terça-feira, 29 de julho de 2025

 

Enigmas
 
É um entardecer tranquilo
O oceano mal estremece
Nas águas vejo a cor dos teus olhos
Como foram.
Imagino-me a navegar
sob o abismo das águas.
Ali mesmo, entre algas e corais
a solução do enigma.
Quando se ama,
o furioso oceano é manso.
Eu quero crer que sim.
E acreditei até mesmo
que os teus olhos
eram da cor das águas.
As palavras naufragaram, eu sei.
Permanecem lá no fundo
como conchas primitivas
ou peixes primordiais.
Talvez sejam as vidas
que não foram.
Afinal,
estamos sempre de partida.
Migramos com as aves
porque sim.
Nesse tempo sabíamos apenas :
o amor é felicidade pura
se servido num açafate de açucenas.
Não sabíamos, porém,
que o oceano é ciumento :
guarda para sempre
o início e o fim dos tempos.
Não venhas, pois,
já se fez tarde.
Basta o que sobrou.
É muito, é pouco?
O fogo já não arde.
O que sobrou?
Um círculo na areia que alguém traçou.
-------------N. P. ------2025

quinta-feira, 24 de julho de 2025

 

 

Matadouros

 

Eu nunca padeci de insónias. Neste ano, sobretudo neste ano, são frequentes. Sou capaz de ficar uma hora ou mais a olhar o escuro, com o cérebro liberto a pensar à toa. Depois tomo meio comprimido de uma coisa que me provoca uma suave relaxamento. É legal e os médicos aconselham. O que eles não disseram, ou não sabem, é que o seu efeito depende muito de como foi o dia vivido pelo indivíduo. Acho eu. Senão não compreendia porque “vivi”ontem  um violento pesadelo, embora o tal medicamento me provocasse a sonolência como anteriormente. Não me lembro do sonho, só me lembro que nele chorei como um homem pode chorar se não tiver vergonha ou a perda tiver sido grande demais. O Doutor Freud (ou um seu discípulo mais ortodoxo) diria que foi um sonho sexual. Por exemplo : uma frustração violenta amorosa, o desejo não realizado, rejeitado. Que se guardou no inconsciente e no sonho se manifestou. Para muitos casos a técnica do Doutor Freud acerta, para este não. Não explica as labaredas que eu via numa estrada e uns gritos lancinantes. Não temos apenas sonhos sexuais, e não sou eu apenas que o digo. Conheci um indivíduo que sofria de insónias seguidas de pesadelos horríveis (dizia ele). Estive com ele a petiscar uns camarões num restaurante que fica no cimo de uma rocha num lugar chamado de Porto Novo. Já não via esse amigo há uns séculos. Passou por aqui só para me rever e cumprimentar. Tem um apelido insólito. O nome completo é José António Azeiteiro. Posso escrever o nome dele aqui que ele não se importa. Aliás, não se importa com coisa nenhuma, nem jamais se importou. Ou então importasse com tudo e disfarça. É Azeiteiro porque o avô vendia almudes de azeite, andava de aldeia em aldeia com uma mula carregada, e ele e a besta esfalfavam-se para poder sustentar uma carrada de filhos. Destes viria a nascer um José António no exato dia em que a Segunda Guerra Mundial terminou. Eu acredito em coincidências, não acredito em milagres. Todavia, ele costumava dizer que a Guerra Mundial acabou porque ele nasceu, e não o contrário. A fama que o meu amigo carrega às costas a vida toda é essa mesma : é maluco. Não por ser imbecil, mas por se comportar de uma forma que incomodava toda a gente. Desorientava todo o mundo, ninguém o compreendia nem sabia lidar com as distrações dele, com aquele ar de outro planeta com que ele passava pelas situações mais horríveis. Por exemplo : o pai fora um comunista teve de sair de casa para se tornar funcionário clandestino ; o José António foi criado por umas tias solteironas, chatas como sei lá o quê; ele passou, então, a infância e a adolescência sob uma ditadura terrorista, sofreu muito acho eu com a ausência do pai que ele admirava ; meteu-se nas lutas estudantis contra a ditadura, levou pancada de todos os lados e de todas as maneiras (queriam sobretudo que ele identificasse o lugar onde se escondia o pai), nunca abriu a boca nem para dizer o nome e recusou a porcaria que lhe davam para comer. Ia morrendo.

