Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.
~ Soneto 18 ~
Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.
Às vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.
Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.
Arrancou
este mês, no Nimas, em Lisboa, um grande ciclo de filmes de Luis Buñuel
que depois se prolonga, em várias cidades, em vagas a durar, pelo
menos, até ao fim do ano. Visita ao maior cineasta ibérico do século XX,
iconoclasta, anticlerical, surrealista e tudo
textos Jorge Leitão Ramos
Dezembro
de 1960. Luis Buñuel, um dos mais célebres exilados artistas espanhóis,
há uma década naturalizado cidadão mexicano, pede em Paris um visto
para entrar em Espanha. Aquele que fora, em França, espião do Governo
republicano nos anos da guerra civil, estaria disposto a pactuar com o
regime ditatorial de Francisco Franco? Assim parecia e não poucos
intelectuais de esquerda no exílio vituperaram a atitude de Buñuel,
ainda mais quando souberam que ele iria fazer um filme no seu país
natal. O caudillo estava tão interessado em
bem acolher o cineasta que quando foi apresentado às autoridades o
argumento de “Viridiana”, o mais que fizeram foi sugerir,
respeitosamente, algumas alterações que Buñuel seguiu, em alguns casos
fazendo piorar as leituras possíveis. Em traços gerais o filme era a
história de uma postulante, prestes a tomar votos como freira, que vai
por uma temporada para casa de um velho tio viúvo que dela se enamora e
quer a todo o custo mantê-la perto e para ele. Desencadeada uma
tragédia, a protagonista tenta a radical caridade como destino,
acolhendo pobres e destituídos da sociedade, boa obra que não dará bons
frutos. Concluído mesmo nas vésperas do Festival de Cannes de 1961,
“Viridiana” será aí apresentado sob pavilhão espanhol, conquistando a
Palma de Ouro que um feliz director-geral de Franco foi receber. Parece
que não tinha visto o filme, Buñuel, retido em Paris, nem queria
acreditar quando soube. Dois dias volvidos, o “L’Osservatore Romano”,
órgão oficial do Vaticano, qualificava o filme como blasfemo e
sacrílego, o que em Madrid caiu como um terramoto. Além da demissão
sumária do alto funcionário governamental que deixara que um tal filme
ostentasse a bandeira espanhola no certame francês, todas as cópias e o
próprio negativo foram sequestrados e destruídos, o filme sumariamente
proibido — tal como a sua exportação. Mas o produtor mexicano que tinha
estado na base do financiamento, Gustavo Alatriste, um homem de negócios
que gostava de atrizes, tivera a prudência de albergar em Paris um
duplicado do negativo. O filme acabaria estreado um pouco por todo o
mundo (em Portugal, nem pensar...), grangeando um considerável sucesso.
“Viridiana” teve o condão de escancarar as portas dos produtores
franceses ao cinema de Buñuel. O cineasta ainda faria mais dois filmes
no México, sempre com Alatriste (e com a atriz Silvia Pinal, sua mulher
que já protagonizara “Viridiana”), mas seria em França que basearia o
resto da sua obra e o cume da sua fama nos últimos anos da sua carreira
(com o Leão de Ouro de Veneza, em 1967, duas nomeações para os Óscares
nos anos 70, como argumentista, e o galardão de Melhor Filme em Língua
Estrangeira para “O Charme Discreto da Burguesia“). Todavia, sempre
manteve residência na Cidade do México onde, aliás, viria a falecer em
1983.
