quinta-feira, 24 de julho de 2025

 

 

Matadouros

 

Eu nunca padeci de insónias. Neste ano, sobretudo neste ano, são frequentes. Sou capaz de ficar uma hora ou mais a olhar o escuro, com o cérebro liberto a pensar à toda. Depois tomo meio comprimido de uma coisa que me provoca uma suave relaxamento. É legal e os médicos aconselham. O que eles não disseram, ou não sabem, é que o seu efeito depende muito de como foi o dia vivido pelo indivíduo. Acho eu. Senão não compreendia porque “vivi”ontem  um violento pesadelo, embora o tal medicamento me provocasse a sonolência como anteriormente. Não me lembro do sonho, só me lembro que nele chorei como um homem pode chorar se não tiver vergonha ou a perda tiver sido grande demais. O Doutor Freud (ou um seu discípulo mais ortodoxo) diria que foi um sonho sexual. Por exemplo : uma frustração violenta amorosa, o desejo não realizado, rejeitado. Que se guardou no inconsciente e no sonho se manifestou. Para muitos casos a técnica do Doutor Freud acerta, para este não. Não explica as labaredas que eu via numa estrada e uns gritos lancinantes. Não temos apenas sonhos sexuais, e não sou eu apenas que o digo. Conheci um indivíduo que sofria de insónias seguidas de pesadelos horríveis (dizia ele). Estive com ele a petiscar uns camarões num restaurante que fica no cimo de uma rocha num lugar chamado de Porto Novo. Já não via esse amigo há uns séculos. Passou por aqui só para me rever e cumprimentar. Tem um apelido insólito. O nome completo é José António Azeiteiro. Posso escrever o nome dele aqui que ele não se importa. Aliás, não se importa com coisa nenhuma, nem jamais se importou. Ou então importasse com tudo e disfarça. É Azeiteiro porque o avô vendia almudes de azeite, andava de aldeia em aldeia com uma mula carregada, e ele e a besta esfalfavam-se para poder sustentar uma carrada de filhos. Destes viria a nascer um José António no exato dia em que a Segunda Guerra Mundial terminou. Eu acredito em coincidências, não acredito em milagres. Todavia, ele costumava dizer que a Guerra Mundial acabou porque ele nasceu, e não o contrário. A fama que o meu amigo carrega às costas a vida toda é essa mesma : é maluco. Não por ser imbecil, mas por se comportar de uma forma que incomodava toda a gente. Desorientava todo o mundo, ninguém o compreendia nem sabia lidar com as distrações dele, com aquele ar de outro planeta com que ele passava pelas situações mais horríveis. Por exemplo : o pai fora um comunista teve de sair de casa para se tornar funcionário clandestino ; o José António foi criado por umas tias solteironas, chatas como sei lá o quê; ele passou, então, a infância e a adolescência sob uma ditadura terrorista, sofreu muito acho eu com a ausência do pai que ele admirava muito ; meteu-se nas lutas estudantis contra a ditadura, levou pancada de todos os lados e de todas as maneiras (queriam sobretudo que ele identificasse o lugar onde se escondia o pai), nunca abriu a boca nem para dizer o nome e recusou-se a comer a porcaria que lhe davam para comer. Ia morrendo.

Não conversámos sobre isso enquanto emborcavamos copos cheios de cerveja fresquinha e loira. No entanto, enquanto ele deambulava de assunto para assunto sobre os filhos e os netos, sobre as muitas ocupações que desempenhara e coisas que tais, perdendo-se e pedindo-me ajuda para terminar qualquer dessa histórias, eu ia recordando peripécias do seu comportamento invulgar nos tempos remotos em que o conhecera. As coisas aconteciam-lhe e ele fica sempre surpreendido, interrogava: “Porquê?” Ou, “Porquê a mim?”. Na guerra colonial foi alferes-miliciano. Como se apresentou coma uma avaliação na recruta abaixo do medíocre deram-lhe um pequeno grupo de homens que tinham descido todos da serra da Estrela e que não sabiam nicles do que andavam ali a fazer e o alferes perdia-se deles no mato, os homens, rudes mas habituados a sobreviver em qualquer circunstância geográfica, regressados ao quartel eram obrigados, aos gritos do coronel, a procurarem o seu chefe imediatamente. Era descoberto umas vezes ao pé do lago Niassa a lançar paus e a vê-los subir e descer conforme os hipopótamos subiam e mergulhavam, ou a observar os trabalhos hercúleos de um formigueiro. Contaram que num certo dia em que uma razia praticada por comandos incendiou uma pequena aldeia de três ou quatro palhotas, os de infantaria tentaram salvar pelo menos as crianças, enquanto ele se deixou ficar ao longe a chorar como uma dessas crianças, como se soubesse que as crianças não tinham salvação.

 O José António tinha esse apelido, mas era alcunha, não se assinava assim acho eu. No Alentejo, dizem-me , as alcunhas ficam como apelidos. Não sei se é verdade. O meu amigo, isso é certo, não vendia azeite. Lia uns livros esquisitos que falavam de extraterrestres que só eram descobertos entre os humanos se estes colocassem uns óculos especiais, ou de naves que tinham exterminado os dinossauros. Por causa deste genocídio na Faixa de Gaza ele deixou de ler. Agora está convencido que de facto são os humanos que fazem essas atrocidades e outras. Ou seja, que o salto dos macacos para a inteligência não foi fornecido por um monólito negro e gigante como nos contou o Arthur Clark no seu “2001: Uma Odisseia no espaço”. Tudo se trata de humanos sem interferências exteriores.

 Disse-me que tem pesadelos nos quais é frequente chorar desesperadamente. Não com labaredas e carros a arder numa estrada doméstica como eu sonho, sim com cidades arrasadas como sucedeu com a cidade que fora belíssima de Dresden bombardeada pelos aliados (americanos e britânicos) sem qualquer motivo porque já nos finais da guerra não possuía armas nenhumas, nem fábricas a produzi-las, somente uns jardins maravilhosos que, sob as bombas, ficaram atafulhados de pessoas vivas e depois mortas, conforme nos relata Curzio Malaparte no seu “Kaputt”. Gaza. Dresden. José António. Passou pela vida como um meteoro às arrecuas. Quando se encontrar a expirar o último suspiro vai pensar que é natural. Afinal tudo é humano.

-----------------N. P. ----------------2025

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