sábado, 13 de julho de 2019



João Gilberto <span>1931-2019</span>
João Gilberto 1931-2019
Nelson Motta
João e o mundo
Contactos
Jornalista, compositor, escritor, produtor musical, o consagrado Nelson Motta aceitou o repto do Expresso e escreve sobre João Gilberto, um dos pais da bossa nova
Assim como qualquer norte-americano se lembra de como e onde estava ao saber do assassínio do Presidente John Kennedy, gerações de brasileiros jamais se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando ‘Chega de Saudade’ no rádio, em 1958. Muitos grandes mestres como Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gal Costa e Gilberto Gil decidiram fazer música depois de ouvir a histórica gravação, que lançava a bossa nova e se tornaria um marco da vida cultural brasileira.
No centro de tudo um violão tocando um ritmo que ninguém jamais ouvira, que se parecia com o samba, mas não era o samba tradicional, era um balanço irresistível feito de acordes dissonantes e sequências harmónicas surpreendentes, envolvendo uma voz suave e doce, com impecável afinação e fraseado muito diferente das “grandes vozes” da era do rádio, ainda na tradição operística, mesmo depois da invenção do microfone.
Neste sentido, João Gilberto é o primeiro cantor tecnológico, ao usar o microfone não apenas para aumentar o volume da voz mas para permitir-lhe concentrar no que realmente interessa, a melodia, o ritmo, as harmonias, com um mínimo de volume e um máximo de invenção e precisão.
Não por acaso, o histórico ‘Chega de Saudade’ de João Gilberto, foi ouvido nos primeiros rádios de pilha que chegavam ao Brasil como a novidade tecnológica do momento.
Esta gravação é o grande marco divisório da música brasileira. Depois dela as músicas de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes ganharam o mundo e, com João Gilberto, Stan Getz e Astrud Gilberto, quatro Grammys em 1964. ‘The Girl From Ipanema’ se tornava um sucesso mundial e João um culto entre músicos sofisticados dos mais diversos estilos.
Como Bob Dylan, que em seu álbum “Lay, Lady, Lay” (1971), confessa que gostaria de cantar tão bem quanto o “soft brazilian singer”. Dylan, conhecido por sua voz nasalada e canto cru, realmente melhorou muito como cantor nesse álbum.
A partir de João Gilberto e do filme “Black Orpheus”, em que ele cantava ‘Felicidade’, a bossa nova foi adotada pelos grandes músicos de jazz — como Miles Davis, Bill Evans, Stan Getz, Gil Evans e Charlie Byrd — e consagrada pelas críticas mais exigentes.
Ao longo dos anos, na trilha luminosa aberta por João Gilberto, a música brasileira se multiplicou em ritmos e estilos, as gerações se sucederam, mas a sua influência só fez aumentar. No Brasil, ninguém questiona que João Gilberto é o artista mais influente da música brasileira.
Acompanho João Gilberto desde o início — afinal, sua gravação de ‘Chega de Saudade’ mudou minha vida — e tive o privilégio e a sorte de o ouvir em Roma, Nova Iorque, Paris, Montreux, Salvador, São Paulo, Miami e Rio de Janeiro várias vezes ao longo desses quase 60 anos de estrada. João fazia raros concertos por ano, às vezes nenhum, e onde ia esgotava as lotações com meses de antecedência e era aplaudido por públicos de diversas gerações e nacionalidades, todos fascinados com seu estilo elegante de sintetizar em sua voz e nas cordas do seu violão o coração pulsante de um país que ama a música e o ritmo.
Em 1988, eu estava pela primeira vez no Japão, como diretor da tournée de Gal Costa por diversas cidades. Encantado com a suavidade e elegância das pessoas e das paisagens, com a discrição e o respeito pela música que João tanto gosta, em Fukuoka, telefonei-lhe no Rio de Janeiro, falando do Japão, de tudo que ele gosta. E dizendo que ele tinha de um dia vir fazer show no Japão, que ele ia adorar a atmosfera, o público, a precisão tecnológica, os templos antigos. Zen-baiano, ele respondeu apenas:
“Eu sou daí.”
Em 2004, finalmente João foi ao Japão e recebeu uma das maiores consagrações de sua vida, que resultou num belo CD gravado ao vivo em Tóquio.
