Arrancou
este mês, no Nimas, em Lisboa, um grande ciclo de filmes de Luis Buñuel
que depois se prolonga, em várias cidades, em vagas a durar, pelo
menos, até ao fim do ano. Visita ao maior cineasta ibérico do século XX,
iconoclasta, anticlerical, surrealista e tudo
textos Jorge Leitão Ramos
Dezembro
de 1960. Luis Buñuel, um dos mais célebres exilados artistas espanhóis,
há uma década naturalizado cidadão mexicano, pede em Paris um visto
para entrar em Espanha. Aquele que fora, em França, espião do Governo
republicano nos anos da guerra civil, estaria disposto a pactuar com o
regime ditatorial de Francisco Franco? Assim parecia e não poucos
intelectuais de esquerda no exílio vituperaram a atitude de Buñuel,
ainda mais quando souberam que ele iria fazer um filme no seu país
natal. O caudillo estava tão interessado em
bem acolher o cineasta que quando foi apresentado às autoridades o
argumento de “Viridiana”, o mais que fizeram foi sugerir,
respeitosamente, algumas alterações que Buñuel seguiu, em alguns casos
fazendo piorar as leituras possíveis. Em traços gerais o filme era a
história de uma postulante, prestes a tomar votos como freira, que vai
por uma temporada para casa de um velho tio viúvo que dela se enamora e
quer a todo o custo mantê-la perto e para ele. Desencadeada uma
tragédia, a protagonista tenta a radical caridade como destino,
acolhendo pobres e destituídos da sociedade, boa obra que não dará bons
frutos. Concluído mesmo nas vésperas do Festival de Cannes de 1961,
“Viridiana” será aí apresentado sob pavilhão espanhol, conquistando a
Palma de Ouro que um feliz director-geral de Franco foi receber. Parece
que não tinha visto o filme, Buñuel, retido em Paris, nem queria
acreditar quando soube. Dois dias volvidos, o “L’Osservatore Romano”,
órgão oficial do Vaticano, qualificava o filme como blasfemo e
sacrílego, o que em Madrid caiu como um terramoto. Além da demissão
sumária do alto funcionário governamental que deixara que um tal filme
ostentasse a bandeira espanhola no certame francês, todas as cópias e o
próprio negativo foram sequestrados e destruídos, o filme sumariamente
proibido — tal como a sua exportação. Mas o produtor mexicano que tinha
estado na base do financiamento, Gustavo Alatriste, um homem de negócios
que gostava de atrizes, tivera a prudência de albergar em Paris um
duplicado do negativo. O filme acabaria estreado um pouco por todo o
mundo (em Portugal, nem pensar...), grangeando um considerável sucesso.
“Viridiana” teve o condão de escancarar as portas dos produtores
franceses ao cinema de Buñuel. O cineasta ainda faria mais dois filmes
no México, sempre com Alatriste (e com a atriz Silvia Pinal, sua mulher
que já protagonizara “Viridiana”), mas seria em França que basearia o
resto da sua obra e o cume da sua fama nos últimos anos da sua carreira
(com o Leão de Ouro de Veneza, em 1967, duas nomeações para os Óscares
nos anos 70, como argumentista, e o galardão de Melhor Filme em Língua
Estrangeira para “O Charme Discreto da Burguesia“). Todavia, sempre
manteve residência na Cidade do México onde, aliás, viria a falecer em
1983.
