Jornalista,
compositor, escritor, produtor musical, o consagrado Nelson Motta
aceitou o repto do Expresso e escreve sobre João Gilberto, um dos pais
da bossa nova
Assim
como qualquer norte-americano se lembra de como e onde estava ao saber
do assassínio do Presidente John Kennedy, gerações de brasileiros jamais
se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando ‘Chega
de Saudade’ no rádio, em 1958. Muitos grandes mestres como Chico
Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gal Costa e Gilberto
Gil decidiram fazer música depois de ouvir a histórica gravação, que
lançava a bossa nova e se tornaria um marco da vida cultural brasileira.
No
centro de tudo um violão tocando um ritmo que ninguém jamais ouvira,
que se parecia com o samba, mas não era o samba tradicional, era um
balanço irresistível feito de acordes dissonantes e sequências
harmónicas surpreendentes, envolvendo uma voz suave e doce, com
impecável afinação e fraseado muito diferente das “grandes vozes” da era
do rádio, ainda na tradição operística, mesmo depois da invenção do
microfone.
Neste sentido, João Gilberto é o
primeiro cantor tecnológico, ao usar o microfone não apenas para
aumentar o volume da voz mas para permitir-lhe concentrar no que
realmente interessa, a melodia, o ritmo, as harmonias, com um mínimo de
volume e um máximo de invenção e precisão.
Não por
acaso, o histórico ‘Chega de Saudade’ de João Gilberto, foi ouvido nos
primeiros rádios de pilha que chegavam ao Brasil como a novidade
tecnológica do momento.
Esta gravação é o grande
marco divisório da música brasileira. Depois dela as músicas de Antonio
Carlos Jobim e Vinicius de Moraes ganharam o mundo e, com João Gilberto,
Stan Getz e Astrud Gilberto, quatro Grammys em 1964. ‘The Girl From
Ipanema’ se tornava um sucesso mundial e João um culto entre músicos
sofisticados dos mais diversos estilos.
Como Bob
Dylan, que em seu álbum “Lay, Lady, Lay” (1971), confessa que gostaria
de cantar tão bem quanto o “soft brazilian singer”. Dylan, conhecido por
sua voz nasalada e canto cru, realmente melhorou muito como cantor
nesse álbum.
A partir de João Gilberto e do filme
“Black Orpheus”, em que ele cantava ‘Felicidade’, a bossa nova foi
adotada pelos grandes músicos de jazz — como Miles Davis, Bill Evans,
Stan Getz, Gil Evans e Charlie Byrd — e consagrada pelas críticas mais
exigentes.
Ao longo dos anos, na trilha luminosa
aberta por João Gilberto, a música brasileira se multiplicou em ritmos e
estilos, as gerações se sucederam, mas a sua influência só fez
aumentar. No Brasil, ninguém questiona que João Gilberto é o artista
mais influente da música brasileira.
Acompanho João
Gilberto desde o início — afinal, sua gravação de ‘Chega de Saudade’
mudou minha vida — e tive o privilégio e a sorte de o ouvir em Roma,
Nova Iorque, Paris, Montreux, Salvador, São Paulo, Miami e Rio de
Janeiro várias vezes ao longo desses quase 60 anos de estrada. João
fazia raros concertos por ano, às vezes nenhum, e onde ia esgotava as
lotações com meses de antecedência e era aplaudido por públicos de
diversas gerações e nacionalidades, todos fascinados com seu estilo
elegante de sintetizar em sua voz e nas cordas do seu violão o coração
pulsante de um país que ama a música e o ritmo.
Em
1988, eu estava pela primeira vez no Japão, como diretor da tournée de
Gal Costa por diversas cidades. Encantado com a suavidade e elegância
das pessoas e das paisagens, com a discrição e o respeito pela música
que João tanto gosta, em Fukuoka, telefonei-lhe no Rio de Janeiro,
falando do Japão, de tudo que ele gosta. E dizendo que ele tinha de um
dia vir fazer show no Japão, que ele ia adorar a atmosfera, o público, a
precisão tecnológica, os templos antigos. Zen-baiano, ele respondeu
apenas:
“Eu sou daí.”
Em 2004,
finalmente João foi ao Japão e recebeu uma das maiores consagrações de
sua vida, que resultou num belo CD gravado ao vivo em Tóquio.
