quarta-feira, 4 de junho de 2025
A música folk e os progressistas norte-americanos
Os cantores comunistas que formaram Bob Dylan
Pedro Silva
Antes de Bob Dylan ser Bob Dylan, ele foi discípulo de Woody Guthrie. Mas Guthrie e seus contemporâneos eram mais do que cantores folk — eram radicais perseguidos, moldando a música estadunidense enquanto enfrentavam o "pânico vermelho".
Em 1960, o jovem Robert Zimmerman — que começara a se chamar “Bob Dylan” — viajou das planícies geladas de Minnesota para Nova Jersey em peregrinação. Seu destino: a cabeceira de seu ídolo doente, o lendário herói folk, Woody Guthrie. Ele era obcecado por Woody, ou melhor, pela figura mítica que Guthrie criou em suas memórias, Bound for Glory [Rumo à Glória]. O livro retratava Guthrie como um trovador folk que viajava de trem e cantava para acampamentos de mendigos, sindicatos e bares, munido apenas de um violão e uma gaita. O biógrafo Clinton Heylin descreveu Dylan nessa época como estando totalmente imerso em sua “fase Guthrie”.
Um Completo Desconhecido, inspirado em Dylan Goes Electric! [Dylan Fica Elétrico!], de Elijah Wald, trouxe Dylan de volta aos holofotes. No entanto, a representação de sua história encobre um fato histórico fundamental: tanto Pete Seeger quanto Woody Guthrie — figuras centrais na carreira de Dylan e na narrativa do filme — eram comunistas. Considerando os limites do que um filme pode retratar, vale a pena revisitar o período anterior a Um Completo Desconhecido para ver o que moldou as primeiras influências de Dylan.
Quando Seeger e Guthrie cantaram por suas vidas
“Não tenho certeza se esses caras vão tentar interromper esta reunião ou não”, confessou Robert Wood a Pete Seeger e Woody Guthrie, com os olhos fixos na fileira de homens enfileirados no fundo do salão do sindicato. Era 1940, e a greve da Refinaria Mid-Continent se arrastava há mais de um ano, com sua violência se manifestando em atentados a bomba, tiroteios e até ataques com ácido. Naquele dia, o salão continha sessenta trabalhadores exaustos e suas famílias, amontoados sob o olhar severo dos homens no fundo — cuja lealdade, fosse à polícia, à Guarda Nacional ou à companhia petrolífera, permanecia uma incógnita.
Seeger e Guthrie haviam se conhecido recentemente, mas quando Guthrie convidou o jovem músico para uma viagem de carro ao Texas, Seeger aproveitou a oportunidade. Ambos compartilhavam a crença de que o socialismo e a música folk estavam interligados, que seus objetivos revolucionários eram melhor expressos por meio da autenticidade da música folk. Seeger afirmou mais tarde, em uma carta selada de 1956 para seus netos, que “ser comunista me ajudou, acredito, a ser um cantor e folclorista melhor, e um cidadão mais altruísta”.
O que aconteceu naquela viagem é lendário. Eles tocaram música em bares para arrecadar dinheiro para a gasolina, deram carona a curiosos (incluindo um homem sem pernas chamado Brooklyn Speedy) e, em mais de uma ocasião, escaparam por pouco da prisão.
Ao chegarem a Oklahoma, Woody contatou o Partido Comunista local, que enviou militantes, Robert e Ina Wood, para escoltá-los. Os Woods organizaram uma espécie de mini-turnê, levando-os a cantar para os moradores pobres de Hooverville, para a Aliança dos Trabalhadores Desempregados e para os petroleiros em greve. Foi o início de uma amizade e colaboração para toda a vida — mas, na época, não estava claro se essa parada terminaria na prisão deles ou em algo muito pior.
Naquela noite, no salão do sindicato, enquanto a tensão ameaçava explodir, Robert Wood teve uma ideia original para acalmar a situação. “Vejam se conseguem fazer a galera toda cantar”, instruiu Guthrie e Seeger.
“Como artistas, eles buscavam incorporar a visão do escritor comunista Mike Gold de um ‘Shakespeare de macacão’ — uma voz cultural para as lutas sociais da época.”
Nenhum dos dois estava totalmente confiante de que poderiam desempenhar o papel de pacificadores. Seeger, com apenas 22 anos, ainda era mais um fã do que um colaborador do então pouco conhecido, mas amplamente respeitado, Woody Guthrie. Eles também eram, em muitos aspectos, opostos. Guthrie era baixo, direto, órfão e jovem, e passou seus primeiros anos pegando trens e cantando em bares. Seeger, por outro lado, era alto, de fala mansa, um desertor de Harvard que não fazia ideia de como embarcar clandestinamente em um trem. No entanto, apesar de suas diferenças, os dois compartilhavam um profundo compromisso com a música e a política, vendo a música folk como a voz das contradições dos Estados Unidos — sua beleza e tragédia, sua diversidade e lutas. Unidos em sua oposição às duras realidades do capitalismo, ambos viam no Partido Comunista a visão de uma sociedade mais justa e igualitária.
Seeger havia sido membro da Liga dos Jovens Comunistas em Harvard antes de, em suas palavras, “se formar no Partido Comunista”. Guthrie foi lançado em lutas relacionadas ao partido por meio de seu programa de rádio na Califórnia — o primeiro agente de reservas de Guthrie, Ed Robbin, foi tanto o apresentador do programa antes dele quanto editor do People’s World [Mundo Popular], o jornal do Partido Comunista na Costa Oeste. Guthrie viria a escrever uma coluna diária para o jornal, chamada “Woody Sez”. Como artistas, eles buscavam incorporar a visão do escritor comunista Mike Gold de um “Shakespeare de macacão” — uma voz cultural para as lutas sociais da época.
Naquela noite, no salão sindical, essas lutas estavam em plena exibição. Qualquer pessoa presente teria visto a mudança brusca na atmosfera quando Guthrie e Seeger sacaram seus instrumentos. Enquanto os convidados indesejados no fundo observavam a sala, todos os trabalhadores e suas famílias começaram a cantar. Mesmo que por apenas um instante, as tensões se dissiparam.
“Talvez tenha sido a presença de tantas mulheres e crianças que os desanimou”, refletiu Seeger mais tarde. “Ou talvez tenha sido a música.”
A Casa Almanac
Talvez tenha sido a música que levou, mais tarde naquele ano, Ina e Robert Wood a serem presos em sua loja, a Livraria Progressista. Eles foram condenados a dez anos de prisão por violar a Lei do Sindicalismo Criminal. Era ilegal, segundo a lei, vender livros que defendessem o sindicalismo criminoso ou a sabotagem. Entre os títulos supostamente subversivos em questão estavam obras como a Constituição dos EUA, a Bíblia e a biografia de Benjamin Franklin, escrita por Carl Van Doren.
O pânico vermelho de Oklahoma, em 1940, inaugurou uma lista estadual de suspeitos de serem comunistas, forçando outra musicista radical de Oklahoma, Agnes “Sis” Cunningham, a fugir para Nova York. Integrante do grupo teatral de esquerda Red Dust Players, Cunningham chamou a atenção do FBI, que a descreveu como “muito ativa com o elemento comunista”.
Pete Seeger estava ocupado com papeladas quando Sis Cunningham e seu marido, Gordon Friesen, chegaram à Casa Almanac — o apartamento em Greenwich Village onde o termo “hootenanny” foi usado pela primeira vez para descrever uma apresentação folk improvisada. (Os hootenannies de domingo à noite também ajudavam a pagar o aluguel.) Seeger se levantou para dar boas-vindas animadas e os apresentou a Lee Hays, que estava absorto em transformar um par de colheres em um instrumento musical, e a um violonista de Oklahoma, de cabelos desgrenhados: Woody Guthrie. Cunningham e Friesen logo se mudaram para lá e Sis, acordeonista, tornou-se uma membra central do grupo.