Auge Luis Buñuel em 1954, durante o seu período mexicano
UM CINEASTA MEXICANO
Buñuel
estabelecera-se no México em 1945 depois de um atribulado périplo
americano onde chegara, em 1939, como delegado da República Espanhola
para ser conselheiro em filmes que Hollywood fazia sobre Espanha, tarefa
que nunca cumpriu deveras já que a entrada de Franco em Madrid ditou o
termo da Guerra Civil e condenou o cineasta ao exílio. Entre Los Angeles
e Nova Iorque teve vários empregos, passou dificuldades, tentou a sua
sorte em projetos que nunca se concretizariam. Conotado com a esquerda,
provavelmente criptocomunista, embora o próprio sempre afirmasse que
nunca se filiara no partido, nem em Madrid nem em Paris, acabaria olhado
de soslaio, para dizer o mínimo, quando um livro de Dalí o denunciou
publicamente como marxista. Buñuel não filmava desde 1932, desde um
documentário em forma de grito (“Las Hurdes”), embora, em 1935/36,
tivesse trabalhado como produtor de filmes comerciais em Espanha e há
quem diga e jure que também (pelo menos) colaborado na sua realização,
embora com o nome nunca creditado nos genéricos. O cineasta, cuja
nomeada continuava a assentar nos parisienses dois rasgos polémicos e
surrealistas (“Un Chien Andalou”, 1929; “L’Âge d’Or”, 1930) precisava de
fazer cinema com urgência, viver da boa vontade e dos empréstimos dos
amigos não era sustentável. O país para onde se deslocara, por seu lado,
tinha uma bem estruturada indústria cinematográfica, com um grande
mercado interno e de exportação e o apoio do forte vizinho
norte-americano. Tinha estúdios, tinha grande técnicos (como o diretor
de fotografia Gabriel Figueroa), tinha vedetas de impacto internacional
(como Maria Félix ou Cantinflas). Buñuel não podia esperar hipóteses
vanguardistas e estava disposto a enfileirar na indústria, a fazer
filmes comerciais, a ganhar a vida, desde que, como declarou nas suas
memórias, não filmasse nada que fosse contrário às suas convicções, à
sua moral pessoal. Assim aconteceu, num labor que se tornou continuado,
nas condições que havia. As filmagens seriam sempre em prazos espartanos
— entre dezoito e vinte e quatro dias — e, nas suas próprias palavras,
ter-lhe-á acontecido “aceitar temas que não tinha escolhido e trabalhado
com atores muito mal ajustados aos papéis”. Mas serão esses vinte
filmes que fez no México que viriam a constituir o carne e o coração da
sua obra, na época em geral quase desconhecidos internacionalmente, mas
que foram circulando e sendo reavaliados, às vezes com espanto do
próprio realizador que pouco considerava a maior parte deles. Fez de
tudo um pouco, mas, sobretudo, melodramas que cumpriam os cânones do
comércio e onde inoculou muitos dos seus fantasmas e obsessões, o ciúme,
a morte, a podolatria, o machismo, pinceladas oníricas, o sexo como
coisa secreta, implícita, não mais que sussurrada, uma conturbado
relação com o catolicismo que oscilava entre um respeito fundo pelo seu
quadro ético e um radical anticlericalismo que nunca o largaria. E
também uma contraditória posição sobre a diferenciação de classes:
implacável em relação aos possidentes e às injustiças com que acederam
ou se mantêm nesse lugar, o olhar de Buñuel nem por isso se irmanaria
com o lado de baixo da humanidade, com a sua brutalidade simples que os
filmes retratam sem qualquer espécie de complacência. Veja-se a
crueldade dos miseráveis de “Los Olvidados” ou a desgovernada violência
“El Bruto”. No cinema de Luis Buñuel a luta de classes nunca é uma coisa
épica, é sempre maculada pela sordidez. E, todavia, o lado ‘sujo’ da
realidade é, a um tempo, escancarado e refreado. Os filmes mexicanos de
Buñuel transpiram desejo por todos os lados, não recuam perante nenhuma
insinuação, e, todavia, no que a imagem explicitamente mostra, são
reprimidos, disciplinados, como o pode ser quem esteve dez anos sob a
educação de padres jesuítas, sob a regra de Santo Inácio de Loyola.
UM SEÑORITO ARAGONÊS
Buñuel
não nasceu rebelde, nem herético, nem, evidentemente, surrealista.
Nasceu rico, primogénito de sete irmãos, em Calanda, pequena povoação a
uma centena de quilómetros de Saragoça, no mesmo ano em que nasceu o
século XX. O pai fizera fortuna em Cuba e, de regresso a Aragão,
casara-se com a filha de um proprietário rural que era a mulher mais
bonita da terra. Na casa da sua adolescência havia cinco criados e,
quando ia para as aulas de violino, um deles levava a caixa com o
instrumento do jovem Luis. John Baxter, biógrafo de Buñuel, afirma que o
mais que o pai podia carregar em público seria uma lata de caviar. E
uma arma de fogo, paixão que o filho havia de herdar. Para tudo o resto,
havia criados. Entre os sete e os dezasseis anos Buñuel estudou no
jesuíta Colégio del Salvador. Saiu de lá “ateu, graças a Deus”. Mas o
catolicismo seria, para sempre, uma das traves da sua personalidade e,
mais tarde, do seu cinema.