Não conversámos sobre isso enquanto emborcavamos copos cheios de cerveja fresquinha e loira. No entanto, enquanto ele deambulava de assunto para assunto sobre os filhos e os netos, sobre as muitas ocupações que desempenhara e coisas que tais, perdendo-se e pedindo-me ajuda para terminar qualquer dessa histórias, eu ia recordando peripécias do seu comportamento invulgar nos tempos remotos em que o conhecera. As coisas aconteciam-lhe e ele fica sempre surpreendido, interrogava: “Porquê?” Ou, “Porquê a mim?”. Na guerra colonial foi alferes-miliciano. Como se apresentou coma uma avaliação na recruta abaixo do medíocre deram-lhe um pequeno grupo de homens que tinham descido todos da serra da Estrela e que não sabiam nicles do que andavam ali a fazer e o alferes perdia-se deles no mato, os homens, rudes mas habituados a sobreviver em qualquer circunstância geográfica, regressados ao quartel eram obrigados, aos gritos do coronel, a procurarem o seu chefe imediatamente. Era descoberto umas vezes ao pé do lago Niassa a lançar paus e a vê-los subir e descer conforme os hipopótamos subiam e mergulhavam, ou a observar os trabalhos hercúleos de um formigueiro. Contaram que num certo dia em que uma razia praticada por comandos incendiou uma pequena aldeia de três ou quatro palhotas, os de infantaria tentaram salvar pelo menos as crianças, enquanto ele se deixou ficar ao longe a chorar como uma dessas crianças, como se soubesse que as crianças não tinham salvação.

 O José António tinha esse apelido, mas era alcunha, não se assinava assim acho eu. No Alentejo, dizem-me , as alcunhas ficam como apelidos. Não sei se é verdade. O meu amigo, isso é certo, não vendia azeite. Lia uns livros esquisitos que falavam de extraterrestres que só eram descobertos entre os humanos se estes colocassem uns óculos especiais, ou de naves que tinham exterminado os dinossauros. Por causa deste genocídio na Faixa de Gaza ele deixou de ler. Agora está convencido que de facto são os humanos que fazem essas atrocidades e outras. Ou seja, que o salto dos macacos para a inteligência não foi fornecido por um monólito negro e gigante como nos contou o Arthur Clark no seu “2001: Uma Odisseia no espaço”. Tudo se trata de humanos sem interferências exteriores.

 Disse-me que tem pesadelos nos quais é frequente chorar desesperadamente. Não com labaredas e carros a arder numa estrada doméstica como eu sonho, sim com cidades arrasadas como sucedeu com a cidade que fora belíssima de Dresden bombardeada pelos aliados (americanos e britânicos) sem qualquer motivo porque já nos finais da guerra não possuía armas nenhumas, nem fábricas a produzi-las, somente uns jardins maravilhosos que, sob as bombas, ficaram atafulhados de pessoas vivas e depois mortas, conforme nos relata Curzio Malaparte no seu “Kaputt”. Gaza. Dresden. José António. Passou pela vida como um meteoro às arrecuas. Quando se encontrar a expirar o último suspiro vai pensar que é natural. Afinal tudo é humano.

-----------------N. P. ----------------2025

sábado, 19 de julho de 2025

 Poetas de CUBA

UMA FACE, UM RUMOR, UM INSTANTE FIEL

Uma face, um rumor, um instante fiel
ensurdecem de repente o que olho
e pela primeira vez então vivo
o tempo que já ficou distante.

É como um lento e preguiçoso amante
que sempre chega tarde, o meu tempo,
e por chuva ou dourado e suave tédio
soma lilases noturnos deslumbrantes.

E me devolve uma mansão silenciosa,
pares de dançarinos suavíssimos,
os dedos artesãos do abismo.

E me contemplo cega e extasiada
à luz mágica interrogante
de um som que é outro e que é o mesmo.
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Fina García Marruz (Havana, Cuba, 1923-2022). Poeta, ensaísta, editora e pesquisadora. Figura central da literatura cubana dos séculos XX e XXI que impulsionou, entre outras publicações periódicas, a célebre revista Orígenes. Autora de vários livros de poesia, ensaio e crítica literária, dentre os quais se destacam as coletâneas de poemas Transfiguração de Jesus no Monte (1947), Visitaciones (1970), Créditos de Charlot (1990), Noções elementares e algumas elegias (1994), Havana do centro (1997) e O instante raro (2010). Sua obra lhe valeu o Prémio Nacional de Literatura (Cuba) em 1990, o Prémio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda em 2007 e o Reina Sofía de Poesia Ibero-americana em 2011, entre outros.
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OS ESTRANHOS RETRATOS

Agora que estamos sós,
infância minha,
falemos,

esquecendo por um momento
os estranhos retratos
que nos fizeram.

Falemos do que tu e eu,
por não ter mais nada,
sabemos.

Que esta solitária noite minha
não teve a graça
do começo,

e entrei na dança escura da minha estirpe
como um jovem tristíssimo
num quadro.

Minha imagem sucessiva não me habita
senão como um escuro
remorso,

sem poder distinguir sequer
o que do meu pão ou do meu vinho
invento.

No escuro quarto onde levanto
a mão com um gesto
empoeirado,

onde não posso entrar, lá me olhas
com teu traje e teu teimoso
fundamento,

e não sei se me chamas ou o que queres
neste mútuo, estranho
desencontro.

E às vezes me parece que me pedes
para que eu te tire
do silêncio,

me procuras nas árvores de ouro
e no perdido parque
da memória,

e às vezes me parece que te procuro
à tua tranquila força
e teu chapéu,

para que tu me ensines o caminho
do meu perdido nome
verdadeiro.

Da tua estrela distante, surgida,
não quero mais a luz tão triste
mas o Corpo.

Aprofunda em mim. Encontra-me.
E que teu pão seja o dia
nosso.

 Fina García-Marruz, la relevante poetisa cubana discreta y silenciosa | Acento

sexta-feira, 4 de julho de 2025

 

Fredric Jameson, modernismo e a desprovincianização do marxismo

Foto: Wikimedia Commons

Por Bruna Della Torre

Pode-se de fato concordar que uma crítica marxista que não tenha nada a dizer sobre a luta de classes ou sobre a natureza do capitalismo dificilmente acabará tendo algo de verdadeiramente marxista. Mas tais considerações nem sempre assumem a forma que se poderia esperar…
Inventions of a Present, Fredric Jameson 

Devemos em larga medida a Fredric Jameson a maneira como periodizamos a segunda metade do século XX. Talvez se estenda para o tempo aquilo que Joan Didion afirmou sobre o espaço, quer dizer, que “um lugar pertence para sempre àquele que mais intensamente o reivindica, que mais obsessivamente o recorda, que o arranca de si mesmo, que o molda, que o recria, que o ama [ou que o odeia] de forma tão radical que o refaz à sua própria imagem” — como William Faulkner e Ernest Hemingway fizeram do Mississippi e do Kilimanjaro os seus territórios literários, recorda Didion. Se é assim, a era que sucedeu a manhã seguinte dos anos 1960 pertence a Jameson. Sua leitura do pós-modernismo não só esculpiu a teoria marxista nas últimas décadas e mapeou os conflitos dos tempos, como transformou para sempre a crítica cultural de esquerda. Jameson foi um dos primeiros autores a enfrentar as consequências estéticas do espraiamento da indústria cultural. Pensador exímio da forma que era — vale lembrar que seu livro Marxismo e forma é um marco nos estudos desse campo —, Jameson fez da ficção científica (até então entendida como um gênero comercial) um objeto de estudo para o marxismo. Também lançou mão de seu arcabouço literário para refletir sobre o cinema de Hollywood, uma contribuição frequentemente malcompreendida, e que hoje se converteu na única forma de crítica cultural que ainda mobiliza a esquerda, cativa do que se poderia denominar “Netflix Studies“. Mas o que é pouco retomado por sua fortuna crítica é que Jameson só se tornou um teórico do pós-modernismo porque era, antes de qualquer outra coisa, um teórico do modernismo. Para ele, o século XX se organiza em torno de dois tempos decisivos: modernismo e pós-modernismo. 

Este texto parte de um esforço em curso de elaboração de uma leitura da teoria do modernismo em sua obra. A ideia aqui não é oferecer uma análise exaustiva, mas apenas esboçar algumas considerações preliminares sobre o tema a partir de um registro que nos auxilia, salvo engano, a compreender o papel do modernismo em sua obra — e que também tem a ver com o Brasil. Esse material permite observar como a desprovincianização do pensamento pode vir dos lugares mais surpreendentes, e como esse movimento vincula Jameson de alguma forma a certa dialética brasileira.

À ocasião do lançamento da tradução de O inconsciente político, Jameson esteve no Brasil no congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada e participou de um debate com Maria Elisa Cevasco, Roberto Schwarz e Paulo Arantes. O debate foi parcialmente publicado na Folha de S. Paulo, numa época em que discussões de relevância ainda tinham espaço na imprensa, e a crítica literária não estava restrita a periódicos acadêmicos lidos apenas por especialistas. O texto apareceu em uma coluna assinada pelo próprio Schwarz em 1992. 

Maria Elisa Cevasco perguntou a Jameson sobre sua trajetória pessoal, especialmente como ele havia se tornado marxista. Jameson, tão discreto como sempre, evitou a pergunta biográfica — como afirmou certa vez em “On not giving interviews” (2006), evitava conceder entrevistas por considerar que esse formato reduzia a reflexão intelectual à mera opinião, uma forma empobrecida, polêmica e jornalística, carente de densidade política e teórica, como se tornaria ainda mais evidente na era das redes sociais. Preferiu, assim, falar sobre o contexto social e político em que se formou. Considero esse relato valioso justamente por tratar de questões que Jameson raramente discute em sua obra e nas poucas entrevistas que concedeu. Ele se descreveu como um intelectual dos anos 1950, e não dos anos 1960, alguém formado na era Eisenhower e no período do macarthismo, quando se silenciou o discurso de esquerda nos Estados Unidos. Jameson destacou que a esquerda americana dos anos 1960 estava desvinculada da tradição do Partido Comunista dos anos 1930 e 1940, tendo se desdobrado como um movimento completamente diverso do anterior. Apresentou-se, então, como alguém situado entre esses dois momentos — um marxista formado durante um intervalo político (ou, como Neil Larsen corretamente sugeriu noutro debate, o projeto de Jameson poderia ser entendido como uma tentativa de reunir os dois espíritos dos anos 1940 e 1960 do marxismo americano). 

Jameson descreveu aqueles anos como um período de consolidação e redescoberta do modernismo, de consagração de obras de Ezra Pound, André Gide, Thomas Mann e outros. E afirmou que, nos Estados Unidos, a estética modernista — diferentemente do que ocorreu na Europa — servia como uma forma de protesto contra a sociedade corporativa e gerencial dos trinta anos gloriosos, uma maneira de rejeitar essa sociedade. Em entrevista mais recente ao The Paris Review, conta que foi justamente porque queria estudar o modernismo que se doutorou num Departamento de francês — já que nos EUA daquele período nem os departamentos de inglês, nem de literatura comparada (que ele depois transformou) se ocupavam desses textos. Não é de se estranhar, portanto, que ele tenha sido atraído mais tarde por Theodor W. Adorno, com seu marxismo modernista e sua crítica da sociedade administrada. Esse modernismo, que os americanos julgavam apolítico, era, segundo Jameson, profundamente antiburguês, pois questionava a transformação do eu e do mundo. 

Oswald de Andrade, modernista brasileiro dos anos 1920, que se tornou comunista nos anos 1930, observou certa vez que, para o modernismo dos anos de 1920, o oposto do burguês ainda não era o proletário, mas o boêmio. Há algo disso que ressoa na fala de Jameson, no sentido de que o modernismo pode abrir outros caminhos.  Nesse debate, ele afirma: “quando era modernista, pude me desenvolver numa direção política”. A noção de “estilo” mobilizada por Jameson em sua obra não tem pouco a ver com isso. Para o crítico, em alguma medida, repensar formas estéticas e linguagens é repensar também formas sociais (e vice-versa). Isso evidencia como, para Jameson, a política está intrinsecamente ligada à forma — e vale lembrar que ele chega a essas reflexões sobre o caráter anti-gerencial do modernismo partindo de um autor reacionário como Erza Pound, por exemplo.

Conforme consta nas reflexões expostas em Inventions of a Present (citada na epígrafe deste texto), as considerações marxistas da crítica literária não aparecem sempre como se esperaria. Mais tarde, segundo Jameson, a Revolução Cubana mostraria que o socialismo estava muito próximo dos Estados Unidos, o que acabou sendo mais decisivo para seu interesse no marxismo do que qualquer fato biográfico — um socialismo, segundo ele, bastante distinto daquele do bloco soviético. Assim, nesse contexto da Guerra Fria, Jameson observa que revolução política e revolução formal convergiram no seu interesse pelo marxismo e pela dialética. Isso, por si só, explica muito do motivo pelo qual a renovação do marxismo nos EUA ocorreu no campo da literatura.