Pouco depois da fatídica turnê por Oklahoma, Guthrie e Seeger uniram forças na cidade de Nova York, onde a Casa Almanac se tornou parte de uma comunidade urbana de cantores folk de esquerda. Era uma mistura de músicos, radicais e andarilhos unidos por duas coisas: música e a concepção de um mundo melhor.
Aqui, a narrativa fragmentada de Guthrie encontrou a musicalidade refinada de Seeger. Eles escreveram e interpretaram canções que capturavam as lutas das pessoas comuns, de mineiros de carvão a meeiros, lançando álbuns impregnados da linguagem da luta de classes.
Os Almanac Singers eram assumidamente políticos. Suas canções frequentemente seguiam “a linha do Partido”, alternando entre hinos antifascistas e “canções de paz” isolacionistas durante o breve período do Pacto Molotov-Ribbentrop — e retornando à luta contra os fascistas após a invasão nazista da União Soviética. Críticos descreveram essa mudança política como ingênua ou oportunista, mas para Guthrie, Seeger e seus companheiros, essas mudanças refletiam a urgência de sua época.
Como Seeger explicou posteriormente em uma entrevista de 2006, o Reino Unido e os Estados Unidos toleraram Adolf Hitler, esperando que ele atacasse a União Soviética. Joseph Stalin interrompeu seus planos ao assinar um pacto de não agressão, temporariamente derrubando essa expectativa. Os comunistas lutavam contra o fascismo há muito tempo na Espanha, Alemanha e Itália, instando a Liga das Nações a agir, mas viam a guerra como imperialista até que os nazistas invadiram a URSS. Isso transformou completamente o conflito em um ataque ao socialismo, levando Woody a dizer a Pete: “Acho que não estamos mais cantando canções de paz”.
Os Almanac Singers eram famosos — pelo menos nas páginas do Daily Worker. O colunista Mike Gold, um dos primeiros apoiadores, viu neles algo mais inspirador do que o Composers’ Collective. “No Daily Worker, éramos famosos”, disse Seeger em uma entrevista, “mas seguíamos desconhecidos em outros lugares”. Mas eles lançaram as bases para o que estava por vir.
Os primeiros músicos a serem cancelados eram comunistas
Em 1950, a música “Goodnight, Irene”, dos Weavers, era a número um nas jukeboxes. Em 1951, seus sucessos — “Tzena”, “Kisses Sweeter Than Wine” e “So Long, It’s Been Good to Know Yuh” — tocavam em toda parte. Essas músicas, arranjadas com cordas suaves, flautas e andamentos lentos, ofereciam uma versão refinada e radiofônica do folk. Nenhum grupo folk na cena musical de Nova York havia alcançado tal nível.
Mas sua fama durou pouco. Um de seus membros, Pete Seeger, foi o único músico nomeado em Red Channels, o infame livreto de 1950 que denunciava supostos laços comunistas entre figuras do mundo da cultura. Com o FBI apoiando a lista, os Weavers se tornaram o primeiro grupo musical a ser verdadeiramente “cancelado” no sentido moderno. Seus comerciais de televisão foram descartados, seus shows — incluindo um na Feira Estadual de Ohio — cancelados. (O governador de Ohio, Frank Lausche, recebeu pessoalmente documentos confidenciais do FBI diretamente de J. Edgar Hoover antes de cancelar sua apresentação, embora a decisão tenha sido tão rápida que seus nomes ainda apareceram nos programas.) A Variety observou que eles foram “o primeiro grupo cancelado em um café de Nova York por causa de supostas afiliações de esquerda”.
“Quando testemunhou perante o Comitê de Atividades Antiestadunidenses da Câmara (HUAC) em 1955, Seeger se recusou a invocar a Quinta Emenda ou a citar nomes.”
A resistência de Seeger só agravou seus problemas. Quando testemunhou perante o Comitê de Atividades Antiestadunidenses da Câmara (HUAC) em 1955, Seeger recusou-se a invocar a Quinta Emenda ou a citar nomes. Em vez disso, contestou a própria autoridade do comitê para interrogar estadunidenses sobre suas crenças, citando implicitamente a Primeira Emenda. Como resultado, foi rotulado de “testemunha hostil”. Àquela altura, a inclusão na lista negra havia limitado as carreiras dos Almanac Singers, dos Weavers e do próprio Seeger. Em 1956, foi acusado de desacato ao Congresso, juntamente com Arthur Miller e o bom amigo de Albert Einstein, Dr. Otto Nathan.
Woody Guthrie nunca alcançou o nível de fama dos Weavers — e nunca foi citado em Red Channels. Enquanto o espírito da nação era sufocado por julgamentos anticomunistas, a saúde de Woody começou a se deteriorar. Ele seguiu os passos dos pais — desenvolvendo a doença de Huntington como sua mãe e, num eco trágico do pai, se queimando acidentalmente. As queimaduras em seu braço e mão direitos os deixaram inutilizáveis. Posteriormente, ele entrou e saiu de hospitais — até que um dia, não saiu mais.
Apesar da repressão, Seeger permaneceu desafiador e recordou essa época com carinho. “Isso me motivava”, refletiu mais tarde. Sua música era vista pelo governo mais poderoso do mundo como uma arma que valia a pena desarmar.
Uma luta e uma canção
Embora Seeger tenha encontrado público mais tarde na vida, ele nunca escapou completamente da mira do anticomunismo. Acabou na lista de banimento do programa de TV Hootenanny e vilipendiado por visitar o Vietnã do Norte durante a Guerra do Vietnã — embora figuras como Johnny Cash o tenham defendido, chamando-o de “um dos melhores estadunidenses e patriotas que já conheci”. Ele também se posicionou ao lado da onda mais jovem de cantores folk que se dirigiram ao Sul para apoiar as ações pelos direitos civis que ocorreram ao longo da década de 1960.
A história deles é mais do que uma nota de rodapé na vida de Bob Dylan. O autor de Dylan Goes Electric!, Elijah Wald, escreveu em uma publicação no Facebook já apagada que Um Completo Desconhecido “ignora tanto o humor quanto o compromisso político daquela época”. O legado de Dylan é complexo, e minimizar as maiores influências do início de sua carreira não o ajuda em nada.
A música folk, para Woody Guthrie e Pete Seeger, nunca foi apenas música — era memória, resistência e um lembrete de que, mesmo nos momentos mais difíceis, as canções mais simples ainda podem carregar o peso de um mundo melhor. Escrevendo sobre Guthrie, Mike Gold levantou uma questão: “Para onde estamos indo todos nós que apostamos nossas vidas em democracias? Quem pode dizer?” Ele encontrou a resposta nas canções “duras e dolorosas” de Guthrie — canções que “cheiravam a pobreza, sujeira genuína e sofrimento”. “A democracia é assim”, escreveu ele, “e é uma luta e uma canção”.
Talvez seja hora de uma nova “fase Guthrie” — pegar nossas máquinas contra o fascismo, como os cantores folk comunistas fizeram um dia, e ousar imaginar um novo mundo.
Sobre os autores
Taylor Dorrell
é um escritor e fotógrafo baseado em Columbus, Ohio. É escritor colaborador da Cleveland Review of Books, repórter da Columbus Free Press e fotógrafo freelancer.
terça-feira, 3 de junho de 2025
Dois passos atrás
Dizem-me : “Há tantos céus quantos quiseres!”.
Não sei, não sei, o céu é infinito?
Onde estava tudo no começo?
Eu chamava-te camarada, e vinham logo
mais cinco, trazendo o pão e abraços,
lembras-te? Escuta agora a cotovia
assustadiça, sobre árvores velhas derrubadas.
Aqueles que se levantaram do chão,
já a terra-mãe os consumiu.
Nas aldeias desertas os citadinos
almoçam aos domingos. Às vezes fogem
das matas de eucaliptos que ardem de repente.
Chamo-te e tu agora lentamente vens sozinho.
Os outros cinco perderam-se no caminho.
