Inventário das cores-2-Vermelho
Não associo o vermelho ao inferno ( infernos, pois existem no plural diferentes departamentos e instâncias para os castigos eternos, que o divino Dante encenou na Divina Comédia), essa reminiscência das grutas sombrias onde pintámos as mãos, ou da erupção vulcânica que afundou a Atlântida dos minoicos, não, não associo ao fogo do inferno, nem ao fogo que servia de justificação para as fogueiras que carbonizaram hereges reais e inventados, ou, nessa onda infernal, ao vermelho do fogo dos fornos de Auschwitz. Não é a esses fogos que associo o vermelho que quero esquecer mas não consigo, rio vermelho de sangue que escava a grande sepultura que é o Progresso.
Mas, antes, sem ser pelo contrário, ao vermelho associo os barretes frígios da Grande Revolução de 1790 e aos sapateiros que se fizeram deputados e generais, associo às bandeiras flutuando nas barricadas de 1845-46 que me arrancaram lágrimas juvenis imaginando-as nas páginas imortais de Os Miseráveis, de Victor Hugo, às mesmas bandeiras de novo erguidas pelos communards de 1871, ao fogo dos canhões da Guarda Nacional que defendeu a primeira democracia do mundo, que veio a comover o nosso Santo Antero, o trágico, o bom, e não queria lembrar mas lembro os 20 mil communards fuzilados pela Burguesia raivosa, a mesma Burguesia que não muda nunca, governo do povo pelo povo não isso jamais!, o crítico de O capital, Karl Marx, escreveu a propósito um dos mais proféticos textos que alguma vez se escreveram e o poeta revolucionário Arthur Rimbaud, por seu lado, o tremendo poema O Barco Bêbado com um ritmo e palavras (ouçamo-lo na voz de Léo Ferré!) que ninguém assim se atrevera antes, (...)
Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!
Toda lua é cruel e todo sol, engano:
O amargo amor opiou de ócios minhas horas.
Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!
Da Europa a água que eu quero é só o charco
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,
Um menino tristonho arremesse o seu barco
trémulo como a asa de uma borboleta.
(...) “O amargo amor opiou de ócios as minhas horas”!
Ah!a Burguesia triunfante que não perdoa aos que lhe cospem na mão insidiosa e hipócrita! Porque sim, lembro as cerejas e o Tempo das Cerejas,
Quand nous chanterons le temps des cerises
Et gai rossignol et merle moqueur
Seront tous en fête
Les belles auront la folie en tête
Et les amoureux du soleil au cœur
Quand nous chanterons le temps des cerises
Sifflera bien mieux le merle moqueur
......................................
Quando nós cantarmos o tempo de cerejas
E alegre rouxinol e tordo
Estarão todos em festa
As belas terão folia na mente
E os amantes, sol no coração
Quando nós cantarmos o tempo de cerejas
Assoviará bem melhor o tordo
Mas é bem curto o tempo de cerejas
Onde vamos os dois colhê-las a sonhar
Sobre os brincos
Cerejas de amor, de roupas parelhas
Tombam baixo as folhas em gotas de sangue
Mas é bem curto o tempo de cerejas
Brincos de coral que a gente colhe a sonhar
Quando estiveres no tempo de cerejas
Se tiveres medo das tristezas do amor
Evita as belas
Eu que não temo as penas cruéis
Eu não viverei sem sofrer um dia
Quando estiveres no tempo de cerejas
Também terás as dores do amor
Eu amarei sempre o tempo de cerejas
É daquele tempo que eu guardo no coração
Uma ferida aberta
E a Dama Sorte, tendo me oferecido
Não poderá jamais terminar minha dor
Eu amarei sempre o tempo de cerejas
E a lembrança que guardo no coração
......Na voz de Yves Montand (de que morte foi matada a canção francesa depois de Brel, Montand, Jane Birkin e Serge Gainsbourg, Léo Ferré?),
É à doçura ingénua das papoilas que quero associar, à beira dos caminhos por onde corriam meus pés de petiz no longínquo século trespassado, tão ingénuos como elas que se vergavam impúdicas ao vento penetrante das manhãs das primaveras, toda a maldade dos tirano e seus carrascos ali mesmo no ângulo das esquinas e eu não sabia, mas adiante! Que agora lembro
Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico,
um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Pensamos por associações. Também. Como as cerejas vermelhas na cesta, uma puxa a outra e outra puxa não uma cereja, mas uma ideia rubra, uma rosa de sangue, uma perda , um luto, uma paixão recusada ou um esplendor que se fina num tédio mortal.