João e nós
Naquela
noite, naquele terraço sobre Copacabana, hipnotizado, vi e ouvi João
Gilberto de perto pela primeira vez. Até ouvir ‘Chega de Saudade’ com
João Gilberto eu não gostava de música. Não me interessava. Em 1958,
tudo o que se ouvia no rádio e nas poucas TV a preto e branco era chato —
para adolescentes de Copacabana como nós, jovens filhos da classe média
na alvorada dos Anos JFK, da modernização do Brasil. Depois de João foi
como se alguém acendesse a luz e aumentasse o som (ou, melhor,
diminuísse), tornando a música e a letra mais leves, mais swingadas,
mais elegantes e modernas. Tudo o que ele cantava parecia novo, com sua
nova batida, inconfundível, síntese do samba e das marchinhas. Sua
música era a trilha sonora perfeita para o estilo de vida alegre e
liberal do Rio de Janeiro que se modernizava. João Gilberto era nosso
pastor e nada nos faltaria. Foi ele quem inspirou e levou a minha
geração (Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Francis, João Bosco, Roberto e
Erasmo, Tim Maia e até mesmo Jorge Benjor) a mergulhar num universo
musical que já não era o da Rádio Nacional, tinha um novo sol, mais
brilhante, mais discretamente brilhante, com um alto teor de magnetismo e
radioatividade.
Gerações de brasileiros jamais se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando no rádio
Todos
os que um dia foram tocados por sua música sabem (como testemunharam
Miles Davis, Bob Dylan e Madonna, e tardiamente Eric Clapton), como
qualquer músico brasileiro de qualquer estilo ou geração sabe, que
depois de ouvi-lo tudo soa (mesmo os melhores sons) mais barulhento,
excessivo, áspero. Não que seja pior, mas certamente é menos suave,
macio e delicado. Até Chet Baker. Que mágica fez este homem! Não é
mágica, é génio e predestinação. De uma pequena cidade do interior da
Bahia para — com sua pequena voz e grande violão — mudar a música do
planeta, como o genial criador da maior contribuição cultural (uma das
raras) que o Brasil deu ao mundo nos tempos modernos, conhecida como
bossa nova, mas na verdade a música original de João Gilberto, sua
revisão permanente dos grandes mestres, desenvolvida por Antonio Carlos
Jobim, Vinicius de Morais e seus seguidores de várias gerações até hoje,
no que se chama de MPB.
Não há, dificilmente
haverá artista mais influente na história da música brasileira moderna.
Sim, também Tom Jobim, mas ninguém influenciou mais Tom Jobim do que
João Gilberto... Ninguém cantou Antonio melhor do que João. Glauber
Rocha, que amava e respeitava João Gilberto, atribuía ao seu estilo
intimista a “feminização” da música brasileira moderna: depois dele
todos os homens passaram a cantar mais suavemente. Como Chico, Caetano,
Gil, Roberto Carlos e todos. Em contrapartida, segundo Glauber, depois
dele as mulheres passaram a cantar com mais força e “virilidade”, como
Elis Regina, Maria Bethânia, Simone e uma sucessão de cantoras vigorosas
e dramáticas, de vozes potentes e grande expressividade. Glauber
adorava uma polémica, João gostava de harmonia e silêncio. Dois baianos
porretas, Apolo e Dionísio na Terra do Som.
Em João
a revolução é permanente, like a rolling stone. A prova, o seu último
disco, “Voz e violão”, vencedor do Grammy, com suas interpretações
definitivas a ‘Desafinado’ e ‘Chega de Saudade’, 40 anos depois e, por
qualquer critério ou conceito, musicalmente superiores às históricas
versões originais, que serão sempre históricas, mas foram superadas pelo
génio criador de uma obra em movimento permanente. É um espanto. Suave,
mas espanto. Não interessam muito as canções que ele canta, mas como as
canta, como Maria Callas, que gravou muitas versões diferentes de suas
árias preferidas. Ou como Sinatra. Se bem que aos 70 anos Sinatra já não
fazia novas versões melhores de suas músicas de sempre. João é
diferente, sua luz é seu mistério, poucos personagens da nossa história
musical terão um folclore mais abundante em volta de seu mito, a maioria
exagerados e fantasiosos, a menor parte atitudes ou palavras de João
mal compreendidas. Todos que o conhecem sabem: é um dos homens mais
inteligentes de que se tem notícia. Sim, como a sua música, a sua
inteligência e o seu humor são especiais, e seu estilo de vida,
recolhido e em trabalho permanente de aperfeiçoamento da sua obra, é
muito especial, não permite especulações e estimula o mistério. Então o
melhor presente é deixar o homem em paz.
Mas nem
todas as palavras já escritas sobre João Gilberto, por alguns dos
maiores e mais influentes artistas brasileiros de diversos campos, valem
juntas ouvir apenas uma de suas músicas: por exemplo, o ‘Desafinado
2000’ ( onde ele nem fala em bossa nova...). Você vai entender tudo.
Silêncio. Som na caixa. Bem baixinho.
