outros artistas não adeptos ao regime, que se conseguiu eleger uma
direcção mais aberta e democrática para a SNBA, presidida pelo escultor
Anjos Teixeira.
Foi a partir desta vitória, que, em 1946, tiveram inicio, na SNBA,
as Exposições Gerais de Artes Plásticas (EGAP), que, durante dez anos,
até 1956, constituíram não só um verdadeiro acto de confrontação
cultural com o regime fascista, mas também um real incentivo para a
criatividade livre e descomprometida, particularmente dos jovens
artistas, que até ali não tinham tido hipóteses de expor as suas obras.
Os dez anos de existência das EGAP não se passaram sem ataques da
repressão. Uma das exposições foi encerrada pela PIDE depois da abertura
e vários quadros retirados.
Mas os artistas resistiram e as EGAP constituíram uma abertura e um
campo adequado para a apresentação de manifestações artísticas que
lutavam pela conquista da expressão livre, pelo que, a cada artista,
interessava exprimir como fundo e forma e, em última análise,
contribuindo para fomentar uma renovação do panorama artístico
português.
Foi assim que, nas EGAP surgiram, com a força e pujança da
juventude, novas camadas de artistas, que não tinham acolhimento nos
Salões do SNI de António Ferro. Esses jovens artistas rebeldes iriam
afirmar-se no futuro como artistas marcantes na Arte Portuguesa. Entre
eles Júlio Pomar, cujo mural no cinema Batalha do Porto foi mandado
tapar pela PIDE, por representar cenas populares das festas do S. João
no Porto (restam fotos), Lima de Freitas, Querubim Lapa (natural de
Portimão), os escultores Maria Barreira, Vasco da Conceição, e ainda
José Dias Coelho, e Jorge Vieira, com o seu projecto de monumento ao
prisioneiro político desconhecido (já executado em Beja).
Muitos outros artistas, de renome, iniciaram-se nessas exposições,
como os pintores Rolando Sá Nogueira, João Hogan, Rogério Ribeiro, Maria
Keil, e os arquitectos Sena da Silva, Castro Rodrigues, Hernani Gandra e
P.Cid.
Ficou claro que, se o neo-realismo adquiriu maior visibilidade a partir
da EGAP, e nelas predominou, a verdade é que estas apresentavam uma
pluralidade de opções estéticas decorrente dos objectivos de abrangência
e de unidade política dos seus organizadores. Nelas participaram,
enquanto o quiseram, surrealistas e artistas abstractos.
A própria evolução daqueles que, tendo sido cultores da prática e da
reflexão plástica do neo-realismo, passaram para outras opções
estéticas, comprovam que ali tinham ganho o poderoso impulso do
inconformismo e da luta pelo novo, que os catapultou para novas
experiências, como Júlio Pomar, Lima de Freitas, Querubim Lapa e Rogério
Ribeiro.
Um aspecto pouco conhecido é que as Exposições Gerais de Artes
Plásticas acolheram nos seus salões, pela primeira vez, a fotografia
como expressão artística, pois, até ali, só era exposta nos foto-clubes e
exposições fotográficas de amadores. Nelas participaram, com
fotografias, Victor Palla (depois publicadas no livro “Lisboa, cidade
triste e alegre”), o arquitecto Keil do Amaral e Augusto Cabrita, o
grande fotógrafo de temática neo-realista.
Também pela primeira vez, as EGAP apresentaram a gravura, nas suas
várias modalidades, dentro do critério de que a gravura é uma das formas
de arte que mais facilita a divulgação ampla entre as camadas
populares.
Na Escola Superior de Belas Artes, não se ensinava então a gravura, e
foi a partir do incremento dado pelas EGAP que artistas que nelas
expunham criaram a Cooperativa de Gravura, em 1956, que deu enorme
incremento a esta forma de arte.
Com a criação da Fundação Gulbenkian, em 1956, sem dúvida que maiores facilidades se abriram aos artistas portugueses.
Mas a verdade é que a frente dos intelectuais antifascistas nunca
permitiu espaço de manobra e de credibilidade às tentativas de captação
do regime fascista.
E na revolução do 25 de Abril, participaram com a sua arte nos
momentos exaltantes da vitória do MFA. Como fizeram Cipriano Dourado,
com as suas gravuras, e o grande artista João Abel Manta, com os seus
cartazes.
Nota: Esta é a palestra proferida por Margarida Tengarrinha, membro do
Partido Comunista Português, Resistente Anti Fascista, ex deputada à
Assembleia da República após o 25 de Abril e Artista Plástica, na
segunda-feira, dia 22 de Abril, na tertúlia sobre “A Arte antes e depois
do 25 de Abril de 74”, que teve lugar no Café-Concerto do Teatro
Municipal de Portimão.
A autora escreve segundo o anterior Acordo Ortográfico.
Fonte:
https://www.sulinformacao.pt/2019/04/a-ditadura-fascista-e-os-caminhos-da-arte-em-portugal/?fbclid=IwAR31sSVvWV5bs20opFldEhX8oAeHlJ-TPyKf_xxucguo4ua0_r-Q7zkVxW8