Era um homem ciumento, autoritário, controlava o dinheiro e as decisões importantes dentro de casa
Foi
a música a primeira inclinação do futuro cineasta; depois anunciou ao
pai que queria estudar entomologia. Acabou por ir cursar Agronomia, em
Madrid, depois Engenharia, acabou diplomando-se em Filosofia. Mas o mais
importante que lhe aconteceu na velha e então muito provinciana capital
de Espanha foi o contacto com uma brilhante geração de intelectuais,
tornou-se amigo de Albertí, de Lorca, de Dalí, de Manuel de Falla. Ir
para Paris, centro do mundo nos anos 20, foi quase uma evolução natural.
É aí que decide que quer ser cineasta, fascinado por “A Morte Cansada”,
de Fritz Lang. O pai, entretanto, morrera, e é a mãe que fica a gerir a
herança e a financiar o jovem Buñuel, com uma fixa mensalidade que lhe
permite viver em Paris. Do teatro ao cinema, da escrita à encenação, faz
um caminho que, no fim da década, desembocará num filme surrealista,
engendrado em parceria com Dalí, financiado pela mãe: “Un Chien
Andalou”. Um sucesso instantâneo — oito meses em cartaz afirma o
cineasta nas suas memórias — e o aplauso ditirâmbico dos parceiros
parisienses. André Breton, o papa do Movimento Surrealista, diria do
filme que era “belo como o encontro dum guarda-chuva e de um cão numa
mesa de autópsia”. Famoso de um dia para o outro, as portas abriram-se
para a produção do filme seguinte, “L’Âge d’Or”. A fama continuou a
favorecer Buñuel, mas o sucesso não. Proibido pelas autoridades, na
sequência do escândalo público que foi a sua estreia, o filme só viria a
ter distribuição comercial meio século depois — e cimentou, para
sempre, a aura de Buñuel como absolutamente iconoclasta. Todavia, o
provocador que o mundo veria nele, o homem que tão bem figurou as
impotências na vida, as vontades que não se cumprem, como orgasmos
continuamente adiados numa tensão que não amaina, era um homem bastante
pacato, quase monacal. Deitava-se cedo, casou-se uma única vez, viveu
com essa mulher durante quase cinquenta anos — e, defendem os amigos
íntimos, foi-lhe fiel. Bebia cinco dry-martinis por
dia, a horas certas, e algum vinho e se dedica um capítulo inteiro das
suas memórias aos “prazeres daqui de baixo” (com uma pormenorizada
receita para preparar o seu cocktail preferido),
em que o tabaco aparecia como central, nele se confessa um tímido no
que respeita às mulheres e, como membro de uma geração de castelhanos a
quem o catolicismo moldara, dotada de um desejo sexual que era talvez o
mais forte do mundo. Todavia, escritas as memórias já em idade avançada,
admite ter assistido ao “desaparecimento progressivo e, por fim, total
do [seu] instinto sexual, mesmo em sonho”. E remata: “Estou muito
satisfeito por tal facto. É como se finalmente me tivesse visto livre de
um tirano.” Era um homem ciumento, autoritário no interior da sua
família, não gostava de lisonjas, controlava o dinheiro e as decisões
importantes dentro de casa, talvez não muito diferente dos señoritos castelhanos
de “Tristana” ou de “Viridiana” ou do paranoico de “Él”. Tinha,
todavia, sobre eles, uma ínclita vantagem, um humor sem medida. O humor
com que se despede de nós nas suas memórias, imaginando a própria morte e
um desejo para depois que não resisto a citar.
Preferido “Él”, a história de um ciumento paranoico, era o filme que Buñuel mais amava
“Próximo
do meu último suspiro, imagino bastantes vezes uma última partida.
Convoco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu.
Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um
padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos,
confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a
extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro.
Mas será que encontraremos ainda força para gracejar nesse momento?