A partir desse ponto do debate, Roberto Schwarz fez uma sugestão instigante que gostaria de explorar aqui. Disse que o modernismo europeu foi uma força que “desprovincianizou” o contexto teórico americano e até o próprio marxismo. Trata-se de uma ideia interessante: uma desprovincianização que vem do centro, de certa forma, de cima para baixo (da Europa para os EUA), mas cujo efeito não foi simplesmente restaurar o cânone, e sim transformá-lo. Uma observação que vai na mesma direção do que escreveu Adorno certa vez, a saber, que o modernismo poderia ser lido como uma forma de obsolescência do moderno, e não como sua expressão positiva. Isto é, o modernismo é ele próprio um sintoma da decadência do moderno. Lido dessa maneira, ele pôde ser uma força crítica nos anos dourados do capitalismo norte-americano. 

Jameson era produto de uma ex-colônia que se tornou império. E, assim como seu país, parece-me que ocupava uma posição intermediária, análoga àquela que discute em seu ensaio polêmico e amplamente debatido “Modernismo e Imperialismo”, no qual argumenta que no século XX, para apreender a totalidade de um mundo que se globalizava, seria necessário pensar o nexo entre Norte e Sul, entre o centro e a periferia para entender não só o modernismo, mas a mudança de eixo da literatura que, para apreender a totalidade, precisava de alguma forma incorporar o vínculo colonial. Mencionei anteriormente que isso o aproxima da “dialética brasileira” e de sua discussão sobre o capitalismo periférico, porque evidencia não a importância da posição em si, tomada como uma ontologia geográfica (maneira como muitos leem equivocadamente a obra de alguém como Schwarz), mas o modo como o estranhamento ou a desprovincianização do pensamento — e especialmente do pensamento marxista — não vem da posição propriamente dita, mas do choque, do nexo, ainda que desigual, entre dois mundos

Ao longo de sua trajetória intelectual, Jameson soube fazer de uma contradição fundamental — a posição ambígua dos Estados Unidos como centro imperial do capitalismo global e, ao mesmo tempo, como sociedade marcada por formas de subdesenvolvimento estrutural típicas do Terceiro Mundo — um ponto de partida estratégico para a construção de sua crítica. Atento ao choque, assumiu essa duplicidade não como obstáculo, mas como chave heurística, e ocupou uma posição privilegiada enquanto crítico marxista estadunidense. Foi a partir dessa posição que elaborou um esforço notável para desprovincianizar o marxismo por dois vetores simultâneos e complementares: “por cima”, através de uma releitura sofisticada do modernismo europeu como problema histórico, estético e ideológico (e como a leitura de uma decadência do moderno que servia como crítica da ideologia do capitalismo americano); e “por baixo”, por meio da incorporação da literatura e da cultura do chamado Terceiro Mundo — América Latina, China, e as periferias esquecidas da Europa — como instâncias críticas indispensáveis para a reconstrução de uma teoria mundial da forma. 

Se a parte de baixo, hoje, deve ser deixada para outro dia (já que não há espaço para comentar tudo), vale dizer que o projeto que a sustentava permanece, a meu ver, profundamente relevante. Isso apesar das críticas legítimas — ou sobretudo diante delas —, que se dirigem à sua teoria da alegoria nacional ou às suas generalizações sobre a literatura do Terceiro Mundo. Em tempos de retração dos horizontes utópicos, de cerco ao pensamento radical e de crescimento vertiginoso de uma forma paradoxalmente internacionalista de provincianismo — o da extrema direita global —, a ambição teórica de Jameson não poderia ser mais atual.  

Jameson não apenas integrou seu marxismo — nascido em condições intelectuais altamente singulares — ao corpo mais amplo da Teoria Crítica; ele também o projetou como modelo para uma crítica literária capaz de enfrentar o desafio da mundialização. Nesse sentido, sua obra funciona como um verdadeiro atlas da literatura planetária, um mapeamento da imaginação estética que atravessa continentes e formações históricas diversas, sem jamais se render à abstração ou ao universalismo ingênuo, mas sem igualmente recair na doxa localista (muito presente, por exemplo, em certo pensamento decolonial para o qual a especificidade torna-se essência). É talvez por isso que sua influência tenha sido tão marcante nas periferias do capitalismo: sua teoria ofereceu uma alavanca poderosa para desprovincianizar não apenas a crítica literária, mas o próprio marxismo. Seu legado é menos uma obra do que um projeto, talvez o mais desenvolvido até agora, de uma crítica literária dialética e, sobretudo, internacionalista.

* Esta é uma versão ligeiramente modificada do texto escrito para a mesa Open the future: cartographie et archéologie chez Jameson, coordenada por Vincent Chanson & Frederico Lyra de Carvalho no Congresso “Historical Materialism – Conjurer la catastrophe” em Paris, 2025. 

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