Aos
83 anos, Woody Allen traz uma nova comédia romântica. “Um Dia de Chuva
em Nova Iorque” nada tem de autobiográfico e contudo revela muito dos
sonhos e das frustrações de um cineasta que continua a sentir-se
“ansioso e vulnerável”. Estreia-se na quinta-feira
POR Francisco ferreira Em PARIS
Comédia
de Woody, mesmo romântica, tem sempre travo agridoce e aí está “Um Dia
de Chuva em Nova Iorque” a comprová-lo. Nas pouco mais de 24 horas que
dura a aventura, um jovem casal de namorados universitários decide
passar um fim de semana agradável na cidade que nunca dorme — só que o
piso está ‘molhado’ e cada um deles escorrega à sua maneira. Ela
chama-se Ashleigh, encontra a oportunidade de entrevistar um realizador
de carisma e depois deixa-se deslumbrar pelo mundo de aparências do
cinema. Ele, Gatsby de seu nome, evita encontrar os pais mas o acaso
força-o a apresentar-se numa luxuosa reunião de família em que ele vai
simular ser quem não é. Tal como o casal de “O Sheik Branco”, obra de
estreia de Fellini (do qual “Um Dia de Chuva...” é, talvez, um longínquo
remake...), Ashleigh e Gatsby enfrentam,
cada um à sua maneira, uma falsa relação com a realidade. Timothée
Chalamet e Elle Fanning, dois ótimos atores em ascensão, entram pela
primeira vez no universo do cineasta americano e também por lá andam
Jude Law, Selena Gomez, Liev Schreiber, Rebecca Hall e Diego Luna.
Conversámos com Woody Allen no final de agosto numa suíte do Bristol —
tal como acontecera antes da estreia de “Roda Gigante” —, o seu hotel
predileto em Paris. Uma vez mais, foi um prazer ouvi-lo.
Como tem passado, sr. Woody Allen?
Acho
que não estou nada mal, na medida que a idade me permite. Continuo a
sentir-me ansioso e vulnerável, já era assim aos cinco anos, e aos 35, e
aos 55... Agora já tenho 83. Começam a pesar-me um bocadinho. Se ao
sair desta sala me der uma coisa má, ninguém ficaria surpreendido:
pudera, com 83 anos! Mas continuo a trabalhar. Acabei agora mesmo de
rodar um novo filme no País Basco, em San Sebastián, que é uma cidade
encantadora — e a comida é deliciosa.
Como se chama esse filme?
Temos
um título de trabalho, ainda não definitivo: “Rifkin’s Festival”.
Talvez não dure até ao fim, estou tentado a mudá-lo. O filme passa-se,
na verdade, durante o Festival de Cinema de San Sebastián mas não estou
autorizado a contar muito mais [tanto quanto se sabe, trata-se de uma
coprodução americano-espanhola com Christoph Waltz, Wallace Shawn e Gina
Gershon no elenco e a fotografia, uma vez mais, é de Vittorio Storaro].
De
qualquer forma, estamos aqui para falar sobre “Um Dia de Chuva em Nova
Iorque” em que, entre outras coisas, descobrimos Liev Schreiber num
papel secundário, a interpretar um realizador angustiado com o seu
trabalho. Mas esse problema não parece afetá-lo na vida...
Humm,
talvez se engane! Eu sempre tive problemas com o meu trabalho, do meu
ponto de vista. A escrita do guião é um momento fantástico em que só
dependo de mim próprio, o casting é uma
aventura excitante em que tenho o apoio de pessoas com quem trabalho já
há algum tempo [Patricia DiCerto colabora com o cineasta desde “Match
Point”], mas quando a rodagem começa, quando ‘pomos a mão na massa’ e
depois vemos o resultado, este é quase sempre desapontante. Na nossa
cabeça, tudo funciona idealmente. Mas na vida real, quando ainda não se
encontrou aquele décor perfeito, quando o
dinheiro e os adereços faltam ou até os atores que queríamos, começamos a
apercebemo-nos dos nossos próprios erros. E o cinema já não é tão bom
assim.