João e nós
Naquela noite, naquele terraço sobre Copacabana, hipnotizado, vi e ouvi João Gilberto de perto pela primeira vez. Até ouvir ‘Chega de Saudade’ com João Gilberto eu não gostava de música. Não me interessava. Em 1958, tudo o que se ouvia no rádio e nas poucas TV a preto e branco era chato — para adolescentes de Copacabana como nós, jovens filhos da classe média na alvorada dos Anos JFK, da modernização do Brasil. Depois de João foi como se alguém acendesse a luz e aumentasse o som (ou, melhor, diminuísse), tornando a música e a letra mais leves, mais swingadas, mais elegantes e modernas. Tudo o que ele cantava parecia novo, com sua nova batida, inconfundível, síntese do samba e das marchinhas. Sua música era a trilha sonora perfeita para o estilo de vida alegre e liberal do Rio de Janeiro que se modernizava. João Gilberto era nosso pastor e nada nos faltaria. Foi ele quem inspirou e levou a minha geração (Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Francis, João Bosco, Roberto e Erasmo, Tim Maia e até mesmo Jorge Benjor) a mergulhar num universo musical que já não era o da Rádio Nacional, tinha um novo sol, mais brilhante, mais discretamente brilhante, com um alto teor de magnetismo e radioatividade.
Gerações de brasileiros jamais se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando no rádio
Todos os que um dia foram tocados por sua música sabem (como testemunharam Miles Davis, Bob Dylan e Madonna, e tardiamente Eric Clapton), como qualquer músico brasileiro de qualquer estilo ou geração sabe, que depois de ouvi-lo tudo soa (mesmo os melhores sons) mais barulhento, excessivo, áspero. Não que seja pior, mas certamente é menos suave, macio e delicado. Até Chet Baker. Que mágica fez este homem! Não é mágica, é génio e predestinação. De uma pequena cidade do interior da Bahia para — com sua pequena voz e grande violão — mudar a música do planeta, como o genial criador da maior contribuição cultural (uma das raras) que o Brasil deu ao mundo nos tempos modernos, conhecida como bossa nova, mas na verdade a música original de João Gilberto, sua revisão permanente dos grandes mestres, desenvolvida por Antonio Carlos Jobim, Vinicius de Morais e seus seguidores de várias gerações até hoje, no que se chama de MPB.
Não há, dificilmente haverá artista mais influente na história da música brasileira moderna. Sim, também Tom Jobim, mas ninguém influenciou mais Tom Jobim do que João Gilberto... Ninguém cantou Antonio melhor do que João. Glauber Rocha, que amava e respeitava João Gilberto, atribuía ao seu estilo intimista a “feminização” da música brasileira moderna: depois dele todos os homens passaram a cantar mais suavemente. Como Chico, Caetano, Gil, Roberto Carlos e todos. Em contrapartida, segundo Glauber, depois dele as mulheres passaram a cantar com mais força e “virilidade”, como Elis Regina, Maria Bethânia, Simone e uma sucessão de cantoras vigorosas e dramáticas, de vozes potentes e grande expressividade. Glauber adorava uma polémica, João gostava de harmonia e silêncio. Dois baianos porretas, Apolo e Dionísio na Terra do Som.
Em João a revolução é permanente, like a rolling stone. A prova, o seu último disco, “Voz e violão”, vencedor do Grammy, com suas interpretações definitivas a ‘Desafinado’ e ‘Chega de Saudade’, 40 anos depois e, por qualquer critério ou conceito, musicalmente superiores às históricas versões originais, que serão sempre históricas, mas foram superadas pelo génio criador de uma obra em movimento permanente. É um espanto. Suave, mas espanto. Não interessam muito as canções que ele canta, mas como as canta, como Maria Callas, que gravou muitas versões diferentes de suas árias preferidas. Ou como Sinatra. Se bem que aos 70 anos Sinatra já não fazia novas versões melhores de suas músicas de sempre. João é diferente, sua luz é seu mistério, poucos personagens da nossa história musical terão um folclore mais abundante em volta de seu mito, a maioria exagerados e fantasiosos, a menor parte atitudes ou palavras de João mal compreendidas. Todos que o conhecem sabem: é um dos homens mais inteligentes de que se tem notícia. Sim, como a sua música, a sua inteligência e o seu humor são especiais, e seu estilo de vida, recolhido e em trabalho permanente de aperfeiçoamento da sua obra, é muito especial, não permite especulações e estimula o mistério. Então o melhor presente é deixar o homem em paz.
Mas nem todas as palavras já escritas sobre João Gilberto, por alguns dos maiores e mais influentes artistas brasileiros de diversos campos, valem juntas ouvir apenas uma de suas músicas: por exemplo, o ‘Desafinado 2000’ ( onde ele nem fala em bossa nova...). Você vai entender tudo. Silêncio. Som na caixa. Bem baixinho.