UM CINEASTA MEXICANO
Buñuel
estabelecera-se no México em 1945 depois de um atribulado périplo
americano onde chegara, em 1939, como delegado da República Espanhola
para ser conselheiro em filmes que Hollywood fazia sobre Espanha, tarefa
que nunca cumpriu deveras já que a entrada de Franco em Madrid ditou o
termo da Guerra Civil e condenou o cineasta ao exílio. Entre Los Angeles
e Nova Iorque teve vários empregos, passou dificuldades, tentou a sua
sorte em projetos que nunca se concretizariam. Conotado com a esquerda,
provavelmente criptocomunista, embora o próprio sempre afirmasse que
nunca se filiara no partido, nem em Madrid nem em Paris, acabaria olhado
de soslaio, para dizer o mínimo, quando um livro de Dalí o denunciou
publicamente como marxista. Buñuel não filmava desde 1932, desde um
documentário em forma de grito (“Las Hurdes”), embora, em 1935/36,
tivesse trabalhado como produtor de filmes comerciais em Espanha e há
quem diga e jure que também (pelo menos) colaborado na sua realização,
embora com o nome nunca creditado nos genéricos. O cineasta, cuja
nomeada continuava a assentar nos parisienses dois rasgos polémicos e
surrealistas (“Un Chien Andalou”, 1929; “L’Âge d’Or”, 1930) precisava de
fazer cinema com urgência, viver da boa vontade e dos empréstimos dos
amigos não era sustentável. O país para onde se deslocara, por seu lado,
tinha uma bem estruturada indústria cinematográfica, com um grande
mercado interno e de exportação e o apoio do forte vizinho
norte-americano. Tinha estúdios, tinha grande técnicos (como o diretor
de fotografia Gabriel Figueroa), tinha vedetas de impacto internacional
(como Maria Félix ou Cantinflas). Buñuel não podia esperar hipóteses
vanguardistas e estava disposto a enfileirar na indústria, a fazer
filmes comerciais, a ganhar a vida, desde que, como declarou nas suas
memórias, não filmasse nada que fosse contrário às suas convicções, à
sua moral pessoal. Assim aconteceu, num labor que se tornou continuado,
nas condições que havia. As filmagens seriam sempre em prazos espartanos
— entre dezoito e vinte e quatro dias — e, nas suas próprias palavras,
ter-lhe-á acontecido “aceitar temas que não tinha escolhido e trabalhado
com atores muito mal ajustados aos papéis”. Mas serão esses vinte
filmes que fez no México que viriam a constituir o carne e o coração da
sua obra, na época em geral quase desconhecidos internacionalmente, mas
que foram circulando e sendo reavaliados, às vezes com espanto do
próprio realizador que pouco considerava a maior parte deles. Fez de
tudo um pouco, mas, sobretudo, melodramas que cumpriam os cânones do
comércio e onde inoculou muitos dos seus fantasmas e obsessões, o ciúme,
a morte, a podolatria, o machismo, pinceladas oníricas, o sexo como
coisa secreta, implícita, não mais que sussurrada, uma conturbado
relação com o catolicismo que oscilava entre um respeito fundo pelo seu
quadro ético e um radical anticlericalismo que nunca o largaria. E
também uma contraditória posição sobre a diferenciação de classes:
implacável em relação aos possidentes e às injustiças com que acederam
ou se mantêm nesse lugar, o olhar de Buñuel nem por isso se irmanaria
com o lado de baixo da humanidade, com a sua brutalidade simples que os
filmes retratam sem qualquer espécie de complacência. Veja-se a
crueldade dos miseráveis de “Los Olvidados” ou a desgovernada violência
“El Bruto”. No cinema de Luis Buñuel a luta de classes nunca é uma coisa
épica, é sempre maculada pela sordidez. E, todavia, o lado ‘sujo’ da
realidade é, a um tempo, escancarado e refreado. Os filmes mexicanos de
Buñuel transpiram desejo por todos os lados, não recuam perante nenhuma
insinuação, e, todavia, no que a imagem explicitamente mostra, são
reprimidos, disciplinados, como o pode ser quem esteve dez anos sob a
educação de padres jesuítas, sob a regra de Santo Inácio de Loyola.
UM SEÑORITO ARAGONÊS
Buñuel
não nasceu rebelde, nem herético, nem, evidentemente, surrealista.