Não está a ser demasiado severo consigo próprio?
A autocrítica e a contradição fazem parte do meu espírito. Sempre fui assim, não é agora em velho que vou mudar.
“Um
Dia de Chuva...” é mais um filme seu com o nome de uma cidade no título
— assunto recorrente desde que fez “Manhattan”, já lá vão 40 anos. Esta
relação com um determinado espaço é crucial para si?
Eu
sou um grande fã de cidades. Sempre quis que elas fossem personagens
dos filmes, fosse Paris, Roma ou Nova Iorque, claro. Não me vejo a
filmar em sítios de que não gosto. Quer dizer, a Nova Iorque de Scorsese
ou de Spike Lee não tem nada que ver com a minha, que não é tão
realista, mas sim uma Nova Iorque filtrada pela minha cabeça, de uma
forma muito idealista. Não sei porquê, mas há qualquer coisa sobre áreas
metropolitanas que significam sempre muito para mim, talvez porque elas
são provas de civilização, porque têm teatros e livrarias. Quando
cheguei aqui a Paris há dois dias a minha mulher meteu-se logo nos
museus, mas eu não. Gosto de andar nas ruas. De descobrir coisas. De
olhar para as pessoas.
Já lhe passou pela cabeça deixar os filmes para sempre, quem sabe para se dedicar por inteiro ao clarinete?
Se
eu fosse um músico um bocadinho melhor do que na verdade sou, talvez
pudesse fazer isso. Mas sou um amador. Com muito entusiasmo pelo que
toco, mas um amador. Sou como um tenista de fim de semana que gosta de
bater umas bolas. Jamais poderia ser um músico profissional, nem que
vivesse um milhão de anos. Mas há outra coisa, sabe: filmar distrai-me.
Impede-me de pensar que tenho 83 anos. Obriga-me a focar-me nos
problemas triviais de cada projeto: as personagens, o guarda-roupa, a
fotografia. Enquanto estiver focado nisso, estou bem. Com demasiado
tempo livre ia tornar-me preguiçoso. Podia ler mais, ver mais desporto
na televisão — e já vejo bastante — mas ia amolecer. E não quero. Então,
enterro-me em trabalho o mais que posso.
Eu
sou um grande fã de cidades. A Nova Iorque de Scorsese ou de Spike Lee
não tem nada que ver com a minha, que não é tão realista, mas sim uma
Nova Iorque muito idealista”
Fazer filmes significa hoje o mesmo para si que significava há três ou quatro décadas?
Ouça,
eu faço filmes apenas e só porque há pessoas que os financiam! Não há
nenhum segredo aqui. Se amanhã me dissessem que não há dinheiro, ficaria
muito contente a escrever só para o teatro, ou livros, porque gosto de
escrever. Agora, se há quem continua a pagar os filmes, sinto que não
posso dizer ‘não’. A parte mais dura e difícil do cinema para um
cineasta é arranjar dinheiro para um filme. Tudo o resto exige muito
trabalho, mas não se compara àquele suplício.
É sobretudo na Europa que consegue esse financiamento?
Eu embolso-o de qualquer lado em que posso obtê-lo.
“Take the Money and Run”...
Ah!
Esse foi há 50 anos. A Europa tem-me ajudado bastante. Eu tenho tido
sorte porque, precisamente desde “Take the Money and Run”, os meus
filmes foram sempre apreciados na Europa. Nunca consegui explicar esta
atração, mas ela existe. E tenho beneficiado desta lealdade, de França a
Espanha, da Itália à Alemanha... Eu podia arranjar mais dinheiro nos
Estados Unidos mas eles exigem uma maior colaboração. Dizem-me que não
querem ser tratados como banqueiros, querem saber quem serão os atores,
ler o argumento, etc. Aqui na Europa, é diferente. Dizem-me: “Nós
pagamos, avançamos com o dinheiro como um investimento, o senhor faça o
filme que quiser.” Tenho mais liberdade, é óbvio.
Mudemos
de assunto. Em “Um Dia de Chuva...” há um momento em que uma personagem
desabafa que os jornais, agora, são todos tabloides. Ora, a imprensa
atravessa, de facto, um momento difícil. Porque é que essa frase entrou
no seu guião?
Porque acho que é a verdade. Houve um
tempo em que havia tabloides e alguns jornais nos EUA que resistiam a
essa tentação, mas a situação tornou-se tão desesperada para a imprensa —
e falo da imprensa escrita — que até os melhores jornais tiveram que
abraçar o sensacionalismo para sobreviverem. E eu acho que esse foi um
passo em falso. Um tiro no pé. Quando eu era um jovem rapaz, havia uma
dúzia de bons jornais em Nova Iorque. Comprava-os pela manhã, queria
saber o que se passava na Broadway, por exemplo, e lá estava a crítica,
boa ou má pouco importa, era a opinião do espetáculo que se estreara na
noite anterior. Esse espaço foi-se reduzindo cada vez mais. E agora
quase desapareceu porque a tal dúzia de jornais também já não existe.
Foi sempre um bom leitor do que se passa à sua volta?
Sempre tive no coração um feeling
muito positivo, e romântico pelo jornalismo e por jornalistas. Quis em
tempos ser um, aliás. Estava a pensar o que fazer com a minha vida e
julguei que esse podia ser o caminho.
Como crítico?
Não,
como repórter de crimes. Interessavam-me essas histórias. Ou ser
jornalista desportivo. Acreditei sempre na ideia do repórter como um
herói, alguém que chega e descobre a informação verdadeira e salva
aquele desgraçado que foi falsamente condenado, etc. Esses dias são cada
vez menos frequentes. E é uma vergonha que assim seja.
Falou
em romantismo pela imprensa. E você, sempre olhou para si próprio como
um romântico? “Um Dia de Chuva...” é, de novo, uma comédia romântica.
Sempre
me vi assim, é verdade! Mas é difícil sermos objetivos sobre nós.
Vemo-nos de uma certa maneira e o mundo olha-nos de uma maneira muito
diferente. E isto é que é chato! Mas esta diferença de pontos de vista,
para quem quiser reparar bem, está muito presente em todos os meus
filmes. E é por isso que não concordo assim tanto com quem diz que eu
faço filmes narcisistas, enfim, cada qual que julgue o que quiser. No
ecrã há o que nós somos, o que uma determinada personagem é, mas também o
modo como o mundo a vê. E o mundo nunca a vê da mesma maneira. Enquanto
eu crescia, sempre olhei para mim como um romântico.
Os seus espectadores também, quando o viam no ecrã...
Nem
todos. E se não apareço mais nos meus filmes é simplesmente porque
estou demasiado velho para interpretar o ‘protagonista romântico’. Então
fico atrás da câmara: assunto resolvido. De qualquer forma acho que a
maioria dos meus espectadores me viu sempre como o cómico de serviço. O
fulano divertido. The comedian. Não como o
romântico que eu acho que sempre fui. As comédias românticas, de resto,
eram os filmes de que eu mais gostava na juventude.
Em
que momento é que decidiu que Timothée Chalamet poderia ficar com o
papel de Gatsby em “Um Dia de Chuva...” e entrar na sua já vasta galeria
de personagens? A pergunta não vem ao acaso: eu acho que ele tem muito
de si no filme.
Bom, o meu diretor de arte Santo
Loquasto, com quem trabalho há décadas, fez uma peça de Tchekhov na
Broadway e alertou-me para este rapaz: “Tens que conhecer o Timothée,
ele é muito bom e acho que ele pode interpretar material novo — e muito
bem.” Conheci-o, gostei dele, ele leu [o guião] muito bem e concordei.