Um
desgosto: não saber o que se vai passar, abandonar o mundo em pleno
movimento, como no meio dum folhetim. Acho que esta curiosidade do
pós-morte não existia noutros tempos, ou existia menos, num mundo que
quase não mudava. Uma confissão: apesar de todo o meu ódio pela
informação, gostaria de me poder levantar entre os mortos, de dez em dez
anos, ir até a um quiosque e comprar alguns jornais. Não pediria mais
nada. Com eles debaixo do braço, pálido, roçando as paredes, voltaria ao
cemitério e leria os desastres do mundo, antes de voltar a adormecer
satisfeito, abrigado tranquilamente pelo túmulo.”
Sequências “Un Chien Andalou” e “Belle de Jour”: o alfa e o ómega do cinema de Buñuel
IMAGENS MATRICIAIS
Há
duas sequências que assombram/iluminam todo o cinema de Luis Buñuel. A
primeira é a inaugural abertura do seu primeiro filme, ainda mudo, o
vanguardista “Un Chien Andalou”, de 1929. Um homem — o próprio Buñuel —
afia uma navalha. Uma mulher, à varanda, contempla a noite. O homem
aproxima-se dela, por trás, segura a arca orbital do olho esquerdo com
dois dedos, expondo o globo ocular. No céu há uma lua, muito branca,
atravessada pela faixa negra de uma nuvem. A navalha corta um olho. É,
talvez, a mais terrífica imagem em toda a História do Cinema, cem vezes
vista, nunca o impacto diminui. Não importa que saibamos que se trata de
um olho de vaca, evidentemente morta. É sempre o nosso olho que a
lâmina de Buñuel decepa. Posso assegurar, por experiência própria.
A
segunda sequência matricial da obra buñueliana pertence a um filme
muito posterior, “Belle de Jour”, de 1967. A cena decorre no bordel de
Madame Anaïs onde Séverine, uma senhora casada da alta burguesia, se
prostitui, às tardes, talvez para experimentar rêveries
de submissão que a sua situação conjugal não cultiva. Um dia
apresenta-se um cliente oriental, possante, a falar uma língua tão
ininteligível quanto inidentificável. Para explicar o que quer traz uma
caixinha com incrustações que abre e de onde sai um zumbido. Uma
primeira rapariga recusa, horripilada. Séverine acede. Não vemos o que
se passa, ficamos de fora da porta fechada do quarto. No fim da função, o
cliente sai, uma velha criada entra no quarto em grande desalinho, há
mesmo um candeeiro de cabeceira tombado na refrega. Séverine está
deitada na cama, de barriga para baixo, o rosto afundado nos lençóis, a
cabeça na nossa direção. A criada começa a arrumar e comenta, comísera:
“Às vezes, deve ser muito penoso.” Séverine ergue a cabeça e murmura: “O
que é que tu sabes disso?” E sorri, entre o saciado e o irónico: é um
raio que se despenha sobre o espectador. E não nos deixa dúvidas; e
deixa-nos as dúvidas todas.
Crueldade, absurdo,
desejo, sexo — e tudo moldado por alusões, por fetiches, por imagens a
que havemos de querer atribuir significados, estimulando o que de mais
secreto, às vezes inconfessável, nos habita. E, todavia, sempre com a
consciência de que não conseguiremos esgotar os significados, conhecer a
verdade, porque, no fundo de nós, sabemos que tal coisa não existe. O
cinema de Buñuel é obra aberta a todas as incursões e mesmo às
profanações do nosso olhar e do nosso entendimento. / J.L.R.
Jornalista,
compositor, escritor, produtor musical, o consagrado Nelson Motta
aceitou o repto do Expresso e escreve sobre João Gilberto, um dos pais
da bossa nova
Assim
como qualquer norte-americano se lembra de como e onde estava ao saber
do assassínio do Presidente John Kennedy, gerações de brasileiros jamais
se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando ‘Chega
de Saudade’ no rádio, em 1958. Muitos grandes mestres como Chico
Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gal Costa e Gilberto
Gil decidiram fazer música depois de ouvir a histórica gravação, que
lançava a bossa nova e se tornaria um marco da vida cultural brasileira.
No
centro de tudo um violão tocando um ritmo que ninguém jamais ouvira,
que se parecia com o samba, mas não era o samba tradicional, era um
balanço irresistível feito de acordes dissonantes e sequências
harmónicas surpreendentes, envolvendo uma voz suave e doce, com
impecável afinação e fraseado muito diferente das “grandes vozes” da era
do rádio, ainda na tradição operística, mesmo depois da invenção do
microfone.