Já não nos sentaremos na mesa comum
da fraternidade universal.
O novo, afinal, não nasceu.
Escuta : a justiça para ser real
é dar a cada um o que é seu.
---------------N. P. --------Maio, 2025
Canto do amor e da luta
Alguns criticam o poeta:
“Deste em cantar amores camarada?”
Sim, camarada, eu canto a ternura :
que beleza!
nos olhos negros!
Eternos fossem os beijos!
Outros acusam severos:
“Camarada, nesta hora de perigos deixa os lirismos!
Menos importam agora
os teus amores!”
Como? Acaso não escutas
a doce música dos lábios
nas teclas dos pianos?
Acaso a liberdade não é amor,
viver livremente?
Logo, sossega, cantarei como souber o martírio dos nossos heróis.
Contra as seitas declamo a unidade agora de novo necessária,
“Fascismo, nunca mais!”,
E proclamo em versos as crianças mortas
em Gaza,
pelos que construíram museus turísticos
com as sandálias das crianças gazeadas por iguais nazis.
Confia, meu amigo, democrata e patriota :
não beberico o chá das cinco
com as damas da moda,
nem verto lágrimas com o canto dos rouxinóis
ao luar.
Luto com as armas dos meus pobres versos!
Enquanto lembro os meus amores.
------------N. P. --------Maio 2025
Vai
Caminhos
Solitários
por montes
e vales
da vida.
Água das fontes
A dor
A ferida.
O começo
é só música.
No fim
Um jardim
há de florir
se amares
as coisas pequenas.
Se escutares
o riso
das crianças
O grito
das andorinhas.
Eu digo
o que te espera
ainda ao longe
Muito longe
De novo
a música
e um rio
De estrelas
As vidas
que viveste.
Duvida sempre
e ousa negar.
Foi das fontes
onde bebeste
que se fez
o teu andar.
Não te guies
por utopias,
segue acompanhado
por terras
que primeiro
conheças.
As mãos nuas
Um olhar franco
São nossas
As praças
e as ruas.
Não te encerres
na tua Verdade
Maiúscula.
às vezes
para vencer
é preciso falar
noutras línguas.
E não esqueças
De regar
com as palavras
Perfeitas
Exatas
Os teus amores.
O resto?
São apenas rumores.
--------N. P. ----Junho 2025
domingo, 1 de junho de 2025
II. LITERATURA E PARTIDO
Em 1905, Lênin, através do artigo “A orga
nização do partido e a literatura do partido”, já
se colocava no centro de uma polêmica ideoló
gica e estética, a um só tempo. Ao comentar o
trabalho literário, Lênin diz: “Estamos longe de
pregar um sistema uniforme ou uma solução do
problema mediante qualquer deliberação. Não,
nesse campo não há lugar para o esquematismo
[...]. Acalmem-se senhores! Antes de mais nada
trata-se da literatura de partido [incluindo o
jornalismo] e da sua submissão ao controle do
Partido. Cada um é livre para escrever e dizer o
que bem lhe agrade, sem a menor limitação. Mas
toda associação livre [incluído o Partido] é livre
também para afastar os seus membros que se
servem da bandeira do Partido para pregar idéias
contrárias a ele. A liberdade de palavra e de
imprensa deve ser total. Mas a liberdade das
associações também deve ser total” (LÊNIN
apud HOBSBAWM, 1987: 115-116).
Briusov, poeta simbolista simpatizante da
Revolução, reagiu: “Não se pode negar a cora
gem de Lênin: ele leva sua idéia às extremas
conseqüências. Mas, em suas palavras, está de
todo ausente o verdadeiro amor pela liberdade.
A literatura livre [‘extra-classista’] é para ele
um longínquo ideal que só será realizado na
sociedade socialista do futuro. Enquanto isso, à
‘literatura hipocritamente livre, mas na realidade
ligada à burguesia’, Lênin contrapõe ‘uma
literatura abertamente ligada ao proletariado’.
Ela chama essa última de ‘efetivamente livre’,
mas de um modo extremamente arbitrário. De
acordo com o sentido exato de suas definições,
nenhuma das duas literaturas é livre. A primeira
é secretamente ligada à burguesia, a segunda é
abertamente ligada ao proletariado. A prerroga
tiva da segunda pode ser vista apenas num mais
aberto reconhecimento da própria escravidão,
não numa maior liberdade. A literatura con
temporânea, segundo Lênin, está a serviço do
‘saco de dinheiro’; a literatura de partido será
uma ‘porca e um parafuso’ da causa proletária.
Mas se reconhecermos que a causa proletária é
uma causa justa e o saco de dinheiro é algo ver
gonhoso, isso por acaso mudará o grau de depen
dência? O escravo do sábio Platão continuava
sempre a ser um escravo [...]” (BRIUSOV apud
HOBSBAWM, 1987: 116).
Se as idéias de Lênin desagradavam os
artistas comprometidos com a idéia de uma
“liberdade de criação” que não deveria se con
trapor aos ideais revolucionários, o líder dos bol
cheviques também entrava em choque com
Bogdanov, criador do Proletkult {Cultura Prole
tária), alvo de suas críticas no livro Materialis
mo e Empiriocriticismo. O ponto central da dis
córdia era a tese de que a revolução cultural só
poderia ocorrer a reboque da revolução política,
conduzida pelo Partido. Para Lênin, o campo
cultural não teria autonomia para a criação de
uma consciência proletária global, sobretudo
dentro das contradições enfrentadas pela
sociedade russa. Bogdanov resumiu mais tarde
seus princípios, que o conduziram ao rompi
mento político com Lênin em 1909: “A or
ganização conscientemente camaradística da
classe operária no presente, e a organização
socialista de toda a sociedade no futuro são mo
mentos de um mesmo processo, graus diversos
de um mesmo fenômeno. Se é assim, então a
luta pelo socialismo não se reduz somente à
guerra contra o capitalismo, à simples acumula
ção das forças necessárias. Trata-se de uma luta
que é, ao mesmo tempo, um trabalho positivo e
criador: a invenção de elementos sempre novos
de socialismo no próprio proletariado, em suas
relações internas, em suas condições de vida
cotidiana: eis a elaboração da cultura proletária
socialista” (BOGDANOV apud HOBSBAWM,
1987: 120). Lênin insistia no caráter “esquer
dista” desta posição, ligada ao radicalismo “pe-
queno-burguês”, e que não ajudava em nada o
processo organizativo e político da classe ope
rária. O documento de Lênin, acima citado, será
usado mais tarde, para fundamentar a política
partidária de controle da criação a partir de 1925.
IV. REVOLUÇÃO, ESTÉTICA E CONS
CIÊNCIA DE CLASSE
Com a Revolução de 1917, a Rússia se toma
o centro das expectativas não só políticas como
também estéticas das vanguardas européias. As
chamadas “vanguardas históricas”1 entravam
numa outra fase, iniciada com o Dadaísmo a
partir de 1916. Sofrendo o impacto da Guerra
Mundial, alguns artistas desconfiavam das
possibilidades efetivas da arte na formação das
consciências: “Embora os fatores culturais, por
si só, pudessem vir a gerar um movimento de
dúvida tão radical, foi o impacto da Primeira
Guerra Mundial que convenceu os poetas da
geração mais nova de que a cultura ocidental
era mortal e fora atingida em seus alicerces [...].
A guerra confirmou a convicção cada vez maior
— que mal apontava entre os cubistas e futuris
tas do pré-guerra — de que a obsessão do Oci
dente com o avanço tecnológico e a super-valo-
rização da razão, em detrimento da sensibi
lidade, conduzia diretamente a uma megaloma
nia destrutiva” (SHORT, 1989: 238).