Naquele tempo Filipe e eu gostávamos da mesma rapariga. Do alto dos nossos doze anos (ou onze?) tínhamo-nos como grandes homens destemidos, brigávamos os dois meio a brincar só nós dois e muito a sério com a malta do bairro vizinho, sem tréguas e sem motivos, só porque sim, na estrada não alcatroada, batida,com casarões coloniais nas margens,enormes varandas replicadas,oiço-me a dizer “Que sombras esplêndidas!”, como se quisesse omitir a miséria nas traseiras,a avenida das putas. mangais e cajueiros bravos, acácias nos passeios,
Ó rubras acácias das avenidas
Tão acesas nas manhãs enamoradas,
Para que cova da verdade crua,
Vos lançaram,
Que só o vermelho ficou em mim!
Mas, dizia eu, a menina era só uma, e nós éramos dois, qual de nós escolher? Parecia ela matutar,ou talvez não, ambos sem escolhas, o Filipe porventura temia eu, e ela ali ao pé,na sombra da acácia, uma flor ensanguentada aos pés, morena,fruto daquela mistura em que nos tornámos multiétnicos com o racismo na algibeira e um cravo na lapela, os olhos dois carvões à espera de arderem na idade a caminho, ali nos fins das tardes eu a via, menina e moça, bem formosa,ajudava a sua mãe numa banca improvisada com galinhas gordas em cestas de juncos entrelaçados, e dúzias de ovos prateados ao sol,sem “aditivos e conservantes”. A mãe da Clotilde achava-nos graça mas não dava folgas à filha porque era auxiliar preciosa naquela espécie de exploração doméstica do trabalho infantil. O meu pai ofereceu-me por esse tempo uma bicicleta, uma máquina mais sedutora que as sereias de Ulisses, toda ela era tão vibrantemente rubra que ao desvelá-la me apeteceu levá-la pela mão como se empurravam carrinhos de madeira com um cordel na minha infância, e o sol tórrido faiscava sobre ela como um rubi, nos olhos da miúda provavelmente uma tímida chama, todo ufano eu saracoteava sobre a terra dura que os pés dos negros, às centenas, pisavam nas idas e nos regressos, olhando talvez para a minha bicicleta vermelha e pensando sabe-se lá em quê, só Clotilde sorria, o Filipe enciumava-se furioso trepando como um Tarzan ao cajueiro na outra margem, balançando-se com uma mão só, fracassada tentativa, performances dessas fazia ela e talvez melhor, o que nem ele não possuía era uma bicicleta, nem vermelha nem doutra cor...
Filipe não estudou mais que o 5º ano do liceu. Morreu-lhe uma irmão fulminado com tétano e ele ficou meio maluco. Foi para a guerra e saiu dela sem uma perna.Nunca mais o vi.Se calhar foi fazer companhia ao irmãozinho que ele adorava.
Clotilde trabalhou como costureira até morrer de parto sem assistir à independência do seu país.Dizia-se que em miúda fora violada por dois magalas, não sei, naquele tempo tudo era fácil e inculpado, bastava ser branco e soldado.A Clotilde. Nome estranho, tímido eu era tanto que não lhe perguntei porque tinha aquele e não os nomes das mulatas e dos negros comuns. Dei-lhe um primeiro beijo sem ramo de rosas.Uma flor de acácia para a mão que a admitiu. Fiquei lerdo a tremer um bom bocado de tempo, depressa a bicicleta se pôs em fuga com o dono em cima.
Paixão foi mais tarde, testosterona a explodir enfim, denunciada em versos que lembravam demasiado Camões,que eu amara definitivamente na voz tonitruante de um professor que deve agora morar no paraíso porque era católico e era inspirador daquelas criaturas adolescentes que o seu Deus, porém, se esquecera de proteger dos sonhos nefastos, dos sonhos traídos.
Pois eu ao vermelho associo nostalgia.
A minha.
Sempre que um povo se alevanta é o Tempo das Cerejas. Ás vezes leva muito tempo para se alevantar.Às vezes a canção se cala na boca e uma rosa vermelha incendeia o lugar do coração. É muito tempo para quem só tem uma vida para viver.Clotilde, uma vida breve, Filipe, uma vida amputada.Vinte mil a tombar lá do alto do primeiro assalto ao céu, vinte mil rosas vermelhas no lugar do coração. Muitos mil viriam levantar do chão sangrento o testemunho. São esses muitos mil que trago do lado esquerdo. Levo-os comigo para onde fui e vou. A morena Clotilde vai à frente. Leva flores da acácia no caixão.
Nota: as bandeiras vermelhas nasceram em Paris em 1848 na “Primavera dos Povos”empunhadas pelos trabalhadores logo traídos, e esmagados, pela Burguesia que a eles deveu todo o triunfo que ainda hoje permanece.
NOZES PIRES
Torres Vedras, 12/10/202
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