Neste sentido, João Gilberto é o
primeiro cantor tecnológico, ao usar o microfone não apenas para
aumentar o volume da voz mas para permitir-lhe concentrar no que
realmente interessa, a melodia, o ritmo, as harmonias, com um mínimo de
volume e um máximo de invenção e precisão.
Não por
acaso, o histórico ‘Chega de Saudade’ de João Gilberto, foi ouvido nos
primeiros rádios de pilha que chegavam ao Brasil como a novidade
tecnológica do momento.
Esta gravação é o grande
marco divisório da música brasileira. Depois dela as músicas de Antonio
Carlos Jobim e Vinicius de Moraes ganharam o mundo e, com João Gilberto,
Stan Getz e Astrud Gilberto, quatro Grammys em 1964. ‘The Girl From
Ipanema’ se tornava um sucesso mundial e João um culto entre músicos
sofisticados dos mais diversos estilos.
Como Bob
Dylan, que em seu álbum “Lay, Lady, Lay” (1971), confessa que gostaria
de cantar tão bem quanto o “soft brazilian singer”. Dylan, conhecido por
sua voz nasalada e canto cru, realmente melhorou muito como cantor
nesse álbum.
A partir de João Gilberto e do filme
“Black Orpheus”, em que ele cantava ‘Felicidade’, a bossa nova foi
adotada pelos grandes músicos de jazz — como Miles Davis, Bill Evans,
Stan Getz, Gil Evans e Charlie Byrd — e consagrada pelas críticas mais
exigentes.
Ao longo dos anos, na trilha luminosa
aberta por João Gilberto, a música brasileira se multiplicou em ritmos e
estilos, as gerações se sucederam, mas a sua influência só fez
aumentar. No Brasil, ninguém questiona que João Gilberto é o artista
mais influente da música brasileira.
Acompanho João
Gilberto desde o início — afinal, sua gravação de ‘Chega de Saudade’
mudou minha vida — e tive o privilégio e a sorte de o ouvir em Roma,
Nova Iorque, Paris, Montreux, Salvador, São Paulo, Miami e Rio de
Janeiro várias vezes ao longo desses quase 60 anos de estrada. João
fazia raros concertos por ano, às vezes nenhum, e onde ia esgotava as
lotações com meses de antecedência e era aplaudido por públicos de
diversas gerações e nacionalidades, todos fascinados com seu estilo
elegante de sintetizar em sua voz e nas cordas do seu violão o coração
pulsante de um país que ama a música e o ritmo.
Em
1988, eu estava pela primeira vez no Japão, como diretor da tournée de
Gal Costa por diversas cidades. Encantado com a suavidade e elegância
das pessoas e das paisagens, com a discrição e o respeito pela música
que João tanto gosta, em Fukuoka, telefonei-lhe no Rio de Janeiro,
falando do Japão, de tudo que ele gosta. E dizendo que ele tinha de um
dia vir fazer show no Japão, que ele ia adorar a atmosfera, o público, a
precisão tecnológica, os templos antigos. Zen-baiano, ele respondeu
apenas:
“Eu sou daí.”
Em 2004,
finalmente João foi ao Japão e recebeu uma das maiores consagrações de
sua vida, que resultou num belo CD gravado ao vivo em Tóquio.
João e nós
Naquela
noite, naquele terraço sobre Copacabana, hipnotizado, vi e ouvi João
Gilberto de perto pela primeira vez. Até ouvir ‘Chega de Saudade’ com
João Gilberto eu não gostava de música. Não me interessava. Em 1958,
tudo o que se ouvia no rádio e nas poucas TV a preto e branco era chato —
para adolescentes de Copacabana como nós, jovens filhos da classe média
na alvorada dos Anos JFK, da modernização do Brasil. Depois de João foi
como se alguém acendesse a luz e aumentasse o som (ou, melhor,
diminuísse), tornando a música e a letra mais leves, mais swingadas,
mais elegantes e modernas. Tudo o que ele cantava parecia novo, com sua
nova batida, inconfundível, síntese do samba e das marchinhas. Sua
música era a trilha sonora perfeita para o estilo de vida alegre e
liberal do Rio de Janeiro que se modernizava. João Gilberto era nosso
pastor e nada nos faltaria. Foi ele quem inspirou e levou a minha
geração (Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Francis, João Bosco, Roberto e
Erasmo, Tim Maia e até mesmo Jorge Benjor) a mergulhar num universo
musical que já não era o da Rádio Nacional, tinha um novo sol, mais
brilhante, mais discretamente brilhante, com um alto teor de magnetismo e
radioatividade.