Nasceu rico, primogénito de sete irmãos, em Calanda, pequena povoação a
uma centena de quilómetros de Saragoça, no mesmo ano em que nasceu o
século XX. O pai fizera fortuna em Cuba e, de regresso a Aragão,
casara-se com a filha de um proprietário rural que era a mulher mais
bonita da terra. Na casa da sua adolescência havia cinco criados e,
quando ia para as aulas de violino, um deles levava a caixa com o
instrumento do jovem Luis. John Baxter, biógrafo de Buñuel, afirma que o
mais que o pai podia carregar em público seria uma lata de caviar. E
uma arma de fogo, paixão que o filho havia de herdar. Para tudo o resto,
havia criados. Entre os sete e os dezasseis anos Buñuel estudou no
jesuíta Colégio del Salvador. Saiu de lá “ateu, graças a Deus”. Mas o
catolicismo seria, para sempre, uma das traves da sua personalidade e,
mais tarde, do seu cinema.
Era um homem ciumento, autoritário, controlava o dinheiro e as decisões importantes dentro de casa
Foi
a música a primeira inclinação do futuro cineasta; depois anunciou ao
pai que queria estudar entomologia. Acabou por ir cursar Agronomia, em
Madrid, depois Engenharia, acabou diplomando-se em Filosofia. Mas o mais
importante que lhe aconteceu na velha e então muito provinciana capital
de Espanha foi o contacto com uma brilhante geração de intelectuais,
tornou-se amigo de Albertí, de Lorca, de Dalí, de Manuel de Falla. Ir
para Paris, centro do mundo nos anos 20, foi quase uma evolução natural.
É aí que decide que quer ser cineasta, fascinado por “A Morte Cansada”,
de Fritz Lang. O pai, entretanto, morrera, e é a mãe que fica a gerir a
herança e a financiar o jovem Buñuel, com uma fixa mensalidade que lhe
permite viver em Paris. Do teatro ao cinema, da escrita à encenação, faz
um caminho que, no fim da década, desembocará num filme surrealista,
engendrado em parceria com Dalí, financiado pela mãe: “Un Chien
Andalou”. Um sucesso instantâneo — oito meses em cartaz afirma o
cineasta nas suas memórias — e o aplauso ditirâmbico dos parceiros
parisienses. André Breton, o papa do Movimento Surrealista, diria do
filme que era “belo como o encontro dum guarda-chuva e de um cão numa
mesa de autópsia”. Famoso de um dia para o outro, as portas abriram-se
para a produção do filme seguinte, “L’Âge d’Or”. A fama continuou a
favorecer Buñuel, mas o sucesso não. Proibido pelas autoridades, na
sequência do escândalo público que foi a sua estreia, o filme só viria a
ter distribuição comercial meio século depois — e cimentou, para
sempre, a aura de Buñuel como absolutamente iconoclasta. Todavia, o
provocador que o mundo veria nele, o homem que tão bem figurou as
impotências na vida, as vontades que não se cumprem, como orgasmos
continuamente adiados numa tensão que não amaina, era um homem bastante
pacato, quase monacal. Deitava-se cedo, casou-se uma única vez, viveu
com essa mulher durante quase cinquenta anos — e, defendem os amigos
íntimos, foi-lhe fiel. Bebia cinco dry-martinis por
dia, a horas certas, e algum vinho e se dedica um capítulo inteiro das
suas memórias aos “prazeres daqui de baixo” (com uma pormenorizada
receita para preparar o seu cocktail preferido),
em que o tabaco aparecia como central, nele se confessa um tímido no
que respeita às mulheres e, como membro de uma geração de castelhanos a
quem o catolicismo moldara, dotada de um desejo sexual que era talvez o
mais forte do mundo. Todavia, escritas as memórias já em idade avançada,
admite ter assistido ao “desaparecimento progressivo e, por fim, total
do [seu] instinto sexual, mesmo em sonho”. E remata: “Estou muito
satisfeito por tal facto. É como se finalmente me tivesse visto livre de
um tirano.” Era um homem ciumento, autoritário no interior da sua
família, não gostava de lisonjas, controlava o dinheiro e as decisões
importantes dentro de casa, talvez não muito diferente dos señoritos castelhanos
de “Tristana” ou de “Viridiana” ou do paranoico de “Él”. Tinha,
todavia, sobre eles, uma ínclita vantagem, um humor sem medida. O humor
com que se despede de nós nas suas memórias, imaginando a própria morte e
um desejo para depois que não resisto a citar.