Nunca tinha visto nada dele antes. Mas é curioso o que diz: já me
aconteceu mostrar um guião meu a um jovem ator com quem nunca trabalhei e
notar que ele tende a parecer-se comigo. E é natural que isso aconteça,
porque o guião é meu, escrevi cada frase, cada palavra, cada piada, e
não tolero desvios e improvisos. Isto não é voluntário, acontece
espontaneamente. Há sempre um feeling of me
na personagem. É engraçado que gostei que isso não tenha acontecido
quando fiz “Midnight in Paris” [2011] com o Owen Wilson, um ator um
bocado mais velho. A personagem dele tinha a sua própria persona, muito forte, uma antítese do que eu sou, não havia qualquer rasto de mim, de todo.
Há uma cena em que Gatsby Welles, a personagem de Timothée, toca piano. Ele tocou-o realmente, em direto?
Sim, tocou. Foi ele.
Acho que a maioria dos meus espectadores me viu sempre como o cómico de serviço. O fulano divertido. The comedian. Não como o romântico que eu acho que sempre fui”
Voltemos
ao dinheiro: alguma vez jogou póquer, ou qualquer outro jogo, para
ganhar dinheiro extra para os seus filmes, tal como o Gatsby, que se
autofinancia desse modo?
Eu costumava jogar póquer precisamente por essa razão!
Quando é que isso aconteceu?
Quando
fui para Inglaterra trabalhar como ator no horroroso “Casino Royale”
original [estreado em 1967], ou seja, antes de fazer o meu próprio
cinema. É um filme catastrófico, a sério que é. Ninguém me conhecia. Não
tinha ainda feito nada de importante. Nós passámos imenso tempo na
rodagem e não havia nada que fazer. Então jogava póquer, obsessivamente.
E com gente bem conhecida, atores célebres, eles estavam a fazer “The
Dirty Dozen”, do Bob Aldrich, ali perto: o John Cassavetes estava lá, o
Telly Savalas, o Charles Bronson, o Lee Marvin... Não havia noite em que
não jogássemos.
Era bom jogador?
Era
um muitíssimo bom jogador porque não tinha sentido de humor algum. É
que todos eles jogavam por diversão e prazer. Queriam passar um bom
bocado, bebiam que se fartavam, e eu estava ali a jogar como quem joga a
vida. Ganhei muito dinheiro. Fiz uma soma muito razoável. Aliás, era
raro haver noite em que não ganhasse. Deixei-os muitas vezes depenados,
confesso.
Porque é que parou?
Ah,
foi por culpa do célebre produtor de teatro americano David Merrick.
Ele próprio tinha sido um grande jogador no passado e, num certo dia,
fez-me ver que o jogo era uma perda de tempo. E nunca mais joguei.
Como é ter que viver na América de Donald Trump hoje em dia?
É
de cortar à faca. Sabe, eu sou democrata, sempre fui. Votei em Hillary
Clinton. Não sei se se recorda mas previ naquela altura que ela iria
ganhar com bastante certeza, mas não ganhou, e eu enganei-me, como
tantos outros. Estou calmamente à espera das próximas eleições para que
um democrata volte a ganhar. Acho que a razão vai triunfar, que esta
direita extremista vai recuar e que isso terá um efeito positivo no
resto do mundo. Posso estar enganado. E se estiver, vai ser terrível. O
extremismo político nunca fez nada de bom pela raça humana.
Você dirigiu Donald Trump em “Celebrity”...
Sim!
