Fredric Jameson, modernismo e a desprovincianização do marxismo

Foto: Wikimedia Commons
Por Bruna Della Torre
“Pode-se de
fato concordar que uma crítica marxista que não tenha nada a dizer sobre
a luta de classes ou sobre a natureza do capitalismo dificilmente
acabará tendo algo de verdadeiramente marxista. Mas tais considerações
nem sempre assumem a forma que se poderia esperar…“
— Inventions of a Present, Fredric Jameson
Devemos em larga medida a Fredric Jameson a maneira como periodizamos a segunda metade do século XX. Talvez se estenda para o tempo aquilo que Joan Didion afirmou sobre o espaço, quer dizer, que “um lugar pertence para sempre àquele que mais intensamente o reivindica, que mais obsessivamente o recorda, que o arranca de si mesmo, que o molda, que o recria, que o ama [ou que o odeia] de forma tão radical que o refaz à sua própria imagem” — como William Faulkner e Ernest Hemingway fizeram do Mississippi e do Kilimanjaro os seus territórios literários, recorda Didion. Se é assim, a era que sucedeu a manhã seguinte dos anos 1960 pertence a Jameson. Sua leitura do pós-modernismo não só esculpiu a teoria marxista nas últimas décadas e mapeou os conflitos dos tempos, como transformou para sempre a crítica cultural de esquerda. Jameson foi um dos primeiros autores a enfrentar as consequências estéticas do espraiamento da indústria cultural. Pensador exímio da forma que era — vale lembrar que seu livro Marxismo e forma é um marco nos estudos desse campo —, Jameson fez da ficção científica (até então entendida como um gênero comercial) um objeto de estudo para o marxismo. Também lançou mão de seu arcabouço literário para refletir sobre o cinema de Hollywood, uma contribuição frequentemente malcompreendida, e que hoje se converteu na única forma de crítica cultural que ainda mobiliza a esquerda, cativa do que se poderia denominar “Netflix Studies“. Mas o que é pouco retomado por sua fortuna crítica é que Jameson só se tornou um teórico do pós-modernismo porque era, antes de qualquer outra coisa, um teórico do modernismo. Para ele, o século XX se organiza em torno de dois tempos decisivos: modernismo e pós-modernismo.
Este texto parte de um esforço em curso de elaboração de uma leitura da teoria do modernismo em sua obra. A ideia aqui não é oferecer uma análise exaustiva, mas apenas esboçar algumas considerações preliminares sobre o tema a partir de um registro que nos auxilia, salvo engano, a compreender o papel do modernismo em sua obra — e que também tem a ver com o Brasil. Esse material permite observar como a desprovincianização do pensamento pode vir dos lugares mais surpreendentes, e como esse movimento vincula Jameson de alguma forma a certa dialética brasileira.
À ocasião do lançamento da tradução de O inconsciente político, Jameson esteve no Brasil no congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada e participou de um debate com Maria Elisa Cevasco, Roberto Schwarz e Paulo Arantes. O debate foi parcialmente publicado na Folha de S. Paulo, numa época em que discussões de relevância ainda tinham espaço na imprensa, e a crítica literária não estava restrita a periódicos acadêmicos lidos apenas por especialistas. O texto apareceu em uma coluna assinada pelo próprio Schwarz em 1992.
Maria Elisa Cevasco perguntou a Jameson sobre sua trajetória pessoal, especialmente como ele havia se tornado marxista. Jameson, tão discreto como sempre, evitou a pergunta biográfica — como afirmou certa vez em “On not giving interviews” (2006), evitava conceder entrevistas por considerar que esse formato reduzia a reflexão intelectual à mera opinião, uma forma empobrecida, polêmica e jornalística, carente de densidade política e teórica, como se tornaria ainda mais evidente na era das redes sociais. Preferiu, assim, falar sobre o contexto social e político em que se formou. Considero esse relato valioso justamente por tratar de questões que Jameson raramente discute em sua obra e nas poucas entrevistas que concedeu. Ele se descreveu como um intelectual dos anos 1950, e não dos anos 1960, alguém formado na era Eisenhower e no período do macarthismo, quando se silenciou o discurso de esquerda nos Estados Unidos. Jameson destacou que a esquerda americana dos anos 1960 estava desvinculada da tradição do Partido Comunista dos anos 1930 e 1940, tendo se desdobrado como um movimento completamente diverso do anterior. Apresentou-se, então, como alguém situado entre esses dois momentos — um marxista formado durante um intervalo político (ou, como Neil Larsen corretamente sugeriu noutro debate, o projeto de Jameson poderia ser entendido como uma tentativa de reunir os dois espíritos dos anos 1940 e 1960 do marxismo americano).