Se esta explicação vale para a gênese do Da
daísmo, no centro da Europa germânica, a Rús
sia revolucionária caminhava para uma outra
direção. A Revolução havia colocado de forma
dramática mais do que novas possibilidades, no
vas necessidades culturais e artísticas. Por outro
lado, a Revolução fazia extrapolar os limites
territoriais do debate cultural russo, atraindo o
interesse de todos os intelectuais e artistas que
estavam dispostos a pensar a relação entre cultu
ra e revolução. Reafirmava-se uma nova pers
pectiva sobre a visão formativa da arte e da cul
tura (WILLET, 1987), ainda que as diversas
correntes divergissem sobre o método mais
apropriado para tal fim: “Entre 1917 e 1932, o
problema da arte revolucionária está ainda em
aberto, e diferentes propostas disputam sua
hegemonia diretora — apesar da insistência de
Lênin em subsidiar o conjunto de atividades
culturais à diretrizes e necessidades partidárias,
mas respeitando ainda a sua pluralidade”
(ZERON, 1991: 281).
O período entre 1917 e 1932, não só no âm
bito da União Soviética, representou um dos mo
mentos mais fecundos em relação à discussão
1 Conjunto de movimentos artísticos que vai do
período de 1909 até meados dos anos vinte, incluindo
(por ordem cronológica): Cubismo, Futurismo
italiano, Expressionismo, Futurismo russo, Dadaísmo
e Surrealismo, para citarmos os mais notórios.
sobre o papel social da arte e do artista. Nas
Américas, na Alemanha de Weimar (onde, além
do Expressionismo, floresceu o teatro de Bertold
Brecht), na França (onde o Dadaísmo e o Surrea
lismo impunham os termos do debate), as ca
tegorias básicas pelas quais a intelectualidade
pensava o mundo eram revistas e questionadas.
Palavras como “nação”, “povo”, “classe”, “revo
lução” eram pensadas não só conceitualmente
como também esteticamente.
No contexto russo o debate ganhava ares
mais dramáticos à medida em que o país discutia
as próprias bases da fundação de uma nova so
ciedade, numa experiência radicalmente inédita.
Se as expectativas e o otimismo de produtores
culturais, russos ou não, cresciam com as possi
bilidades revolucionárias, as tensões com as
diretrizes partidárias tendiam a aumentar.
Em setembro de 1918, ocorreu a I Confe
rência Pan-Russa de Organizações Culturais
Proletárias, onde Lebedev e Polianski, identi
ficados com o Proletkult, defendiam que o tra
balho cultural tem dois “momentos”: “didático”
(a cargo do comissariado da instrução) e “cria
dor” (que recebia a ênfase do Proletkult). Plet-
nev concluía, apontando para um imbricamento
das duas instâncias: “A história do movimento
operário deve ser o material para a criação artís
tica” (ZERON, 1991: 281).
As máximas dos “proletkultistas” e a sua de
dicação revolucionária não abrandavam as des
confianças do Partido Comunista em relação aos
artistas que buscavam ou uma organização
paralela ou a “liberdade de criação”. Em 1921,
Lunatcharski (comissário de instrução e
identificado com o grupo), no texto “A liberdade
do livro e a revolução”, chegou a defender a
censura “revolucionária”: “Sim, nós absoluta
mente não nos deixamos espantar diante da ne
cessidade de censurar até mesmo a beletrística,
porque sob sua bandeira, sob seu belo semblante,
pode ser inoculado o veneno na alma ainda in
gênua e ignorante de uma enorme massa, sempre
pronta a vacilar e recusar a mão que a conduz,
através do deserto para a terra prometida” (apud
HOBSBAWM, 1987: 147). (...) "
ARTE E REVOLUÇÃO:
ENTRE O ARTESANATO DOS SONHOS
E A ENGENHARIA DAS ALMAS (1917-1968)
Marcos Napolitano
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
Este artigo traça um panorama das discussões em torno do binômio “arte "e “revolução ”, partindo do
contexto histórico da Revolução Russa, examinando o engajamento das vanguardas européias na busca de
novas matrizes estéticas e ideológicas para reconstruir a consciência social. Procuramos confrontar as
diversas visões sobre esta questão, explicitadas através de programas, artigos e manifestos de época,
demonstrando a luta política e ideológica por trás dasformulações de ordem estética.
PALAVRAS-CHAVE: Revolução Russa; arte epolítica; vanguardas; história da arte.
domingo, 6 de abril de 2025
Impulsos mórbidos assombram a arte contemporânea, que essencialmente nada mais é do que um jogo de marionetes manipulado pela ideologia liberal e pelo dinheiro. “Instalações”, “performances”, “vídeos” soporíferos que ninguém vê ou a “fotografia plástica”, que mostra em grande (e mal) o que era pequeno e muitas vezes despreza a fotografia de família ou de reportagem, só parecem estar ali para alimentar um mercado ávido por sangue novo… Contudo, milhares de criadores – pintores, escultores, artistas gráficos, designers, arquitetos – experimentam e trabalham diariamente atrás do filtro desta arte oficial, fútil, lúdica e cínica. Produzem, no silêncio das oficinas, formas e significados que são os antípodas destas “atitudes”, destas “posturas”, destas “abordagens” um pouco vistosas e institucionalizadas para ser honesto… Uma árvore não pode esconder a floresta.
domingo, 23 de março de 2025
Poemas-canção de Bob Dylan, Prémio Nobel
Soprando no vento
Quantas estradas um homem deve percorrer
até que seja chamado de homem?
Quantos mares uma pomba branca deve navegar
antes de dormir na areia?
Sim, e quantas vezes as balas de canhão devem voar
até serem banidas para sempre?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento.
A resposta está soprando no vento.
Sim, e quantos anos uma montanha pode existir
até ser varrida para o mar?
Sim, e quantos anos algumas pessoas podem existir
antes de serem deixadas livres?
Sim, e quantas vezes um homem é capaz de virar a cabeça
e fingir que simplesmente não vê?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento.
A resposta está soprando no vento.
Sim, e quantas vezes um homem deve olhar para cima
até que possa ver o céu?
Sim, e quantos ouvidos um homem deve ter
até poder ouvir as pessoas chorar?
Sim, e quantas mortes serão necessárias até que ele saiba
que já morreu gente demais?
Nota: Tradução da música "Blowin´in the wind"
sábado, 15 de março de 2025
William Schuman: Symphony No.9 "The Ardeatine Caves" (1968)/ Ormandy
A breve vida de Schubert transcorreu em rotina de muito trabalho e pouco reconhecimento público. Homem afável, mas muito tímido, sempre lhe foram negados cargos musicais oficiais. Viveu modestamente, mas livre para dedicar todo seu talento à composição. Quanto às suas sinfonias, hoje estão definitivamente incorporadas ao repertório das grandes orquestras. Entretanto, com exceção das primeiras, escritas na adolescência e interpretadas pela pequena orquestra de estudantes do Stadtkonvikt de Viena, Schubert jamais pode ouvi-las, o que torna ainda mais admirável seu inato senso do colorido orquestral e das gradações sonoras. O desenvolvimento do compositor no gênero sinfônico construiu-se gradativamente, uma vez que as características de seu gênio predispunham-no às pequenas formas musicais, sobretudo para a canção.
Entre as sinfonias de Schubert, a nona é a mais pessoal. Oferecida com uma elogiosa dedicatória à Sociedade Filarmônica de Viena, foi considerada “muito pesada e muito difícil”. Onze anos decorridos da morte do compositor, Robert Schumann, visitando a humilde casa de Ferdinand Schubert, irmão do compositor, reencontrou, entre outros manuscritos, a partitura da sinfonia rejeitada e providenciou sua estreia na Gewandhaus de Leipzig sob a direção de Felix Mendelssohn.
Em 1928, a morte de Beethoven era muito recente. Schubert certamente sentia a importância do legado sinfônico de seu grande antecessor; o desafio formal assumido pelo jovem compositor ao escrever sua última sinfonia não se deve aferir pelas mesmas normas que regem as sinfonias de seu ídolo. A natureza lírica e expressiva dos longos temas melódicos schubertianos torna-os incompatíveis com o modelo de desenvolvimento típico de Beethoven, calcado no trabalho exaustivo e engenhoso de ideias concisas e determinantes. Por outro lado, apesar da amplitude, a Grande é uma das obras mais concentradas e equilibradas de Schubert, escapando às digressões e fantasias que comumente preenchem suas vastas arquiteturas instrumentais. Pela maneira com que concilia a forma clássica e o espírito romântico, essa sinfonia, única sob muitos aspectos, ocupa uma estratégica posição histórica.
Após a morte de Beethoven, a Sinfonia Romântica trilhou dois caminhos principais: em uma direção, Mendelssohn, Schumann e Brahms adaptaram-na à expressão mais intimista do romantismo, reduzindo as proporções dos movimentos intermediários. Em outra vertente, Berlioz e Liszt, para fugir do clássico modelo beethoveniano, adotaram os programas extramusicais dos poemas sinfônicos. A grande sinfonia de Schubert, por muito tempo ignorada, aponta para o futuro e possui atributos (como a tendência para a unidade cíclica, a disposição formal em amplos espaços harmônicos e a fluidez do discurso melódico) comuns às sinfonias de Bruckner e Mahler.
Na introdução (Andante) do primeiro movimento, as trompas em uníssono apresentam um nobre tema, sutil na dessimetria de sua construção, e do qual derivam os vários motivos do vigoroso Allegro ma non troppo seguinte. Longo e impetuoso, esse movimento desenvolve-se pelos diversos grupos instrumentais com crescente tensão, desencadeando irresistível ascensão até o stretto final da coda, quando, em tempo mais rápido, reapresenta-se o tema inicial das trompas, como um hino radioso e triunfal.
O segundo movimento, (Andante con moto) imenso Lied composto de cinco seções e uma coda, é um dos trechos mais trabalhados e líricos da sinfonia. O tema principal surge no oboé, sobre o acompanhamento staccato das cordas, em ritmo de marcha lenta. A sua feição cantabile é interrompida abruptamente pelo fortíssimo orquestral que, durante todo o movimento, assumirá o papel de elemento contrastante. Schubert explora com sabedoria as transições entre as diversas seções. Particularmente mágica é a atmosfera de apaziguamento, de espera quase muda, antes da volta do primeiro tema.
O Scherzo (Allegro vivace) possui a clássica estrutura arquitetônica tripartida (ABA), mas oferece muitas soluções inventivas. As partes extremas estão na tonalidade principal da sinfonia (Dó maior). Após uma abertura quase agressiva, surge uma série de melodias, alegremente ritmadas, com uma sucessão de modulações engenhosas. O trio central (Lá maior) consiste em uma única melodia – um Ländler vienense de raízes populares, totalmente confiado aos sopros, enquanto às cordas cabe o acompanhamento.
O quarto movimento (Allegro vivace), de mais de mil compassos, fecha impetuosamente a sinfonia. O motivo inicial possui dois breves e incisivos desenhos rítmicos, diferenciados por violento contraste forte/piano, que impulsionam todo o andamento em assombrosa e ininterrupta sucessão de ondas rítmicas. Apresentado pelo oboé, o segundo tema, embora mantenha a pulsação inicial, é mais tranquilo, possui caráter popular e desempenha importante papel no desenvolvimento. As nítidas citações (nas fanfarras) da Ode à Alegria de Beethoven não possuem caráter alusivo, rapsódico — derivam logicamente do material temático do trecho, ao qual se integram de maneira perfeitamente orgânica. A reexposição, em admirável demonstração de habilidade harmônica, começa na inesperada tonalidade de Mi bemol maior. A coda inicia-se com um trêmulo suave dos violoncelos. Apresenta um esquema rítmico de quatro notas e persiste por duzentos compassos, gigantesca, monumental, conduzindo a marcha até a impressionante apoteose final.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.
segunda-feira, 10 de março de 2025
terça-feira, 4 de março de 2025
segunda-feira, 3 de março de 2025
Imediatidade e autoficção: a literatura sob o capitalismo de plataforma
Um comentário ao livro de Anna Kornbluh, "Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism", que será publicado ainda este ano pela Boitempo.
Publicado em 25/02/2025 // 1 comentário
A escritora Annie Ernaux (Wikimedia Commons).
Por Bruna Della Torre
“O dever da literatura é lutar contra a ficção.”
— Karl Ove Knausgaard, em entrevista à New Yorker
“Chamarei o tipo de escrita de Knausgaard de ‘itemização‘. Na pós-modernidade, renunciamos à tentativa de ‘estranhar‘
nossa vida cotidiana e vê-la de formas novas, poéticas ou
aterrorizantes; desistimos de analisá-la em termos da forma-mercadoria,
em uma situação em que tudo agora é mercadoria; abandonamos a busca por
novas linguagens para descrever o fluxo do sempre idêntico ou pôr novas
psicologias para diagnosticar suas reações e eventos psíquicos
desconcertantemente pouco originais. Tudo o que resta é itemizar esses
elementos, enumerar os itens que passam por nós.”
— “Itemised”, Fredric Jameson (London Review of Books)
Em seu provocativo comentário sobre o sexto livro da série de autoficção do escritor norueguês Karl Ove Knausgaard, publicado na London Review of Books em 2018, Fredric Jameson confessa que não acha “a perspectiva de uma utopia em que todos estão diligentemente escrevendo sobre suas experiências – diárias ou ao longo da vida – particularmente atraente”. Em primeiro lugar, porque se todos estivermos empenhados nesse tipo de projeto, não restaria tempo para a vida, para a Experiência com “E” maiúsculo. Segundo, porque, quando se trata de literatura, não é apenas a substância que está em jogo, mas também a forma. Conforme escreveu Júlio Cortázar em Valise de Cronópio, a quem conhecidos não se cansavam de ofertar histórias e causos reais inacreditáveis que poderiam virar um conto, na literatura, o conteúdo de uma história é tão ou menos importante do que o modo como ela é contada.
O boom da chamada literatura de autoficção contemporânea tem sido, nesse sentido, intrigante. Conforme já escrevi aqui no Blog da Boitempo, a tetralogia napolitana de Elena Ferrante me parece um experimento interessante, mas apenas se lida como romance e não como autoficção – o que não é possível fazer com qualquer livro que sustenta esse tipo de escrita. Mas, aparentemente, tudo o que não leve essa marca se torna menos atraente. Isso explicaria, por exemplo, por que Ferrante conta em entrevistas uma história sobre sua mãe costureira e sua infância pobre que – se sua identidade é mesmo essa que foi descoberta há alguns anos (Anita Raja) – não é exatamente verdadeira, ou seja, por que ela se sente de alguma forma impelida a dizer que a história que conta em seus romances é a sua própria história, uma história real.
A autoficção invade não só as prateleiras de best-sellers mundo afora, como ressignifica a própria história da literatura, reivindicando herança daquilo que ficou conhecido como “alto modernismo”. A sombra retroativa desse subgênero – se é que podemos chamá-lo assim – alcança também Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (que se tornou uma de suas principais referências), A montanha mágica, de Thomas Mann, Ulisses, de James Joyce, vários dos romances de Virginia Woolf, como Ao farol e Orlando, entre muitos outros. Livros que até pouco tempo atrás ainda eram tomados – apesar da transfiguração da experiência de seus autores neles contida – como literatura de ficção. Até mesmo Franz Kafka, que havia inicialmente escrito O castelo em primeira pessoa e depois mudou o foco narrativo para a terceira, a fim de obter distância do que era narrado, é visto hoje como um representante da tendência.
Como a crítica cultural hoje ou é puramente conservadora e reacionária ou assume cada vez mais um caráter celebratório, cansativo e monótono – muitas vezes apenas polindo o brilhantismo daquilo que o algoritmo já “viralizou” – pouca gente à esquerda tem se ocupado de responder de onde vem o fascínio com esse novo subgênero que data da década de 1970, ou ao menos atende por esse nome desde então. Esse é um dos assuntos (talvez o melhor deles) do livro Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism [“Imediatidade, ou o estilo do capitalismo demasiadamente tardio”], de Anna Kornbluh.
Inspirada no livro de Jameson sobre o pós-modernismo, a obra de Kornbluh discute a imediatidade como o novo estilo cultural do nosso capitalismo demasiadamente tardio, uma espécie de nova dominante cultural ligada a uma fenomenologia da imersão, ao presenteísmo, à ojeriza pela representação e pela forma. Para a autora, não viveríamos mais numa era pós-moderna (marcada pelo pastiche, pela ironia, pela Theory, que ainda exigiriam alguma mediação do público), mas sim numa pós-pós, ainda mais unidimensional e achatada do que os anos de pós-modernidade e produzida pelo que a autora chama, de maneira um pouco problemática, de “economia da circulação” – ou o neoliberalismo digital financeirizado de plataforma. Nas palavras de Kornbluh,
“Circulação fluida, suave e rápida, seja de petróleo ou de informação, alimenta a radicalização contemporânea do pretexto eterno sistemático do capitalismo: as coisas são produzidas com o propósito de serem trocadas; o dinheiro supera seu papel de mediador da troca para se tornar seu ponto final; os meios de circulação tornam-se o fim da circulação. Como observa o geógrafo econômico David Harvey, ‘quando a circulação para, o valor desaparece e todo o sistema desmorona.’ O preço dessa velocidade no presente é uma destruição exorbitante: vazamentos de oleodutos, carbonização atmosférica, incêndios planetários. E, por sua vez, essas calamidades elementares moldam a imediatidade como estilo cultural. O fluxo como valor essencial para essa estética decorre do fluxo como valor essencial para a economia do século XXI” (Kornbluh, 2024: 25).
Não se trata apenas de um imediatismo vindo do chamado “estado de emergência” do capitalismo das últimas décadas. O livro investiga como a flexibilização do trabalho via plataformas e redes sociais (que impele a maior parte da sociedade a estar sempre on), o regime de circulação imediata de mercadorias da Amazon (“compre agora, receba ainda hoje” ou “compre com um clique” – dispositivo que serve para romper com qualquer possibilidade de reflexão sobre o ato de compra antes presente na mediação dessa compra pela loja física e do caminho da casa ou do trabalho até ela), o desaparecimento do local de trabalho para uma parcela importante da população, todos esses fatores fazem com que a velocidade, o fluxo e a expressão direta passem a dominar todas as esferas da vida. Nada pode impedir o fluxo e que o trabalho e o entretenimento se reúnam numa mesma massa amorfa 24 horas por dia, sete dias por semana. Um movimento intenso que produz estática, uma velocidade tão alta que apaga a temporalidade. Em outras palavras, Kornbluh discute como o capitalismo digital produziu uma mudança não só no fluxo de troca de mercadorias e acumulação de capital, mas uma transformação epistemológica e sensível radical. Tudo passa a obedecer ao imperativo da imediatidade. Assim como o grande feito das plataformas (de trabalho ou entretenimento) foi cortar mediações (jurídicas, estatais, laborais), o estilo cultural que ela gera também passa a operar sob a mesma lógica, cortando intermediários e, mais do que isso, a própria mediação. Kornbluh faz a pergunta que a crítica cultural contemporânea, imersa no aparato da indústria cultural, se recusa a fazer: qual é o impacto da última transformação das forças produtivas capitalistas na arte e na cultura?
O livro tem uma estrutura parecida com o de Jameson (e também é uma versão marxista do estilo de crítica feita atualmente por Byung-Chul Han, que não aparece citado na obra). Kornbluh analisa esse capitalismo demasiadamente tardio a partir dos capítulos “Circulação”, “Imaginário”, “Escrita”, “Vídeo”, “Antiteoria”. A obra tem o mérito de ser um dos esforços recentes mais importantes de relacionar as manifestações estéticas e culturais recentes às formas sociais e econômicas do capitalismo contemporâneo, bem no espírito da teoria crítica, assim como de mostrar como esse regime de circulação faz com que a antipolítica recuse a mediação da organização, a antiteoria recuse a mediação da teoria, a arte recuse a mediação da representação e, por fim, a crítica cultural recuse a mediação da interpretação. Ou seja, o debate gira em torno das consequências estéticas, literárias, políticas e filosóficas do capitalismo de plataforma.
O capítulo mais interessante é sobre a “Escrita”. Trata-se, na verdade, de uma reflexão sobre esse novo gênero de memórias, autoficção e ensaio pessoal que marca a literatura do século XXI. Um subgênero cuja venda – só na primeira década deste século – foi, segundo o New York Times, 400 vezes maior que a média do século XX, compondo cerca de 80% de suas listas de best-sellers. Uma escrita marcada pela “memorização”, na qual predomina:
“a narração em primeira pessoa, mas também a marca do imperativo ‘escreva o que você sabe’; a elevação da experiência vivida do sujeito individual ao tratamento literário; a desconfiança da autoridade desvinculada da experiência; o filtro das dinâmicas sociais e históricas através de lentes subjetivas (ou a desqualificação ativa de lentes objetivas); a promoção da fenomenologia como horizonte-limite para o conhecimento; o empreendimento do confessionalismo; a preocupação com a domesticidade (seja a infância ou o casamento); uma torção da fascinação do romance por órfãos em uma obsessão por culpar os pais; a superação heroica do indivíduo diante das circunstâncias; a narrativa terapêutica dos desafios políticos, sociais e corporais; a centralização do presente histórico; a solicitação solene de reconhecimento, identificação e empatia por parte do leitor; um populismo das massas em oposição ao suposto elitismo dos literatos” (Kornbluh, 2024: 96).
Conforme mostra Kornbluh, a palavra “autoficção” aparece em inglês pela primeira vez no New York Times, sob a pena de Paul West em 1972, mas é atribuída a Serge Doubrovsky (autor de Fils), que escreveu em 1977: “Se eu escrevo minha autobiografia no carro, ela será minha AUTOficção”; uma piada que cede lugar à sua construção como primeiro autor do gênero, que desde então se consagrou como uma escrita sobretudo francesa (que culmina no prêmio Nobel recebido recentemente por Annie Ernaux e no sucesso mundial de Didier Eribon e Édouard Louis). Kornbluh demonstra (inclusive recorrendo a estudos quantitativos) que essa escrita começa a surgir na década de 1970 – com alguma presença importante no feminismo e na literatura queer (como um refúgio para vozes excluídas do cânone) – mas alcança outra estatura (e função) no século XXI.
A autora observa um aspecto específico da autoficção contemporânea: a rejeição da ficcionalidade como tema próprio a essa literatura. Partindo de uma análise do que essa escrita diz sobre o próprio fazer literário – que é um de seus principais motivos – o que essa investigação revela é uma revolta contra a forma e a própria narrativa. Representar passa a ser sinônimo de mentir ou de violentar, e narrar passa a ser sinônimo de falsear. Kornbluh comenta a abordagem da ficção nas obras de vários autores contemporâneos, como Knausgaard, Tao Lin, Maggie Nelson, Rachel Cusk, entre muitos outros.
Um dos principais apelos dessa escrita, afirma Kornbluh, é sua promessa de um acesso imediato à realidade: a pessoa real deve tomar o lugar tanto do narrador quanto da personagem, a narração em terceira pessoa ou discurso indireto livre dá lugar a uma voz, uma voz que diz a “verdade”. Conforme escreveu Cusk, “A ideia de inventar John e Jane e fazê-los fazer coisas parece totalmente ridícula”. Nessa chave, Lin também afirma: “eu quero que a escrita seja útil para mim. Quando estou inventando coisas, parece que estou me confundindo, acrescentando coisas à minha memória que nunca aconteceram” (apud Kornbluh, 2024: 70). Knaausgard fala sobre uma crise da ficção, de sua falta de valor literário:
“A própria ideia de ficção, a simples ideia de um personagem fabricado em uma trama fabricada, me deixava com náusea, eu reagia de forma física… Nos últimos anos, eu tinha perdido cada vez mais a fé na literatura. Eu lia e pensava: isso é algo que alguém inventou… pessoas inventadas em um mundo inventado, embora realista… Era uma crise… Eu não conseguia escrever assim, não funcionava, cada frase era recebida com o pensamento: mas você está apenas inventando isso. Isso não tem valor. A escrita ficcional não tem valor… Os únicos gêneros nos quais eu via valor, que ainda conferiam significado, eram diários e ensaios, os tipos de literatura que não lidavam com narrativa, que não eram sobre nada, mas consistiam apenas em uma voz, a voz de sua própria personalidade… A arte não pode ser experimentada coletivamente, nada pode” (Karl Ove Knausgaard, My Struggle apud Kornbluh, 2024: 65).
Mas o que teria acontecido para que a ficção entrasse em crise? Kornbluh não usa exatamente esses termos, mas tudo se passa como se o problema não fosse mais a posição do narrador no romance contemporâneo, ou seja, o que sua perspectiva pode ou não alcançar e o que ela deixa de fora, como queria Theodor W. Adorno, mas o próprio ato de narrar e a forma romance são postos em xeque. Há a percepção de um esgotamento generalizado de ambos e a tendência de aprofundamento do elemento lírico do romance modernista, observada por Adorno em seu famoso ensaio, dá lugar ao fim da dialética entre objetividade e subjetividade que acompanhou o romance até aqui. O que Kornbluh faz é tentar compreender de onde isso vem. E se pergunta: “se há uma transformação na história do romance no século XXI, a que essa transformação corresponde?” (Kornbluh, 2024: 80-81). Por que a ficcionalidade deve ser apagada e a forma e a invenção devem dar lugar à imediatidade como imperativo da escrita? Por que o narrador (em primeira ou terceira pessoa) dá lugar a um narrador personagem que é o mesmo que o autor ou autora em nome e circunstância? Por que, em vez de narratividade e enredo, essa escrita privilegia, em geral, um presente sem acontecimento, sem construção ficcional, duração e figuração?
O grande apelo da autoficção, diz Kornbluh, seria justamente esse: o de entregar identidade, instantaneidade, a “coisa em si”: sem filtro. A literatura contemporânea, escreve a autora, “repudia a representação em si, decompõe narração, personagem, enredo, e a fumaça do mito a favor de manifestar coisas que afetam visceralmente” (Kornbluh, 2024: 7). Isso significaria, em termos baudelairianos, que a literatura deixa de se configurar como “promessa de felicidade”, para se configurar como promessa de realidade. Trata-se de um desejo renovado de realismo, diz Kornbluh, mas não aquele de Lukács (ou de Adorno, diria eu também), mas de um realismo no sentido imediato do termo – um acesso imaculado à experiência. A ironia, que em literatura foi por muito tempo um de seus principais meios de distanciamento, cede lugar à sinceridade e à personalização, que faz da narrativa em primeira pessoa a única possibilidade de uma narrativa “honesta” – o que, de fato, é uma ideologia, pois essa imediatidade é menos um fato do que uma construção, uma aparência socialmente necessária para esse subgênero. De qualquer forma, o que vale é que toda essa escrita se assenta no discurso de que apresenta a verdade sem mediações, invenções e meias palavras.
Os estudos quantitativos a que Kornbluh recorre apontam que o declínio da narração em primeira pessoa (em língua inglesa), que começou no século XVIII, sofre uma inversão de tendência e passa a ascender a partir dos anos de 1970. As consequências para a literatura são muitas, uma vez que:
“a terceira pessoa prova ser definidora para a forma do romance: uma construção extraordinária de um modo de pensamento inacessível para nós na experiência cotidiana vivida, em nossos próprios envelopes estúpidos. A terceira pessoa se estende para além da subjetividade fenomenal, em direção à objetividade especulativa. Ela realiza um tipo de pensamento indisponível em qualquer outro lugar — e essa é a mágica. […] O personalismo em primeira pessoa no romance é uma mutação abrangente, uma desestruturação da objetividade literária, um evento de proporções épicas que exige uma explicação séria. A rejeição explícita da ficcionalidade pela autoficção é, portanto, apenas a expressão mais autoconsciente de uma tendência representacional muito mais ampla que apaga o ponto de vista impessoal, antifenomênico e especulativo que definiu o romance ao longo de sua história. Poderíamos até dizer que, em sua expressividade anti-medium e angústia nauseante, a autoficção funciona como a teoria patente dessa mutação” (Kornbluh, 2024: 79-80).
Essas reflexões são obviamente generalistas, há exceções; é evidente que nem todo romance narrado em primeira pessoa é subjetivista (conforme lemos no “alto modernismo”) e nem todo romance narrado em terceira pessoa alcança a objetividade. Em todo caso, trata-se de uma tendência. Nesse sentido, a autoficção é expressão da imediatidade como estilo cultural que, segundo Kornbluh, não só abdica da representação (a mediadora da relação entre literatura e sociedade), como a rejeita com veemência. É certo que ao longo da história a desigualdade entre quem representa e quem é representado emulou as desigualdades da sociedade patriarcal, capitalista, heteronormativa e branca e o mesmo vale para a crítica literária (Adorno, por exemplo, não analisa a obra de nenhuma mulher em suas Notas de Literatura). No entanto, a pergunta interessante que o estudo de Kornbluh suscita é: por que, ao invés de equilibrar a balança e trazer para a literatura o que (e quem) estava fora dela, recusar a representação por si mesma?
Essa escrita almeja (e atinge) uma aparência de sinceridade e autenticidade, de não construção, para a qual os valores são, segundo Kornbluh, os afetos, vulnerabilidades (um conceito problemático cada vez mais utilizado pelo feminismo) e verdades pessoais. Conforme descreve Jameson no trecho citado acima, ela envolve uma imanentização da experiência, um aprisionamento na descrição e a ideia de que todo conhecimento só pode ser pessoal. Ou, nas palavras de Kornbluh (2024: 66), “ao invés de um romance como uma teoria do mundo ou dos mundos possíveis, só há micrologia”, ou um novo sociologismo – o que, vale ressaltar, a diferencia do que ficou conhecido como literatura de testemunho, para a qual história e memória são fundamentais (uma diferença que Kornbluh também não explora).
Como escrevi acima (e Kornbluh também reconhece), embora essa literatura tenha sido importante no sentido de apresentar outras vozes que não apareciam no cânone literário até então, ela, nos dias de hoje, não só encontra apoio, mas também sustenta a ideologia de que falar a verdade sobre si é por si mesmo transgressivo (não é à toa que lutar contra a vergonha de se expor é um de seus motes) – uma ideia que é cada vez mais cara à economia da Big Tech, cujos lucros advém de nosso desejo de nos mostrar. Isto é, ela acompanha a explosão da privacidade não como sua superação revolucionária e pós-burguesa, mas como um modo de vida ligado ao capitalismo de plataforma (cujo modelo de negócio é baseado na exposição cotidiana do self).
Nesse sentido, Kornbluh associa a autoficção ao boom dos realities no streaming e à forma memorialística e biográfica de redes como o Instagram, que produz uma espécie de autobiografia em tempo real. O que são as redes socias, pergunta a autora, senão tecnologias de autoapresentação que nos impelem a cultivar nós mesmos como marcas? Como sugere Kornbluh, o modelo da plataforma é absorvido por essa escrita, baseada na velocidade, na falta de reflexão e, mais importante ainda, sem filtros: “encontramos romances tradicionais que nascem digitais, estruturados como twitfic (Black Box, de Jennifer Egan), postagens do Instagram (Sympathy, de Olivia Sudjic), compartilhamentos no Facebook (Komodo, de Jeff VanderMeer) ou autoficções do fluxo de todos os aplicativos (Crudo, de Olivia Laing)” (Kornbluh, 2024: 98). Além disso, outro impacto da imediatidade do capitalismo digital e do binarismo de plataforma em nós, enquanto leitoras, seria que, como tudo nesse meio, tudo deve ser passível de identificação pessoal [relatable] ou de ódio [hateable].
Se um dia a teoria crítica teve que se opor ao gosto como critério de avaliação da arte (gosto, esse, que a sociologia também se esforçou para mostrar que é socialmente construído), hoje, esse gosto é amplamente ligado à capacidade que um artefato tem de produzir identificação. Tudo também deve ser acessível, no sentido de não exigir interpretação – uma vez que essa, por si só, seria um índice de elitismo. Nesse ponto, a imediatidade também aprofunda as tendências contra a interpretação do pós-modernismo, imortalizadas no famoso ensaio de Susan Sontag que leva o mesmo nome.
Ao ler o livro, fiquei pensando em algo que Kornbluh não discute, mas que valeria uma reflexão. Se pensarmos que o “memorialismo” (na forma da autobiografia) foi em geral um subgênero aristocrático e, posteriormente, burguês – a história de grandes homens ricos, brancos e heterossexuais em sua maioria contados por si próprios, um gênero que no Brasil tem uma longa tradição nas classes dominantes e persiste no cinema até hoje (e que poderíamos dizer que Machado de Assis ironiza avant la lettre em suas Memórias Póstumas de Brás Cubas) –, a autoficção pode ser compreendida como uma inversão do gênero, que agora proclama vir de baixo (embora seja uma tendência majoritariamente advinda do centro do capitalismo). Assim como Andy Warhol afirmou que a televisão vinha com a promessa de conceder ao cidadão comum os seus cincos minutos de fama, as redes sociais fazem de cada um de nós nossa própria celebridade – algo que de alguma forma está presente também na autoficção, como uma espécie de auto romance realista do homem e da mulher comum (uma nova forma do que Georg Lukács chamou de “naturalismo” em sua fase tardia). Aliás, o aparente amadorismo dessa escrita também é um de seus apelos: qualquer um pode se tornar um escritor ou uma escritora, um produto da economia de plataforma (que derruba especialistas em todas as áreas), fazendo o mesmo com a literatura e a crítica literária. Mas isso é menos uma democratização, sublinha Kornbluh, e mais um resultado da precarização da literatura sob o neoliberalismo:
“A autoficção, a ficção em primeira pessoa, as memórias, as redes sociais e o ensaio pessoal compõem um contínuo de autoemissão, indicando o quanto da produção literária segue a ideologia do capital humano que transforma o bem-estar cotidiano em um mandato para otimizar o material interior e concretizar o eu, e o quanto da literatura contemporânea se constitui por sua rejeição à mediação. O conteúdo em fluxo contínuo, originado de freelancers, a escrita automática sem ‘a distância entre escritor, leitor e crítico’, a imediatidade do escritor estetiza as condições industriais na publicação, que, como aponta a estudiosa cultural Sarah Brouillette, seguem de perto a gigificação e a precarização presentes em outras indústrias. Na ausência de instituições como sindicatos de escritores e associações de equipe, sem salários para horas de pesquisa, sem protocolos de conhecimento como reportagens investigativas ou sínteses de longo prazo, e afundados em dívidas estudantis, os criadores de conteúdo manejam seu único ativo: a expressão de sua vida interior. Sua história é algo que você deve possuir”(Kornbluh, 2024: 101).
Kornbluh discute não só as consequências dessa economia da circulação para a literatura, mas sua própria plataformização. O mercado da autopublicação em sites e plataformas, diz ela, já é hoje um mercado bilionário nos Estados Unidos, no qual todo trabalho que era exercido por uma editora passa a ser transferido para os autores e autoras. Nesse sentido, a autorreflexão sobre o próprio processo de escrita e publicação de um livro presente na escrita de autoficção certamente tem algo a ver com isso, assim como o ensaio pessoal tem a ver com a prática do blogging que ascendeu nos anos 2000. O livro apresenta também um comentário interessante sobre a chamada “escrita criativa” nos Estados Unidos, que, a partir da década de 1970, foi incluída como disciplina no currículo de mais de 300 universidades, um mercado que só cresce (inclusive no Brasil). Para Kornbluh, a difusão desse tipo de curso (para o qual a autoficção é central) seria um sintoma da crise generalizada de saúde mental produzida por esse capitalismo demasiadamente tardio, da mercantilização do trauma a ela relacionada (basta pensar como a própria documentação de admissão nas universidades estadunidenses envolve transformar traumas em uma mercadoria consumível – o que, por sua vez, não significa que esses traumas não existam) e que resulta numa noção de escrita que é acima de tudo terapêutica. Nessa chave,
“a economia da circulação molda essa unidade estilística de mediação anulada, em condições que englobam a expansão dos programas de escrita universitária em meio a uma crise laboral no meio acadêmico, a redução drástica nas indústrias de publicação e jornalismo e a ubiquidade de empreendedores freelancers. Profissões sem especialistas deixam os indivíduos à deriva, tentando se autoatualizar sozinhos em uma sociedade que não existe. O abandono contemporâneo da mediação literária simplesmente estetiza essas condições, descartando o potencial da literatura de criticar imanentemente o mundo conhecido” (Kornbluh, 2024: 69).
O livro de Kornbluh apresenta a imediatidade como marca da falta de estratégia da esquerda diante da crise múltipla que enfrentamos, desse estado de coisas que produz uma fenomenalidade zumbi, diz ela, da qual não conseguimos escapar. Não sei se estou de acordo com tudo que está no livro de Kornbluh, mas suas reflexões certamente iniciam um debate necessário num momento em que a esquerda está completamente resignada à indústria cultural a ponto de sequer considerá-la um objeto passível de crítica – um problema do qual seu livro também sofre, ao se perguntar sobre a possibilidade de uma indústria cultural melhor. Mas também num momento em que não temos um projeto cultural de arte, teoria e crítica cultural – não autônomo, pois essa foi uma das maiores ilusões burguesas da história da arte, mas, ao menos, independente das formas que nos são oferecidas prontas pelas grandes plataformas.
É impossível não pensar como a própria palavra “narrativa” está hoje desgastada e faz parte da crise generalizada da noção de “verdade”, que está presente na política, na estética e na ciência. À direita, ela é associada à mentira e à invenção; em círculos progressistas (quando não usada da mesma maneira que pela direita), assume um conteúdo relativista: “narrativa” visa substituir um conceito autoritário de verdade, mas, na realidade, o abandona. Ou seja, ela se distancia cada vez mais da ideia de que continha algo de objetivo que lhe era próprio.
Criticar a autoficção hoje é imediatamente associado ao conservadorismo – e a maioria das críticas a esse tipo de escrita é de fato conservadora, antifeminista, classista, racista. Seria preciso também estudar como essa forma aterrissou nas periferias do capitalismo e como ela funciona nesse âmbito. Em todo caso, é importante sublinhar que analisar a origem dessa escrita não é o mesmo que condenar, mas retraçar a relação entre literatura e sociedade, compreender como as tendências literárias (para além do argumento bourdiesiano mais raso sobre elites e mercado editorial) estão ligadas a formas sociais mais profundas, de um capitalismo que, para ser compreendido, apreendido e destruído, nunca precisou de tanta mediação. Como afirma Kornbluh (2024: 216), “imediatidade é instante, a mediação dilata; imediatidade é urgente, a mediação desloca; imediatidade flui, mediação bloqueia; imediatidade confessa, a mediação entrelaça; a imediatidade desliza, a mediação relaciona”. Seu livro é uma defesa da dialética. E, dessa, nós precisamos mais do que nunca.
Referência
KORNBLUH, Anne. Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism. London: Verso Books, 2024.