Gerações de brasileiros jamais se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando no rádio
Todos
os que um dia foram tocados por sua música sabem (como testemunharam
Miles Davis, Bob Dylan e Madonna, e tardiamente Eric Clapton), como
qualquer músico brasileiro de qualquer estilo ou geração sabe, que
depois de ouvi-lo tudo soa (mesmo os melhores sons) mais barulhento,
excessivo, áspero. Não que seja pior, mas certamente é menos suave,
macio e delicado. Até Chet Baker. Que mágica fez este homem! Não é
mágica, é génio e predestinação. De uma pequena cidade do interior da
Bahia para — com sua pequena voz e grande violão — mudar a música do
planeta, como o genial criador da maior contribuição cultural (uma das
raras) que o Brasil deu ao mundo nos tempos modernos, conhecida como
bossa nova, mas na verdade a música original de João Gilberto, sua
revisão permanente dos grandes mestres, desenvolvida por Antonio Carlos
Jobim, Vinicius de Morais e seus seguidores de várias gerações até hoje,
no que se chama de MPB.
Não há, dificilmente
haverá artista mais influente na história da música brasileira moderna.
Sim, também Tom Jobim, mas ninguém influenciou mais Tom Jobim do que
João Gilberto... Ninguém cantou Antonio melhor do que João. Glauber
Rocha, que amava e respeitava João Gilberto, atribuía ao seu estilo
intimista a “feminização” da música brasileira moderna: depois dele
todos os homens passaram a cantar mais suavemente. Como Chico, Caetano,
Gil, Roberto Carlos e todos. Em contrapartida, segundo Glauber, depois
dele as mulheres passaram a cantar com mais força e “virilidade”, como
Elis Regina, Maria Bethânia, Simone e uma sucessão de cantoras vigorosas
e dramáticas, de vozes potentes e grande expressividade. Glauber
adorava uma polémica, João gostava de harmonia e silêncio. Dois baianos
porretas, Apolo e Dionísio na Terra do Som.
Em João
a revolução é permanente, like a rolling stone. A prova, o seu último
disco, “Voz e violão”, vencedor do Grammy, com suas interpretações
definitivas a ‘Desafinado’ e ‘Chega de Saudade’, 40 anos depois e, por
qualquer critério ou conceito, musicalmente superiores às históricas
versões originais, que serão sempre históricas, mas foram superadas pelo
génio criador de uma obra em movimento permanente. É um espanto. Suave,
mas espanto. Não interessam muito as canções que ele canta, mas como as
canta, como Maria Callas, que gravou muitas versões diferentes de suas
árias preferidas. Ou como Sinatra. Se bem que aos 70 anos Sinatra já não
fazia novas versões melhores de suas músicas de sempre. João é
diferente, sua luz é seu mistério, poucos personagens da nossa história
musical terão um folclore mais abundante em volta de seu mito, a maioria
exagerados e fantasiosos, a menor parte atitudes ou palavras de João
mal compreendidas. Todos que o conhecem sabem: é um dos homens mais
inteligentes de que se tem notícia. Sim, como a sua música, a sua
inteligência e o seu humor são especiais, e seu estilo de vida,
recolhido e em trabalho permanente de aperfeiçoamento da sua obra, é
muito especial, não permite especulações e estimula o mistério. Então o
melhor presente é deixar o homem em paz.
Mas nem
todas as palavras já escritas sobre João Gilberto, por alguns dos
maiores e mais influentes artistas brasileiros de diversos campos, valem
juntas ouvir apenas uma de suas músicas: por exemplo, o ‘Desafinado
2000’ ( onde ele nem fala em bossa nova...). Você vai entender tudo.
Silêncio. Som na caixa. Bem baixinho.
João e eu
Conheci
João Gilberto numa noite de 1960, no apartamento dos meus pais, em
Copacabana, quando, levado por Dori Caymmi e diante de poucas
testemunhas, João nos visitou. Cantou, tocou e conversou muito com meu
pai, que o admirava tanto quanto eu e minha mãe e dizia que as palavras
que saíam da boca de João eram como pedrinhas brutas e agudas que vinham
rolando desde a nascente do rio até se tornarem seixos lisos e roliços
antes de chegarem ao mar.
Depois de oito anos nos
Estados Unidos e no México, em 1970 João Gilberto voltou ao Rio de
Janeiro, contratado por Ricardo Amaral para fazer um show numa
cervejaria recém-inaugurada em Botafogo, o Canecão. E daria, pela
primeira vez na vida, uma entrevista para a televisão. Como repórter da
TV-Globo e com o melhor cinegrafista da casa, Roberto Padula, cheguei à
cobertura de Amaral, no Leblon, no meio da tarde. João já estava lá,
animado e sorridente, feliz em reencontrar a beleza do Rio.
No
terraço, na linda luz da tarde carioca, conversámos por dez minutos
diante da câmara de Padula e dos sorrisos de Amaral. Sobre música,
naturalmente. João respondia com simpatia, mas com pouco mais que
monossílabos, mas não importava: era o suficiente para mostrar ao Brasil
que o mito falava. Padula filmava a preto e branco.
Conheci João numa noite de 1960, no apartamento dos meus pais, em Copacabana. Cantou, tocou e conversou muito
Com
o coração aos pulos voltei correndo para a TV-Globo para revelar e
editar o material na moviola, a tempo de entrar no “Jornal Nacional”.
Roendo as unhas esperei à porta do laboratório, ansioso para ver o filme
ainda húmido da revelação.
Quando o laboratorista
me entregou a lata e disse pesaroso que, por um defeito na câmara, o
material estava inutilizado, pensei que era brincadeira. Mas era
verdade: no filme inteiro não havia nenhuma imagem impressa e nenhum som
gravado.
João se divertiu muito quando lhe contei a
história e, no dia seguinte, passou a tarde e a noite no Canecão,
testando o som. A cervejaria era pouco mais que um galpão de cimento e
zinco, com péssima acústica e um sistema de som precário, que
reverberava por toda a casa. De madrugada, João desistiu. Cancelou o
show e voou de volta a Nova Iorque.
No final de
1988, eu passava por uma devastadora rebordosa amorosa com o fim de um
romance, sofria como um condenado dia e noite sem descanso, e conversava
com João pelo telefone falando das minhas mágoas de amor.
Estava triste e sozinho em casa, um dia antes da véspera de Natal, quando o telefone tocou.
Era João Gilberto, me convidando a visitá-lo em seu apartamento no alto
do prédio do Rio Design Center, no Leblon, a algumas quadras de minha
casa.
À noite, cheguei à hora marcada mas, antes
que eu tocasse à campainha, ele abriu a porta. Estava de banho tomado,
de terno e gravata e com a caixa do violão na mão, como se fosse para um
show.
“Não vamos ficar aqui”, disse
misteriosamente sem explicar porquê, “vamos para sua casa”. Pegámos o
elevador e descemos para a garagem, onde João colocou o violão no
porta-malas e assumiu o volante de um Monza verde metálico, que jamais
imaginei que ele tivesse. Quando chegámos à praia, me lembrei de uma das
grandes “lendas e mistérios de João Gilberto”, contada por Galvão dos
Novos Baianos, e senti um frio na barriga. Diz a lenda que João saiu de
carro com Galvão de madrugada pela praia de Ipanema e que foi cruzando
todos os sinais vermelhos, sem diminuir a marcha, sem olhar, conversando
alegremente com absoluta tranquilidade. Mas, pouco adiante, num sinal
aberto para ele, freiou inesperadamente — justo a tempo de escapar de um
carro que cruzou o sinal vermelho em alta velocidade. Por maior fé que
tivesse em João eu não estava disposto a experimentar tanta magia. Mas
João dirigia devagar, admirando o mar noturno, ouvindo fitas de
conjuntos vocais dos anos 40 e parando em todos os sinais vermelhos, do
Leblon ao Arpoador, onde estacionámos e descemos para tomar água de
coco, comer milho cozido e conversar.
Quando
chegámos ao meu apartamento, diante do mar de Ipanema, João sentou-se de
frente para mim, me deu o violão e pediu que eu tocasse para ele. Eu
toquei medroso e ele sorriu amoroso, pegou o violão com delicadeza,
ficou um tempo em silêncio e cantou duas horas para mim, a sério, como
se estivesse em um concerto.