Jameson descreveu aqueles anos como um período de consolidação e redescoberta do modernismo, de consagração de obras de Ezra Pound, André Gide, Thomas Mann e outros. E afirmou que, nos Estados Unidos, a estética modernista — diferentemente do que ocorreu na Europa — servia como uma forma de protesto contra a sociedade corporativa e gerencial dos trinta anos gloriosos, uma maneira de rejeitar essa sociedade. Em entrevista mais recente ao The Paris Review, conta que foi justamente porque queria estudar o modernismo que se doutorou num Departamento de francês — já que nos EUA daquele período nem os departamentos de inglês, nem de literatura comparada (que ele depois transformou) se ocupavam desses textos. Não é de se estranhar, portanto, que ele tenha sido atraído mais tarde por Theodor W. Adorno, com seu marxismo modernista e sua crítica da sociedade administrada. Esse modernismo, que os americanos julgavam apolítico, era, segundo Jameson, profundamente antiburguês, pois questionava a transformação do eu e do mundo.
Oswald de Andrade, modernista brasileiro dos anos 1920, que se tornou comunista nos anos 1930, observou certa vez que, para o modernismo dos anos de 1920, o oposto do burguês ainda não era o proletário, mas o boêmio. Há algo disso que ressoa na fala de Jameson, no sentido de que o modernismo pode abrir outros caminhos. Nesse debate, ele afirma: “quando era modernista, pude me desenvolver numa direção política”. A noção de “estilo” mobilizada por Jameson em sua obra não tem pouco a ver com isso. Para o crítico, em alguma medida, repensar formas estéticas e linguagens é repensar também formas sociais (e vice-versa). Isso evidencia como, para Jameson, a política está intrinsecamente ligada à forma — e vale lembrar que ele chega a essas reflexões sobre o caráter anti-gerencial do modernismo partindo de um autor reacionário como Erza Pound, por exemplo.
Conforme consta nas reflexões expostas em Inventions of a Present (citada na epígrafe deste texto), as considerações marxistas da crítica literária não aparecem sempre como se esperaria. Mais tarde, segundo Jameson, a Revolução Cubana mostraria que o socialismo estava muito próximo dos Estados Unidos, o que acabou sendo mais decisivo para seu interesse no marxismo do que qualquer fato biográfico — um socialismo, segundo ele, bastante distinto daquele do bloco soviético. Assim, nesse contexto da Guerra Fria, Jameson observa que revolução política e revolução formal convergiram no seu interesse pelo marxismo e pela dialética. Isso, por si só, explica muito do motivo pelo qual a renovação do marxismo nos EUA ocorreu no campo da literatura.
A partir desse ponto do debate, Roberto Schwarz fez uma sugestão instigante que gostaria de explorar aqui. Disse que o modernismo europeu foi uma força que “desprovincianizou” o contexto teórico americano e até o próprio marxismo. Trata-se de uma ideia interessante: uma desprovincianização que vem do centro, de certa forma, de cima para baixo (da Europa para os EUA), mas cujo efeito não foi simplesmente restaurar o cânone, e sim transformá-lo. Uma observação que vai na mesma direção do que escreveu Adorno certa vez, a saber, que o modernismo poderia ser lido como uma forma de obsolescência do moderno, e não como sua expressão positiva. Isto é, o modernismo é ele próprio um sintoma da decadência do moderno. Lido dessa maneira, ele pôde ser uma força crítica nos anos dourados do capitalismo norte-americano.
Jameson era produto de uma ex-colônia que se tornou império. E, assim como seu país, parece-me que ocupava uma posição intermediária, análoga àquela que discute em seu ensaio polêmico e amplamente debatido “Modernismo e Imperialismo”, no qual argumenta que no século XX, para apreender a totalidade de um mundo que se globalizava, seria necessário pensar o nexo entre Norte e Sul, entre o centro e a periferia para entender não só o modernismo, mas a mudança de eixo da literatura que, para apreender a totalidade, precisava de alguma forma incorporar o vínculo colonial. Mencionei anteriormente que isso o aproxima da “dialética brasileira” e de sua discussão sobre o capitalismo periférico, porque evidencia não a importância da posição em si, tomada como uma ontologia geográfica (maneira como muitos leem equivocadamente a obra de alguém como Schwarz), mas o modo como o estranhamento ou a desprovincianização do pensamento — e especialmente do pensamento marxista — não vem da posição propriamente dita, mas do choque, do nexo, ainda que desigual, entre dois mundos.
Ao longo de sua trajetória intelectual, Jameson soube fazer de uma contradição fundamental — a posição ambígua dos Estados Unidos como centro imperial do capitalismo global e, ao mesmo tempo, como sociedade marcada por formas de subdesenvolvimento estrutural típicas do Terceiro Mundo — um ponto de partida estratégico para a construção de sua crítica. Atento ao choque, assumiu essa duplicidade não como obstáculo, mas como chave heurística, e ocupou uma posição privilegiada enquanto crítico marxista estadunidense. Foi a partir dessa posição que elaborou um esforço notável para desprovincianizar o marxismo por dois vetores simultâneos e complementares: “por cima”, através de uma releitura sofisticada do modernismo europeu como problema histórico, estético e ideológico (e como a leitura de uma decadência do moderno que servia como crítica da ideologia do capitalismo americano); e “por baixo”, por meio da incorporação da literatura e da cultura do chamado Terceiro Mundo — América Latina, China, e as periferias esquecidas da Europa — como instâncias críticas indispensáveis para a reconstrução de uma teoria mundial da forma.
Se a parte de baixo, hoje, deve ser deixada para outro dia (já que não há espaço para comentar tudo), vale dizer que o projeto que a sustentava permanece, a meu ver, profundamente relevante. Isso apesar das críticas legítimas — ou sobretudo diante delas —, que se dirigem à sua teoria da alegoria nacional ou às suas generalizações sobre a literatura do Terceiro Mundo. Em tempos de retração dos horizontes utópicos, de cerco ao pensamento radical e de crescimento vertiginoso de uma forma paradoxalmente internacionalista de provincianismo — o da extrema direita global —, a ambição teórica de Jameson não poderia ser mais atual.
Jameson não apenas integrou seu marxismo — nascido em condições intelectuais altamente singulares — ao corpo mais amplo da Teoria Crítica; ele também o projetou como modelo para uma crítica literária capaz de enfrentar o desafio da mundialização. Nesse sentido, sua obra funciona como um verdadeiro atlas da literatura planetária, um mapeamento da imaginação estética que atravessa continentes e formações históricas diversas, sem jamais se render à abstração ou ao universalismo ingênuo, mas sem igualmente recair na doxa localista (muito presente, por exemplo, em certo pensamento decolonial para o qual a especificidade torna-se essência). É talvez por isso que sua influência tenha sido tão marcante nas periferias do capitalismo: sua teoria ofereceu uma alavanca poderosa para desprovincianizar não apenas a crítica literária, mas o próprio marxismo. Seu legado é menos uma obra do que um projeto, talvez o mais desenvolvido até agora, de uma crítica literária dialética e, sobretudo, internacionalista.
* Esta é uma versão ligeiramente modificada do texto escrito para a mesa Open the future: cartographie et archéologie chez Jameson, coordenada por Vincent Chanson & Frederico Lyra de Carvalho no Congresso “Historical Materialism – Conjurer la catastrophe” em Paris, 2025.
blogue da editora Boitempo
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