João e eu
Conheci
João Gilberto numa noite de 1960, no apartamento dos meus pais, em
Copacabana, quando, levado por Dori Caymmi e diante de poucas
testemunhas, João nos visitou. Cantou, tocou e conversou muito com meu
pai, que o admirava tanto quanto eu e minha mãe e dizia que as palavras
que saíam da boca de João eram como pedrinhas brutas e agudas que vinham
rolando desde a nascente do rio até se tornarem seixos lisos e roliços
antes de chegarem ao mar.
Depois de oito anos nos
Estados Unidos e no México, em 1970 João Gilberto voltou ao Rio de
Janeiro, contratado por Ricardo Amaral para fazer um show numa
cervejaria recém-inaugurada em Botafogo, o Canecão. E daria, pela
primeira vez na vida, uma entrevista para a televisão. Como repórter da
TV-Globo e com o melhor cinegrafista da casa, Roberto Padula, cheguei à
cobertura de Amaral, no Leblon, no meio da tarde. João já estava lá,
animado e sorridente, feliz em reencontrar a beleza do Rio.
No
terraço, na linda luz da tarde carioca, conversámos por dez minutos
diante da câmara de Padula e dos sorrisos de Amaral. Sobre música,
naturalmente. João respondia com simpatia, mas com pouco mais que
monossílabos, mas não importava: era o suficiente para mostrar ao Brasil
que o mito falava. Padula filmava a preto e branco.
Conheci João numa noite de 1960, no apartamento dos meus pais, em Copacabana. Cantou, tocou e conversou muito
Com
o coração aos pulos voltei correndo para a TV-Globo para revelar e
editar o material na moviola, a tempo de entrar no “Jornal Nacional”.
Roendo as unhas esperei à porta do laboratório, ansioso para ver o filme
ainda húmido da revelação.
Quando o laboratorista
me entregou a lata e disse pesaroso que, por um defeito na câmara, o
material estava inutilizado, pensei que era brincadeira. Mas era
verdade: no filme inteiro não havia nenhuma imagem impressa e nenhum som
gravado.
João se divertiu muito quando lhe contei a
história e, no dia seguinte, passou a tarde e a noite no Canecão,
testando o som. A cervejaria era pouco mais que um galpão de cimento e
zinco, com péssima acústica e um sistema de som precário, que
reverberava por toda a casa. De madrugada, João desistiu. Cancelou o
show e voou de volta a Nova Iorque.
No final de
1988, eu passava por uma devastadora rebordosa amorosa com o fim de um
romance, sofria como um condenado dia e noite sem descanso, e conversava
com João pelo telefone falando das minhas mágoas de amor.
Estava triste e sozinho em casa, um dia antes da véspera de Natal, quando o telefone tocou.
Era João Gilberto, me convidando a visitá-lo em seu apartamento no alto
do prédio do Rio Design Center, no Leblon, a algumas quadras de minha
casa.
À noite, cheguei à hora marcada mas, antes
que eu tocasse à campainha, ele abriu a porta. Estava de banho tomado,
de terno e gravata e com a caixa do violão na mão, como se fosse para um
show.
“Não vamos ficar aqui”, disse
misteriosamente sem explicar porquê, “vamos para sua casa”. Pegámos o
elevador e descemos para a garagem, onde João colocou o violão no
porta-malas e assumiu o volante de um Monza verde metálico, que jamais
imaginei que ele tivesse. Quando chegámos à praia, me lembrei de uma das
grandes “lendas e mistérios de João Gilberto”, contada por Galvão dos
Novos Baianos, e senti um frio na barriga. Diz a lenda que João saiu de
carro com Galvão de madrugada pela praia de Ipanema e que foi cruzando
todos os sinais vermelhos, sem diminuir a marcha, sem olhar, conversando
alegremente com absoluta tranquilidade. Mas, pouco adiante, num sinal
aberto para ele, freiou inesperadamente — justo a tempo de escapar de um
carro que cruzou o sinal vermelho em alta velocidade. Por maior fé que
tivesse em João eu não estava disposto a experimentar tanta magia. Mas
João dirigia devagar, admirando o mar noturno, ouvindo fitas de
conjuntos vocais dos anos 40 e parando em todos os sinais vermelhos, do
Leblon ao Arpoador, onde estacionámos e descemos para tomar água de
coco, comer milho cozido e conversar.
Quando
chegámos ao meu apartamento, diante do mar de Ipanema, João sentou-se de
frente para mim, me deu o violão e pediu que eu tocasse para ele. Eu
toquei medroso e ele sorriu amoroso, pegou o violão com delicadeza,
ficou um tempo em silêncio e cantou duas horas para mim, a sério, como
se estivesse em um concerto.
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