“Próximo
do meu último suspiro, imagino bastantes vezes uma última partida.
Convoco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu.
Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um
padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos,
confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a
extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro.
Mas será que encontraremos ainda força para gracejar nesse momento?
Um
desgosto: não saber o que se vai passar, abandonar o mundo em pleno
movimento, como no meio dum folhetim. Acho que esta curiosidade do
pós-morte não existia noutros tempos, ou existia menos, num mundo que
quase não mudava. Uma confissão: apesar de todo o meu ódio pela
informação, gostaria de me poder levantar entre os mortos, de dez em dez
anos, ir até a um quiosque e comprar alguns jornais. Não pediria mais
nada. Com eles debaixo do braço, pálido, roçando as paredes, voltaria ao
cemitério e leria os desastres do mundo, antes de voltar a adormecer
satisfeito, abrigado tranquilamente pelo túmulo.”
Sequências “Un Chien Andalou” e “Belle de Jour”: o alfa e o ómega do cinema de Buñuel
IMAGENS MATRICIAIS
Há
duas sequências que assombram/iluminam todo o cinema de Luis Buñuel. A
primeira é a inaugural abertura do seu primeiro filme, ainda mudo, o
vanguardista “Un Chien Andalou”, de 1929. Um homem — o próprio Buñuel —
afia uma navalha. Uma mulher, à varanda, contempla a noite. O homem
aproxima-se dela, por trás, segura a arca orbital do olho esquerdo com
dois dedos, expondo o globo ocular. No céu há uma lua, muito branca,
atravessada pela faixa negra de uma nuvem. A navalha corta um olho. É,
talvez, a mais terrífica imagem em toda a História do Cinema, cem vezes
vista, nunca o impacto diminui. Não importa que saibamos que se trata de
um olho de vaca, evidentemente morta. É sempre o nosso olho que a
lâmina de Buñuel decepa. Posso assegurar, por experiência própria.
A
segunda sequência matricial da obra buñueliana pertence a um filme
muito posterior, “Belle de Jour”, de 1967. A cena decorre no bordel de
Madame Anaïs onde Séverine, uma senhora casada da alta burguesia, se
prostitui, às tardes, talvez para experimentar rêveries
de submissão que a sua situação conjugal não cultiva. Um dia
apresenta-se um cliente oriental, possante, a falar uma língua tão
ininteligível quanto inidentificável. Para explicar o que quer traz uma
caixinha com incrustações que abre e de onde sai um zumbido. Uma
primeira rapariga recusa, horripilada. Séverine acede. Não vemos o que
se passa, ficamos de fora da porta fechada do quarto. No fim da função, o
cliente sai, uma velha criada entra no quarto em grande desalinho, há
mesmo um candeeiro de cabeceira tombado na refrega. Séverine está
deitada na cama, de barriga para baixo, o rosto afundado nos lençóis, a
cabeça na nossa direção. A criada começa a arrumar e comenta, comísera:
“Às vezes, deve ser muito penoso.” Séverine ergue a cabeça e murmura: “O
que é que tu sabes disso?” E sorri, entre o saciado e o irónico: é um
raio que se despenha sobre o espectador. E não nos deixa dúvidas; e
deixa-nos as dúvidas todas.
Crueldade, absurdo,
desejo, sexo — e tudo moldado por alusões, por fetiches, por imagens a
que havemos de querer atribuir significados, estimulando o que de mais
secreto, às vezes inconfessável, nos habita. E, todavia, sempre com a
consciência de que não conseguiremos esgotar os significados, conhecer a
verdade, porque, no fundo de nós, sabemos que tal coisa não existe. O
cinema de Buñuel é obra aberta a todas as incursões e mesmo às
profanações do nosso olhar e do nosso entendimento. / J.L.R.
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