Longe vai o tempo em que eu pensava nele como alguém que em tempos
contratei como ator. E quer saber mais: ele era bom ator! Mesmo muito
bom! Chegou ao set, foi muito cortês com
toda a gente, fez o que lhe foi pedido, sabia as suas falas, essa foi a
boa parte. Como Presidente, a situação é diferente... Tenho que dizer
isto: a subida ao poder da direita e da Administração Trump tem dado azo
na América a um enorme aumento da sátira e contribuído, também, para o
aparecimento de novos comediantes, sobretudo na televisão. Eles reagem
instantaneamente às declarações do Presidente. São muito criativos. Mas
eu não sou um deles. Nunca fui um cineasta político.
Estou
calmamente à espera das próximas eleições para que um democrata volte a
ganhar. Acho que esta direita extremista vai recuar. Posso estar
enganado. E se estiver, vai ser terrível”
Ainda hoje conseguiria ditar para um gravador as coisas pelas quais a vida merece ser vivida, como em “Manhattan”?
Tem
graça, houve uma senhora que em tempos fez um reparo e me disse que eu
não incluí os meus filhos nessa lista, apesar da minha personagem ser
pai. Acontece que [na época de “Manhattan”] eu não era ainda pai na vida
real. Nunca tal me ocorreu, mencionei apenas as coisas de que gostava.
Não tinha qualquer experiência com crianças. Mas desde que as tenho, e
desde que a minha vida gira em torno da minha mulher e dos meus filhos,
eles seriam as prioridades de topo para mim, não aquele restaurante
chinês, ou aquele filme, aquele disco...
Timothée
Chalamet não é o único jovem ator de “Um Dia de Chuva em Nova Iorque”,
temos também Elle Fanning ou Selena Gomez, que também chega ao seu
cinema pela primeira vez. Timothée tem 23 anos, Selena 27, Elle apenas
21. São pessoas muito diferentes de si quando tinha a mesma idade?
Eu
era muito menos sofisticado. As pessoas de 20 anos estão hoje
extremamente cientes do que são, andam muito informados, sabem tudo
sobre drogas, sexo, política, têm uma grande vantagem sobre mim. Eu era
retraído, tímido, vivia refugiado no meu pequeno contexto burguês.
Mas
eu não sei — e duvido muito — se as pessoas de 20 anos ouvem Bing
Crosby ou Erroll Garner, e este filme está cheio de canções deles. A
banda sonora foi uma maneira de se relacionar com a sua própria
juventude?
Não sei. É provável. Talvez,
intuitivamente. Eu faço sempre isso, ponho a música de que gosto, é uma
das partes que me dá mais gozo nos filmes. No princípio, não há música,
de todo. É depois, na montagem e na pós-produção, que vou à prateleira
buscar os meus discos. Foi por isso que nunca contratei ninguém — ou só
raras vezes o fiz — para compor uma banda sonora. Faço a minha juke box. E é essencialmente jazz music,
clássica, ou música popular americana de uma certa era. Nada disto é
novo para mim: cresci a gostar de música mais antiga, os meus amigos do
liceu só queriam música pop, estavam-se nas tintas para Charlie Parker
ou para Cole Porter.
Há uma bela mulher em “Um
Dia de Chuva...” que logo se descobre ser uma prostituta: Terry. Não é a
primeira nos seus filmes mas a aparição dela é inesperada. E é por
causa dela que depois Gatsby tem aquele diálogo com a mãe que altera por
completo a perceção que ele tinha da sua própria vida. Porque é que
escreveu esse diálogo?
Senti que a história ia dar a
esse diálogo e que o filme iria florir a partir daí. Achei divertido
seguir as aventuras daqueles dois jovens universitários que julgam ir
passar um bom bocado a Nova Iorque e depois se separam em várias
aventuras, mas era preciso que a experiência florisse, que fosse dar a
algum lado. E essa mudança começa, de facto, quando Gatsby encontra a
prostituta no [bar] Carlisle. Ele estava a ter um mau dia. Não quer
relacionar-se com a família. No fim, talvez aprenda duas ou três coisas
essenciais. E essa mudança é necessária.
Este é também um filme sobre descoberta de identidades. Tem noção do momento em que descobriu a sua?
Eu
lembro-me que, quando andava no liceu, todos os meus amigos tinham de
fazer a grande decisão de escolher o que queriam estudar na
universidade. Uns foram para medicina, outros para direito, outros para
arquitetura, e a mim também me tocava decidir. Foi então que descobri
que tinha algum sentido de humor e que fazia rir os outros. E que a
minha identidade era essa. Isso funcionou para mim a nível profissional
muito rapidamente. Ainda teenager, já
estava a vender o que eu produzia. Soube então que, para o resto da
vida, estaria ligado à comédia, e escrevi, escrevi muito, para a
televisão, rádio, cabarets, até chegar aos filmes.
Alguma vez pensou em quem é a sua audiência?
Boa
pergunta. Já, e nunca tirei grandes conclusões disso. Limito-me a fazer
filmes, eles passam onde passam, se não os quiserem ver, não vejam, foi
sempre assim. Eu não sei quem é a minha audiência. Mas sei que a tenho
tido e que ela tem sido consistente um pouco por todo o mundo. Os meus
filmes são exibidos na China, no Japão, em Marrocos, na Argentina e há
sempre um pequeno público, nada que me faça ganhar uma fortuna, mas ele
existe, em todo o lado... Até nos Estados Unidos, imagine!
Chateia-o que os filmes sejam cada vez menos vistos nas salas?
Isso
é uma tristeza. A sério. Quando cresci, um dos grandes prazeres da vida
era ir ao cinema ver cinema, com a namorada sexta-feira à noite, com a
família aos fins de semana ou só como pretexto para faltar às aulas... O
cinema era tudo. Até aquele fenómeno de fazer fila, de esperar pela
vez, de comprar o bilhete, olhar para quem está à nossa volta e depois
entrar numa grande e escura sala, em frente a um grande ecrã com gente
carismática que nos ia contar uma história. É inigualável. Agora olho
para as minhas filhas a verem filmes nos computadores. Se calhar, nem
são filmes. E penso: caramba, que feliz que eu fui na minha infância
quando ia ao cinema, com a minha lata de pipocas... Esta lenta erosão da
experiência do cinema em sala é uma das coisas que mais me entristecem.
Por
falar em coisas tristes: em meados deste ano, soube-se que nenhuma
editora em Nova Iorque quis publicar a sua autobiografia por assuntos
que estão ligados à sua vida privada. Um absurdo completo: o mais
natural era esperar uma batalha de ofertas. Em que pé estão as coisas?
Mas vai ser publicada. Não quero falar muito disso mas, com sorte, será ainda este ano e mais cedo do que as pessoas pensam.
O que é que descobriu ao escrever sobre si próprio?
Olhe, descobri que não tive uma vida nada excitante por aí além. E ainda bem! Sou muito middle class.
Levanto-me cedo todas as manhãs, faço um bocadinho de exercício antes
do pequeno-almoço, começo a trabalhar, faço uma pequena pausa para
praticar clarinete, depois vou dar uma volta com a minha mulher, vejo
uns amigos. É é só. Nada de muito excitante. Não tenho casa de campo.
Nem casa de praia. Nem barco, muito menos avião. Há uma série de anos,
uma jornalista entrevistou-me e escreveu uma longa história sobre mim
para a “Cosmopolitan”. O seu nome era Francine du Plessix Gray. Era
muito conhecida nos Estados Unidos. E o artigo dela sublinhava: “Sobre
Woody Allen, não há grandes histórias para contar.” E tinha razão.
Gosta de dias de chuva em Nova Iorque?
Eu acho que sabe a resposta a essa pergunta.
E em “Um Dia de Chuva em Nova Iorque”, quem é você?
Diria
que o mais próximo de mim é o Gatsby. Com a mesma idade dele, também já
tinha aquela enorme veia nostálgica dentro de mim.
1 comentário:
Quantas saudades,quantas!!!
Meg
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