João e eu
Conheci João Gilberto numa noite de 1960, no apartamento dos meus pais, em Copacabana, quando, levado por Dori Caymmi e diante de poucas testemunhas, João nos visitou. Cantou, tocou e conversou muito com meu pai, que o admirava tanto quanto eu e minha mãe e dizia que as palavras que saíam da boca de João eram como pedrinhas brutas e agudas que vinham rolando desde a nascente do rio até se tornarem seixos lisos e roliços antes de chegarem ao mar.
Depois de oito anos nos Estados Unidos e no México, em 1970 João Gilberto voltou ao Rio de Janeiro, contratado por Ricardo Amaral para fazer um show numa cervejaria recém-inaugurada em Botafogo, o Canecão. E daria, pela primeira vez na vida, uma entrevista para a televisão. Como repórter da TV-Globo e com o melhor cinegrafista da casa, Roberto Padula, cheguei à cobertura de Amaral, no Leblon, no meio da tarde. João já estava lá, animado e sorridente, feliz em reencontrar a beleza do Rio.
No terraço, na linda luz da tarde carioca, conversámos por dez minutos diante da câmara de Padula e dos sorrisos de Amaral. Sobre música, naturalmente. João respondia com simpatia, mas com pouco mais que monossílabos, mas não importava: era o suficiente para mostrar ao Brasil que o mito falava. Padula filmava a preto e branco.
Conheci João numa noite de 1960, no apartamento dos meus pais, em Copacabana. Cantou, tocou e conversou muito
Com o coração aos pulos voltei correndo para a TV-Globo para revelar e editar o material na moviola, a tempo de entrar no “Jornal Nacional”. Roendo as unhas esperei à porta do laboratório, ansioso para ver o filme ainda húmido da revelação.
Quando o laboratorista me entregou a lata e disse pesaroso que, por um defeito na câmara, o material estava inutilizado, pensei que era brincadeira. Mas era verdade: no filme inteiro não havia nenhuma imagem impressa e nenhum som gravado.
João se divertiu muito quando lhe contei a história e, no dia seguinte, passou a tarde e a noite no Canecão, testando o som. A cervejaria era pouco mais que um galpão de cimento e zinco, com péssima acústica e um sistema de som precário, que reverberava por toda a casa. De madrugada, João desistiu. Cancelou o show e voou de volta a Nova Iorque.
No final de 1988, eu passava por uma devastadora rebordosa amorosa com o fim de um romance, sofria como um condenado dia e noite sem descanso, e conversava com João pelo telefone falando das minhas mágoas de amor.
Estava triste e sozinho em casa, um dia antes da véspera de Natal, quando o telefone tocou.
Era João Gilberto, me convidando a visitá-lo em seu apartamento no alto do prédio do Rio Design Center, no Leblon, a algumas quadras de minha casa.
À noite, cheguei à hora marcada mas, antes que eu tocasse à campainha, ele abriu a porta. Estava de banho tomado, de terno e gravata e com a caixa do violão na mão, como se fosse para um show.
“Não vamos ficar aqui”, disse misteriosamente sem explicar porquê, “vamos para sua casa”. Pegámos o elevador e descemos para a garagem, onde João colocou o violão no porta-malas e assumiu o volante de um Monza verde metálico, que jamais imaginei que ele tivesse. Quando chegámos à praia, me lembrei de uma das grandes “lendas e mistérios de João Gilberto”, contada por Galvão dos Novos Baianos, e senti um frio na barriga. Diz a lenda que João saiu de carro com Galvão de madrugada pela praia de Ipanema e que foi cruzando todos os sinais vermelhos, sem diminuir a marcha, sem olhar, conversando alegremente com absoluta tranquilidade. Mas, pouco adiante, num sinal aberto para ele, freiou inesperadamente — justo a tempo de escapar de um carro que cruzou o sinal vermelho em alta velocidade. Por maior fé que tivesse em João eu não estava disposto a experimentar tanta magia. Mas João dirigia devagar, admirando o mar noturno, ouvindo fitas de conjuntos vocais dos anos 40 e parando em todos os sinais vermelhos, do Leblon ao Arpoador, onde estacionámos e descemos para tomar água de coco, comer milho cozido e conversar.
Quando chegámos ao meu apartamento, diante do mar de Ipanema, João sentou-se de frente para mim, me deu o violão e pediu que eu tocasse para ele. Eu toquei medroso e ele sorriu amoroso, pegou o violão com delicadeza, ficou um tempo em silêncio e cantou duas horas para mim, a sério, como se estivesse em um concerto.

Sem comentários: