domingo, 6 de abril de 2025
Impulsos mórbidos assombram a arte contemporânea, que essencialmente nada mais é do que um jogo de marionetes manipulado pela ideologia liberal e pelo dinheiro. “Instalações”, “performances”, “vídeos” soporíferos que ninguém vê ou a “fotografia plástica”, que mostra em grande (e mal) o que era pequeno e muitas vezes despreza a fotografia de família ou de reportagem, só parecem estar ali para alimentar um mercado ávido por sangue novo… Contudo, milhares de criadores – pintores, escultores, artistas gráficos, designers, arquitetos – experimentam e trabalham diariamente atrás do filtro desta arte oficial, fútil, lúdica e cínica. Produzem, no silêncio das oficinas, formas e significados que são os antípodas destas “atitudes”, destas “posturas”, destas “abordagens” um pouco vistosas e institucionalizadas para ser honesto… Uma árvore não pode esconder a floresta.
domingo, 23 de março de 2025
Poemas-canção de Bob Dylan, Prémio Nobel
Soprando no vento
Quantas estradas um homem deve percorrer
até que seja chamado de homem?
Quantos mares uma pomba branca deve navegar
antes de dormir na areia?
Sim, e quantas vezes as balas de canhão devem voar
até serem banidas para sempre?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento.
A resposta está soprando no vento.
Sim, e quantos anos uma montanha pode existir
até ser varrida para o mar?
Sim, e quantos anos algumas pessoas podem existir
antes de serem deixadas livres?
Sim, e quantas vezes um homem é capaz de virar a cabeça
e fingir que simplesmente não vê?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento.
A resposta está soprando no vento.
Sim, e quantas vezes um homem deve olhar para cima
até que possa ver o céu?
Sim, e quantos ouvidos um homem deve ter
até poder ouvir as pessoas chorar?
Sim, e quantas mortes serão necessárias até que ele saiba
que já morreu gente demais?
Nota: Tradução da música "Blowin´in the wind"
sábado, 15 de março de 2025
William Schuman: Symphony No.9 "The Ardeatine Caves" (1968)/ Ormandy
A breve vida de Schubert transcorreu em rotina de muito trabalho e pouco reconhecimento público. Homem afável, mas muito tímido, sempre lhe foram negados cargos musicais oficiais. Viveu modestamente, mas livre para dedicar todo seu talento à composição. Quanto às suas sinfonias, hoje estão definitivamente incorporadas ao repertório das grandes orquestras. Entretanto, com exceção das primeiras, escritas na adolescência e interpretadas pela pequena orquestra de estudantes do Stadtkonvikt de Viena, Schubert jamais pode ouvi-las, o que torna ainda mais admirável seu inato senso do colorido orquestral e das gradações sonoras. O desenvolvimento do compositor no gênero sinfônico construiu-se gradativamente, uma vez que as características de seu gênio predispunham-no às pequenas formas musicais, sobretudo para a canção.
Entre as sinfonias de Schubert, a nona é a mais pessoal. Oferecida com uma elogiosa dedicatória à Sociedade Filarmônica de Viena, foi considerada “muito pesada e muito difícil”. Onze anos decorridos da morte do compositor, Robert Schumann, visitando a humilde casa de Ferdinand Schubert, irmão do compositor, reencontrou, entre outros manuscritos, a partitura da sinfonia rejeitada e providenciou sua estreia na Gewandhaus de Leipzig sob a direção de Felix Mendelssohn.
Em 1928, a morte de Beethoven era muito recente. Schubert certamente sentia a importância do legado sinfônico de seu grande antecessor; o desafio formal assumido pelo jovem compositor ao escrever sua última sinfonia não se deve aferir pelas mesmas normas que regem as sinfonias de seu ídolo. A natureza lírica e expressiva dos longos temas melódicos schubertianos torna-os incompatíveis com o modelo de desenvolvimento típico de Beethoven, calcado no trabalho exaustivo e engenhoso de ideias concisas e determinantes. Por outro lado, apesar da amplitude, a Grande é uma das obras mais concentradas e equilibradas de Schubert, escapando às digressões e fantasias que comumente preenchem suas vastas arquiteturas instrumentais. Pela maneira com que concilia a forma clássica e o espírito romântico, essa sinfonia, única sob muitos aspectos, ocupa uma estratégica posição histórica.
Após a morte de Beethoven, a Sinfonia Romântica trilhou dois caminhos principais: em uma direção, Mendelssohn, Schumann e Brahms adaptaram-na à expressão mais intimista do romantismo, reduzindo as proporções dos movimentos intermediários. Em outra vertente, Berlioz e Liszt, para fugir do clássico modelo beethoveniano, adotaram os programas extramusicais dos poemas sinfônicos. A grande sinfonia de Schubert, por muito tempo ignorada, aponta para o futuro e possui atributos (como a tendência para a unidade cíclica, a disposição formal em amplos espaços harmônicos e a fluidez do discurso melódico) comuns às sinfonias de Bruckner e Mahler.
Na introdução (Andante) do primeiro movimento, as trompas em uníssono apresentam um nobre tema, sutil na dessimetria de sua construção, e do qual derivam os vários motivos do vigoroso Allegro ma non troppo seguinte. Longo e impetuoso, esse movimento desenvolve-se pelos diversos grupos instrumentais com crescente tensão, desencadeando irresistível ascensão até o stretto final da coda, quando, em tempo mais rápido, reapresenta-se o tema inicial das trompas, como um hino radioso e triunfal.
O segundo movimento, (Andante con moto) imenso Lied composto de cinco seções e uma coda, é um dos trechos mais trabalhados e líricos da sinfonia. O tema principal surge no oboé, sobre o acompanhamento staccato das cordas, em ritmo de marcha lenta. A sua feição cantabile é interrompida abruptamente pelo fortíssimo orquestral que, durante todo o movimento, assumirá o papel de elemento contrastante. Schubert explora com sabedoria as transições entre as diversas seções. Particularmente mágica é a atmosfera de apaziguamento, de espera quase muda, antes da volta do primeiro tema.
O Scherzo (Allegro vivace) possui a clássica estrutura arquitetônica tripartida (ABA), mas oferece muitas soluções inventivas. As partes extremas estão na tonalidade principal da sinfonia (Dó maior). Após uma abertura quase agressiva, surge uma série de melodias, alegremente ritmadas, com uma sucessão de modulações engenhosas. O trio central (Lá maior) consiste em uma única melodia – um Ländler vienense de raízes populares, totalmente confiado aos sopros, enquanto às cordas cabe o acompanhamento.
O quarto movimento (Allegro vivace), de mais de mil compassos, fecha impetuosamente a sinfonia. O motivo inicial possui dois breves e incisivos desenhos rítmicos, diferenciados por violento contraste forte/piano, que impulsionam todo o andamento em assombrosa e ininterrupta sucessão de ondas rítmicas. Apresentado pelo oboé, o segundo tema, embora mantenha a pulsação inicial, é mais tranquilo, possui caráter popular e desempenha importante papel no desenvolvimento. As nítidas citações (nas fanfarras) da Ode à Alegria de Beethoven não possuem caráter alusivo, rapsódico — derivam logicamente do material temático do trecho, ao qual se integram de maneira perfeitamente orgânica. A reexposição, em admirável demonstração de habilidade harmônica, começa na inesperada tonalidade de Mi bemol maior. A coda inicia-se com um trêmulo suave dos violoncelos. Apresenta um esquema rítmico de quatro notas e persiste por duzentos compassos, gigantesca, monumental, conduzindo a marcha até a impressionante apoteose final.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.
segunda-feira, 10 de março de 2025
terça-feira, 4 de março de 2025
segunda-feira, 3 de março de 2025
Imediatidade e autoficção: a literatura sob o capitalismo de plataforma
Um comentário ao livro de Anna Kornbluh, "Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism", que será publicado ainda este ano pela Boitempo.
Publicado em 25/02/2025 // 1 comentário
A escritora Annie Ernaux (Wikimedia Commons).
Por Bruna Della Torre
“O dever da literatura é lutar contra a ficção.”
— Karl Ove Knausgaard, em entrevista à New Yorker
“Chamarei o tipo de escrita de Knausgaard de ‘itemização‘. Na pós-modernidade, renunciamos à tentativa de ‘estranhar‘
nossa vida cotidiana e vê-la de formas novas, poéticas ou
aterrorizantes; desistimos de analisá-la em termos da forma-mercadoria,
em uma situação em que tudo agora é mercadoria; abandonamos a busca por
novas linguagens para descrever o fluxo do sempre idêntico ou pôr novas
psicologias para diagnosticar suas reações e eventos psíquicos
desconcertantemente pouco originais. Tudo o que resta é itemizar esses
elementos, enumerar os itens que passam por nós.”
— “Itemised”, Fredric Jameson (London Review of Books)
Em seu provocativo comentário sobre o sexto livro da série de autoficção do escritor norueguês Karl Ove Knausgaard, publicado na London Review of Books em 2018, Fredric Jameson confessa que não acha “a perspectiva de uma utopia em que todos estão diligentemente escrevendo sobre suas experiências – diárias ou ao longo da vida – particularmente atraente”. Em primeiro lugar, porque se todos estivermos empenhados nesse tipo de projeto, não restaria tempo para a vida, para a Experiência com “E” maiúsculo. Segundo, porque, quando se trata de literatura, não é apenas a substância que está em jogo, mas também a forma. Conforme escreveu Júlio Cortázar em Valise de Cronópio, a quem conhecidos não se cansavam de ofertar histórias e causos reais inacreditáveis que poderiam virar um conto, na literatura, o conteúdo de uma história é tão ou menos importante do que o modo como ela é contada.
O boom da chamada literatura de autoficção contemporânea tem sido, nesse sentido, intrigante. Conforme já escrevi aqui no Blog da Boitempo, a tetralogia napolitana de Elena Ferrante me parece um experimento interessante, mas apenas se lida como romance e não como autoficção – o que não é possível fazer com qualquer livro que sustenta esse tipo de escrita. Mas, aparentemente, tudo o que não leve essa marca se torna menos atraente. Isso explicaria, por exemplo, por que Ferrante conta em entrevistas uma história sobre sua mãe costureira e sua infância pobre que – se sua identidade é mesmo essa que foi descoberta há alguns anos (Anita Raja) – não é exatamente verdadeira, ou seja, por que ela se sente de alguma forma impelida a dizer que a história que conta em seus romances é a sua própria história, uma história real.
A autoficção invade não só as prateleiras de best-sellers mundo afora, como ressignifica a própria história da literatura, reivindicando herança daquilo que ficou conhecido como “alto modernismo”. A sombra retroativa desse subgênero – se é que podemos chamá-lo assim – alcança também Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (que se tornou uma de suas principais referências), A montanha mágica, de Thomas Mann, Ulisses, de James Joyce, vários dos romances de Virginia Woolf, como Ao farol e Orlando, entre muitos outros. Livros que até pouco tempo atrás ainda eram tomados – apesar da transfiguração da experiência de seus autores neles contida – como literatura de ficção. Até mesmo Franz Kafka, que havia inicialmente escrito O castelo em primeira pessoa e depois mudou o foco narrativo para a terceira, a fim de obter distância do que era narrado, é visto hoje como um representante da tendência.
Como a crítica cultural hoje ou é puramente conservadora e reacionária ou assume cada vez mais um caráter celebratório, cansativo e monótono – muitas vezes apenas polindo o brilhantismo daquilo que o algoritmo já “viralizou” – pouca gente à esquerda tem se ocupado de responder de onde vem o fascínio com esse novo subgênero que data da década de 1970, ou ao menos atende por esse nome desde então. Esse é um dos assuntos (talvez o melhor deles) do livro Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism [“Imediatidade, ou o estilo do capitalismo demasiadamente tardio”], de Anna Kornbluh.
Inspirada no livro de Jameson sobre o pós-modernismo, a obra de Kornbluh discute a imediatidade como o novo estilo cultural do nosso capitalismo demasiadamente tardio, uma espécie de nova dominante cultural ligada a uma fenomenologia da imersão, ao presenteísmo, à ojeriza pela representação e pela forma. Para a autora, não viveríamos mais numa era pós-moderna (marcada pelo pastiche, pela ironia, pela Theory, que ainda exigiriam alguma mediação do público), mas sim numa pós-pós, ainda mais unidimensional e achatada do que os anos de pós-modernidade e produzida pelo que a autora chama, de maneira um pouco problemática, de “economia da circulação” – ou o neoliberalismo digital financeirizado de plataforma. Nas palavras de Kornbluh,
“Circulação fluida, suave e rápida, seja de petróleo ou de informação, alimenta a radicalização contemporânea do pretexto eterno sistemático do capitalismo: as coisas são produzidas com o propósito de serem trocadas; o dinheiro supera seu papel de mediador da troca para se tornar seu ponto final; os meios de circulação tornam-se o fim da circulação. Como observa o geógrafo econômico David Harvey, ‘quando a circulação para, o valor desaparece e todo o sistema desmorona.’ O preço dessa velocidade no presente é uma destruição exorbitante: vazamentos de oleodutos, carbonização atmosférica, incêndios planetários. E, por sua vez, essas calamidades elementares moldam a imediatidade como estilo cultural. O fluxo como valor essencial para essa estética decorre do fluxo como valor essencial para a economia do século XXI” (Kornbluh, 2024: 25).
Não se trata apenas de um imediatismo vindo do chamado “estado de emergência” do capitalismo das últimas décadas. O livro investiga como a flexibilização do trabalho via plataformas e redes sociais (que impele a maior parte da sociedade a estar sempre on), o regime de circulação imediata de mercadorias da Amazon (“compre agora, receba ainda hoje” ou “compre com um clique” – dispositivo que serve para romper com qualquer possibilidade de reflexão sobre o ato de compra antes presente na mediação dessa compra pela loja física e do caminho da casa ou do trabalho até ela), o desaparecimento do local de trabalho para uma parcela importante da população, todos esses fatores fazem com que a velocidade, o fluxo e a expressão direta passem a dominar todas as esferas da vida. Nada pode impedir o fluxo e que o trabalho e o entretenimento se reúnam numa mesma massa amorfa 24 horas por dia, sete dias por semana. Um movimento intenso que produz estática, uma velocidade tão alta que apaga a temporalidade. Em outras palavras, Kornbluh discute como o capitalismo digital produziu uma mudança não só no fluxo de troca de mercadorias e acumulação de capital, mas uma transformação epistemológica e sensível radical. Tudo passa a obedecer ao imperativo da imediatidade. Assim como o grande feito das plataformas (de trabalho ou entretenimento) foi cortar mediações (jurídicas, estatais, laborais), o estilo cultural que ela gera também passa a operar sob a mesma lógica, cortando intermediários e, mais do que isso, a própria mediação. Kornbluh faz a pergunta que a crítica cultural contemporânea, imersa no aparato da indústria cultural, se recusa a fazer: qual é o impacto da última transformação das forças produtivas capitalistas na arte e na cultura?
O livro tem uma estrutura parecida com o de Jameson (e também é uma versão marxista do estilo de crítica feita atualmente por Byung-Chul Han, que não aparece citado na obra). Kornbluh analisa esse capitalismo demasiadamente tardio a partir dos capítulos “Circulação”, “Imaginário”, “Escrita”, “Vídeo”, “Antiteoria”. A obra tem o mérito de ser um dos esforços recentes mais importantes de relacionar as manifestações estéticas e culturais recentes às formas sociais e econômicas do capitalismo contemporâneo, bem no espírito da teoria crítica, assim como de mostrar como esse regime de circulação faz com que a antipolítica recuse a mediação da organização, a antiteoria recuse a mediação da teoria, a arte recuse a mediação da representação e, por fim, a crítica cultural recuse a mediação da interpretação. Ou seja, o debate gira em torno das consequências estéticas, literárias, políticas e filosóficas do capitalismo de plataforma.
O capítulo mais interessante é sobre a “Escrita”. Trata-se, na verdade, de uma reflexão sobre esse novo gênero de memórias, autoficção e ensaio pessoal que marca a literatura do século XXI. Um subgênero cuja venda – só na primeira década deste século – foi, segundo o New York Times, 400 vezes maior que a média do século XX, compondo cerca de 80% de suas listas de best-sellers. Uma escrita marcada pela “memorização”, na qual predomina:
“a narração em primeira pessoa, mas também a marca do imperativo ‘escreva o que você sabe’; a elevação da experiência vivida do sujeito individual ao tratamento literário; a desconfiança da autoridade desvinculada da experiência; o filtro das dinâmicas sociais e históricas através de lentes subjetivas (ou a desqualificação ativa de lentes objetivas); a promoção da fenomenologia como horizonte-limite para o conhecimento; o empreendimento do confessionalismo; a preocupação com a domesticidade (seja a infância ou o casamento); uma torção da fascinação do romance por órfãos em uma obsessão por culpar os pais; a superação heroica do indivíduo diante das circunstâncias; a narrativa terapêutica dos desafios políticos, sociais e corporais; a centralização do presente histórico; a solicitação solene de reconhecimento, identificação e empatia por parte do leitor; um populismo das massas em oposição ao suposto elitismo dos literatos” (Kornbluh, 2024: 96).
Conforme mostra Kornbluh, a palavra “autoficção” aparece em inglês pela primeira vez no New York Times, sob a pena de Paul West em 1972, mas é atribuída a Serge Doubrovsky (autor de Fils), que escreveu em 1977: “Se eu escrevo minha autobiografia no carro, ela será minha AUTOficção”; uma piada que cede lugar à sua construção como primeiro autor do gênero, que desde então se consagrou como uma escrita sobretudo francesa (que culmina no prêmio Nobel recebido recentemente por Annie Ernaux e no sucesso mundial de Didier Eribon e Édouard Louis). Kornbluh demonstra (inclusive recorrendo a estudos quantitativos) que essa escrita começa a surgir na década de 1970 – com alguma presença importante no feminismo e na literatura queer (como um refúgio para vozes excluídas do cânone) – mas alcança outra estatura (e função) no século XXI.
A autora observa um aspecto específico da autoficção contemporânea: a rejeição da ficcionalidade como tema próprio a essa literatura. Partindo de uma análise do que essa escrita diz sobre o próprio fazer literário – que é um de seus principais motivos – o que essa investigação revela é uma revolta contra a forma e a própria narrativa. Representar passa a ser sinônimo de mentir ou de violentar, e narrar passa a ser sinônimo de falsear. Kornbluh comenta a abordagem da ficção nas obras de vários autores contemporâneos, como Knausgaard, Tao Lin, Maggie Nelson, Rachel Cusk, entre muitos outros.
Um dos principais apelos dessa escrita, afirma Kornbluh, é sua promessa de um acesso imediato à realidade: a pessoa real deve tomar o lugar tanto do narrador quanto da personagem, a narração em terceira pessoa ou discurso indireto livre dá lugar a uma voz, uma voz que diz a “verdade”. Conforme escreveu Cusk, “A ideia de inventar John e Jane e fazê-los fazer coisas parece totalmente ridícula”. Nessa chave, Lin também afirma: “eu quero que a escrita seja útil para mim. Quando estou inventando coisas, parece que estou me confundindo, acrescentando coisas à minha memória que nunca aconteceram” (apud Kornbluh, 2024: 70). Knaausgard fala sobre uma crise da ficção, de sua falta de valor literário:
“A própria ideia de ficção, a simples ideia de um personagem fabricado em uma trama fabricada, me deixava com náusea, eu reagia de forma física… Nos últimos anos, eu tinha perdido cada vez mais a fé na literatura. Eu lia e pensava: isso é algo que alguém inventou… pessoas inventadas em um mundo inventado, embora realista… Era uma crise… Eu não conseguia escrever assim, não funcionava, cada frase era recebida com o pensamento: mas você está apenas inventando isso. Isso não tem valor. A escrita ficcional não tem valor… Os únicos gêneros nos quais eu via valor, que ainda conferiam significado, eram diários e ensaios, os tipos de literatura que não lidavam com narrativa, que não eram sobre nada, mas consistiam apenas em uma voz, a voz de sua própria personalidade… A arte não pode ser experimentada coletivamente, nada pode” (Karl Ove Knausgaard, My Struggle apud Kornbluh, 2024: 65).
Mas o que teria acontecido para que a ficção entrasse em crise? Kornbluh não usa exatamente esses termos, mas tudo se passa como se o problema não fosse mais a posição do narrador no romance contemporâneo, ou seja, o que sua perspectiva pode ou não alcançar e o que ela deixa de fora, como queria Theodor W. Adorno, mas o próprio ato de narrar e a forma romance são postos em xeque. Há a percepção de um esgotamento generalizado de ambos e a tendência de aprofundamento do elemento lírico do romance modernista, observada por Adorno em seu famoso ensaio, dá lugar ao fim da dialética entre objetividade e subjetividade que acompanhou o romance até aqui. O que Kornbluh faz é tentar compreender de onde isso vem. E se pergunta: “se há uma transformação na história do romance no século XXI, a que essa transformação corresponde?” (Kornbluh, 2024: 80-81). Por que a ficcionalidade deve ser apagada e a forma e a invenção devem dar lugar à imediatidade como imperativo da escrita? Por que o narrador (em primeira ou terceira pessoa) dá lugar a um narrador personagem que é o mesmo que o autor ou autora em nome e circunstância? Por que, em vez de narratividade e enredo, essa escrita privilegia, em geral, um presente sem acontecimento, sem construção ficcional, duração e figuração?
O grande apelo da autoficção, diz Kornbluh, seria justamente esse: o de entregar identidade, instantaneidade, a “coisa em si”: sem filtro. A literatura contemporânea, escreve a autora, “repudia a representação em si, decompõe narração, personagem, enredo, e a fumaça do mito a favor de manifestar coisas que afetam visceralmente” (Kornbluh, 2024: 7). Isso significaria, em termos baudelairianos, que a literatura deixa de se configurar como “promessa de felicidade”, para se configurar como promessa de realidade. Trata-se de um desejo renovado de realismo, diz Kornbluh, mas não aquele de Lukács (ou de Adorno, diria eu também), mas de um realismo no sentido imediato do termo – um acesso imaculado à experiência. A ironia, que em literatura foi por muito tempo um de seus principais meios de distanciamento, cede lugar à sinceridade e à personalização, que faz da narrativa em primeira pessoa a única possibilidade de uma narrativa “honesta” – o que, de fato, é uma ideologia, pois essa imediatidade é menos um fato do que uma construção, uma aparência socialmente necessária para esse subgênero. De qualquer forma, o que vale é que toda essa escrita se assenta no discurso de que apresenta a verdade sem mediações, invenções e meias palavras.
Os estudos quantitativos a que Kornbluh recorre apontam que o declínio da narração em primeira pessoa (em língua inglesa), que começou no século XVIII, sofre uma inversão de tendência e passa a ascender a partir dos anos de 1970. As consequências para a literatura são muitas, uma vez que:
“a terceira pessoa prova ser definidora para a forma do romance: uma construção extraordinária de um modo de pensamento inacessível para nós na experiência cotidiana vivida, em nossos próprios envelopes estúpidos. A terceira pessoa se estende para além da subjetividade fenomenal, em direção à objetividade especulativa. Ela realiza um tipo de pensamento indisponível em qualquer outro lugar — e essa é a mágica. […] O personalismo em primeira pessoa no romance é uma mutação abrangente, uma desestruturação da objetividade literária, um evento de proporções épicas que exige uma explicação séria. A rejeição explícita da ficcionalidade pela autoficção é, portanto, apenas a expressão mais autoconsciente de uma tendência representacional muito mais ampla que apaga o ponto de vista impessoal, antifenomênico e especulativo que definiu o romance ao longo de sua história. Poderíamos até dizer que, em sua expressividade anti-medium e angústia nauseante, a autoficção funciona como a teoria patente dessa mutação” (Kornbluh, 2024: 79-80).
Essas reflexões são obviamente generalistas, há exceções; é evidente que nem todo romance narrado em primeira pessoa é subjetivista (conforme lemos no “alto modernismo”) e nem todo romance narrado em terceira pessoa alcança a objetividade. Em todo caso, trata-se de uma tendência. Nesse sentido, a autoficção é expressão da imediatidade como estilo cultural que, segundo Kornbluh, não só abdica da representação (a mediadora da relação entre literatura e sociedade), como a rejeita com veemência. É certo que ao longo da história a desigualdade entre quem representa e quem é representado emulou as desigualdades da sociedade patriarcal, capitalista, heteronormativa e branca e o mesmo vale para a crítica literária (Adorno, por exemplo, não analisa a obra de nenhuma mulher em suas Notas de Literatura). No entanto, a pergunta interessante que o estudo de Kornbluh suscita é: por que, ao invés de equilibrar a balança e trazer para a literatura o que (e quem) estava fora dela, recusar a representação por si mesma?
Essa escrita almeja (e atinge) uma aparência de sinceridade e autenticidade, de não construção, para a qual os valores são, segundo Kornbluh, os afetos, vulnerabilidades (um conceito problemático cada vez mais utilizado pelo feminismo) e verdades pessoais. Conforme descreve Jameson no trecho citado acima, ela envolve uma imanentização da experiência, um aprisionamento na descrição e a ideia de que todo conhecimento só pode ser pessoal. Ou, nas palavras de Kornbluh (2024: 66), “ao invés de um romance como uma teoria do mundo ou dos mundos possíveis, só há micrologia”, ou um novo sociologismo – o que, vale ressaltar, a diferencia do que ficou conhecido como literatura de testemunho, para a qual história e memória são fundamentais (uma diferença que Kornbluh também não explora).
Como escrevi acima (e Kornbluh também reconhece), embora essa literatura tenha sido importante no sentido de apresentar outras vozes que não apareciam no cânone literário até então, ela, nos dias de hoje, não só encontra apoio, mas também sustenta a ideologia de que falar a verdade sobre si é por si mesmo transgressivo (não é à toa que lutar contra a vergonha de se expor é um de seus motes) – uma ideia que é cada vez mais cara à economia da Big Tech, cujos lucros advém de nosso desejo de nos mostrar. Isto é, ela acompanha a explosão da privacidade não como sua superação revolucionária e pós-burguesa, mas como um modo de vida ligado ao capitalismo de plataforma (cujo modelo de negócio é baseado na exposição cotidiana do self).
Nesse sentido, Kornbluh associa a autoficção ao boom dos realities no streaming e à forma memorialística e biográfica de redes como o Instagram, que produz uma espécie de autobiografia em tempo real. O que são as redes socias, pergunta a autora, senão tecnologias de autoapresentação que nos impelem a cultivar nós mesmos como marcas? Como sugere Kornbluh, o modelo da plataforma é absorvido por essa escrita, baseada na velocidade, na falta de reflexão e, mais importante ainda, sem filtros: “encontramos romances tradicionais que nascem digitais, estruturados como twitfic (Black Box, de Jennifer Egan), postagens do Instagram (Sympathy, de Olivia Sudjic), compartilhamentos no Facebook (Komodo, de Jeff VanderMeer) ou autoficções do fluxo de todos os aplicativos (Crudo, de Olivia Laing)” (Kornbluh, 2024: 98). Além disso, outro impacto da imediatidade do capitalismo digital e do binarismo de plataforma em nós, enquanto leitoras, seria que, como tudo nesse meio, tudo deve ser passível de identificação pessoal [relatable] ou de ódio [hateable].
Se um dia a teoria crítica teve que se opor ao gosto como critério de avaliação da arte (gosto, esse, que a sociologia também se esforçou para mostrar que é socialmente construído), hoje, esse gosto é amplamente ligado à capacidade que um artefato tem de produzir identificação. Tudo também deve ser acessível, no sentido de não exigir interpretação – uma vez que essa, por si só, seria um índice de elitismo. Nesse ponto, a imediatidade também aprofunda as tendências contra a interpretação do pós-modernismo, imortalizadas no famoso ensaio de Susan Sontag que leva o mesmo nome.
Ao ler o livro, fiquei pensando em algo que Kornbluh não discute, mas que valeria uma reflexão. Se pensarmos que o “memorialismo” (na forma da autobiografia) foi em geral um subgênero aristocrático e, posteriormente, burguês – a história de grandes homens ricos, brancos e heterossexuais em sua maioria contados por si próprios, um gênero que no Brasil tem uma longa tradição nas classes dominantes e persiste no cinema até hoje (e que poderíamos dizer que Machado de Assis ironiza avant la lettre em suas Memórias Póstumas de Brás Cubas) –, a autoficção pode ser compreendida como uma inversão do gênero, que agora proclama vir de baixo (embora seja uma tendência majoritariamente advinda do centro do capitalismo). Assim como Andy Warhol afirmou que a televisão vinha com a promessa de conceder ao cidadão comum os seus cincos minutos de fama, as redes sociais fazem de cada um de nós nossa própria celebridade – algo que de alguma forma está presente também na autoficção, como uma espécie de auto romance realista do homem e da mulher comum (uma nova forma do que Georg Lukács chamou de “naturalismo” em sua fase tardia). Aliás, o aparente amadorismo dessa escrita também é um de seus apelos: qualquer um pode se tornar um escritor ou uma escritora, um produto da economia de plataforma (que derruba especialistas em todas as áreas), fazendo o mesmo com a literatura e a crítica literária. Mas isso é menos uma democratização, sublinha Kornbluh, e mais um resultado da precarização da literatura sob o neoliberalismo:
“A autoficção, a ficção em primeira pessoa, as memórias, as redes sociais e o ensaio pessoal compõem um contínuo de autoemissão, indicando o quanto da produção literária segue a ideologia do capital humano que transforma o bem-estar cotidiano em um mandato para otimizar o material interior e concretizar o eu, e o quanto da literatura contemporânea se constitui por sua rejeição à mediação. O conteúdo em fluxo contínuo, originado de freelancers, a escrita automática sem ‘a distância entre escritor, leitor e crítico’, a imediatidade do escritor estetiza as condições industriais na publicação, que, como aponta a estudiosa cultural Sarah Brouillette, seguem de perto a gigificação e a precarização presentes em outras indústrias. Na ausência de instituições como sindicatos de escritores e associações de equipe, sem salários para horas de pesquisa, sem protocolos de conhecimento como reportagens investigativas ou sínteses de longo prazo, e afundados em dívidas estudantis, os criadores de conteúdo manejam seu único ativo: a expressão de sua vida interior. Sua história é algo que você deve possuir”(Kornbluh, 2024: 101).
Kornbluh discute não só as consequências dessa economia da circulação para a literatura, mas sua própria plataformização. O mercado da autopublicação em sites e plataformas, diz ela, já é hoje um mercado bilionário nos Estados Unidos, no qual todo trabalho que era exercido por uma editora passa a ser transferido para os autores e autoras. Nesse sentido, a autorreflexão sobre o próprio processo de escrita e publicação de um livro presente na escrita de autoficção certamente tem algo a ver com isso, assim como o ensaio pessoal tem a ver com a prática do blogging que ascendeu nos anos 2000. O livro apresenta também um comentário interessante sobre a chamada “escrita criativa” nos Estados Unidos, que, a partir da década de 1970, foi incluída como disciplina no currículo de mais de 300 universidades, um mercado que só cresce (inclusive no Brasil). Para Kornbluh, a difusão desse tipo de curso (para o qual a autoficção é central) seria um sintoma da crise generalizada de saúde mental produzida por esse capitalismo demasiadamente tardio, da mercantilização do trauma a ela relacionada (basta pensar como a própria documentação de admissão nas universidades estadunidenses envolve transformar traumas em uma mercadoria consumível – o que, por sua vez, não significa que esses traumas não existam) e que resulta numa noção de escrita que é acima de tudo terapêutica. Nessa chave,
“a economia da circulação molda essa unidade estilística de mediação anulada, em condições que englobam a expansão dos programas de escrita universitária em meio a uma crise laboral no meio acadêmico, a redução drástica nas indústrias de publicação e jornalismo e a ubiquidade de empreendedores freelancers. Profissões sem especialistas deixam os indivíduos à deriva, tentando se autoatualizar sozinhos em uma sociedade que não existe. O abandono contemporâneo da mediação literária simplesmente estetiza essas condições, descartando o potencial da literatura de criticar imanentemente o mundo conhecido” (Kornbluh, 2024: 69).
O livro de Kornbluh apresenta a imediatidade como marca da falta de estratégia da esquerda diante da crise múltipla que enfrentamos, desse estado de coisas que produz uma fenomenalidade zumbi, diz ela, da qual não conseguimos escapar. Não sei se estou de acordo com tudo que está no livro de Kornbluh, mas suas reflexões certamente iniciam um debate necessário num momento em que a esquerda está completamente resignada à indústria cultural a ponto de sequer considerá-la um objeto passível de crítica – um problema do qual seu livro também sofre, ao se perguntar sobre a possibilidade de uma indústria cultural melhor. Mas também num momento em que não temos um projeto cultural de arte, teoria e crítica cultural – não autônomo, pois essa foi uma das maiores ilusões burguesas da história da arte, mas, ao menos, independente das formas que nos são oferecidas prontas pelas grandes plataformas.
É impossível não pensar como a própria palavra “narrativa” está hoje desgastada e faz parte da crise generalizada da noção de “verdade”, que está presente na política, na estética e na ciência. À direita, ela é associada à mentira e à invenção; em círculos progressistas (quando não usada da mesma maneira que pela direita), assume um conteúdo relativista: “narrativa” visa substituir um conceito autoritário de verdade, mas, na realidade, o abandona. Ou seja, ela se distancia cada vez mais da ideia de que continha algo de objetivo que lhe era próprio.
Criticar a autoficção hoje é imediatamente associado ao conservadorismo – e a maioria das críticas a esse tipo de escrita é de fato conservadora, antifeminista, classista, racista. Seria preciso também estudar como essa forma aterrissou nas periferias do capitalismo e como ela funciona nesse âmbito. Em todo caso, é importante sublinhar que analisar a origem dessa escrita não é o mesmo que condenar, mas retraçar a relação entre literatura e sociedade, compreender como as tendências literárias (para além do argumento bourdiesiano mais raso sobre elites e mercado editorial) estão ligadas a formas sociais mais profundas, de um capitalismo que, para ser compreendido, apreendido e destruído, nunca precisou de tanta mediação. Como afirma Kornbluh (2024: 216), “imediatidade é instante, a mediação dilata; imediatidade é urgente, a mediação desloca; imediatidade flui, mediação bloqueia; imediatidade confessa, a mediação entrelaça; a imediatidade desliza, a mediação relaciona”. Seu livro é uma defesa da dialética. E, dessa, nós precisamos mais do que nunca.
Referência
KORNBLUH, Anne. Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism. London: Verso Books, 2024.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
O comunista italiano cujos livros infantis radicalizaram uma geração
Pedro Silva
Gianni Rodari foi o autor infantil mais importante da Itália — e também um militante comunista. Adorado por gerações de leitores, seus contos de fadas irreverentes encorajavam as crianças a questionarem a autoridade e pensar por si mesmas.
Em uma terra sem nome, um ditador feroz atormenta seu povo com violência arbitrária, repressão e abuso: “Aqueles que se opuseram a ele foram fuzilados. Os pobres foram perseguidos, humilhados e insultados de cem maneiras”. O único que ousa se opor a ele é um jovem garoto chamado Giacomo, cujo corpo é feito de cristal. Também cristalinos são os pensamentos, sentimentos e a raiva de Giacomo, que todos podem ver através de seu corpo transparente.
O ditador não considera a sinceridade uma virtude em seus súditos — e devidamente manda prender o garoto. Mas Giacomo consegue inspirar subversão mesmo de dentro de sua cela, que parece se transformar em cristal com sua presença, permitindo que ele transmita seus pensamentos para o mundo exterior. O conto chega à sua impressionante conclusão:
À noite, a prisão emitia uma grande luz, e o tirano em seu palácio fechava suas cortinas para não vê-la, mas ele ainda não conseguia dormir. Crystal Giacomo — mesmo acorrentado — era mais forte do que ele, porque a verdade é mais forte do que qualquer outra coisa, mais luminosa do que o próprio dia, mais terrível do que um furacão.
Qualquer indício de inocência se perde aqui. Verdade e justiça, o conto parece sugerir, eventualmente se afirmam com violência justa. O próprio Giacomo, apesar de sua pouca idade e disposição bem-humorada, não é um conformista. Ele tem algo de Antonio Gramsci em si, seguindo seu trabalho e vocação com uma incomum determinação mesmo sob cativeiro, bem como a raiva de um profeta que planta a semente da dissidência naqueles que cruzam seu caminho.
Se você se tornou justificadamente cauteloso com mártires e heróis, olhe para o texto novamente, pois Giacomo não é escalado para nenhum desses papéis. Em vez disso, em suas últimas frases, a história já está se afastando dele para se concentrar nas inquietações que ele causou na sociedade em geral. Sua vitória final, se ela vier, será por conta da consciência despertada em outros, e não ao auto-sacrifício individual.
A história de Giacomo é uma das muitas histórias desse tipo em Fábulas ao telefone (“Favole al telefono”), uma coleção de contos publicada em 1962 por Gianni Rodari. Uma tradução recente para o inglês foi lançada em 2020 para celebrar o centésimo aniversário de seu nascimento, permitindo que o público de língua inglesa descubra mais de sua obra, embora muito depois de vários outros países na Europa e além.
Professor e jornalista que virou autor infantil, Rodari tinha motivos para se sentir bastante satisfeito em 1962. Tendo feito seu nome na seção cultural e jornalística do Partido Comunista Italiano (PCI) — mas também lutando com salários miseráveis e disputas internas da máquina partidária — ele garantiu uma vaga como correspondente especial do diário amplamente distribuído Paese Sera. Colaborador frequente da RAI (emissora nacional da Itália) e também da BBC, a popularidade dos livros de Rodari não estava mais confinada à sua Itália natal. Ele já era conhecido e amado na URSS, onde seu trabalho teve várias ondas de edições e adaptações.

Particularmente amado no Bloco Oriental era Cipollino (“Pequena Cebola”) de Rodari, outra figura rebelde que lidera uma comunidade de vegetais antropomórficos oprimidos em uma luta contra os modos erráticos e tirânicos do Príncipe Lemon. Com sua irreverência, seu desrespeito geral à autoridade e seu forte senso de solidariedade com os outros, Crystal Giacomo e Cipollino são indicativos da concepção de conto de fadas de Rodari — uma visão também conectada ao que ele testemunhou em sua própria vida.
A gramática da fantasia
Nascido em 1920 em Omegna, na região de Piemonte, no norte da Itália, Rodari veio de origens humildes. Seu pai era padeiro e sua mãe uma empregada doméstica — “uma daquelas que falavam francês” e também autodidata, como o próprio Gianni se tornaria no devido tempo. Rodari lembrou mais tarde que introduzir os jovens ao prazer da leitura não era a principal preocupação de pessoas como seus pais; quando ele era menino, vastas faixas da população ainda eram analfabetas e lutavam para sobreviver em meio à pobreza, doença e excesso de trabalho incapacitante. Como muitos outros tipos de prazer, os livros eram uma questão de herança. Uma biblioteca doméstica era algo a ser passado de geração em geração em lares de classe média e alta, garantindo assim acesso imediato ao material de leitura que um menino como Gianni tinha que adquirir de maneiras mais indiretas.
Na época em que Rodari se tornou um autor de sucesso, o analfabetismo era em grande parte um problema do passado, e livros de bolso baratos tornaram a ideia de uma biblioteca privada menos proibitiva. De fato, o PCI, no qual Rodari foi ativo durante várias fases de sua carreira, liderou muitas iniciativas que buscaram tornar a literatura, a cultura e a filosofia acessíveis ao público em geral — por exemplo, publicando uma grande série de edições de bolso de baixo preço de pensadores e escritores socialistas, bem como uma seleção de clássicos literários. As famílias da classe trabalhadora agora podiam acumular uma pequena biblioteca própria, povoada por autores e teóricos de todo o mundo — um dos principais objetivos era a tentativa de “desprovincializar” a Itália em termos culturais.
Nada disso estava disponível durante a infância de Rodari. Mas o futuro escritor ainda ganhou muito observando seu pai trabalhando ao redor do forno, aprendendo a respeitar e valorizar o trabalho de um artesão — em termos literários, ele eventualmente se tornaria um. Uma de suas obras mais duradouras e retomadas, A gramática da fantasia: Uma introdução à arte de intentar histórias (“La grammatica della fantasia”, de 1973), é dedicada precisamente a identificar, explicar e disseminar as ferramentas de seu ofício.
“As pequenas histórias e contos de fadas de Rodari não se passam em mundos de fantasia ou em um passado atemporal, optando pelo cenário mais mundano da Itália contemporânea.”
A gramática da Fantasia abrange tudo, desde as maneiras de incitar crianças (ou adultos) a se lançarem em voos de fantasia sequestrando e alienando certas palavras e frases cotidianas, até como contar uma história ou convidar outros a fazê-lo brincando com as “funções” de Vladimir Propp para falar sobre fatos cotidianos e distorcê-los em contos excêntricos. Onde Propp, o teórico formalista russo do conto de fadas, compôs uma taxonomia de tropos e situações recorrentes para esse gênero — como “o herói parte”, “o herói retorna para casa disfarçado”, “o herói luta contra o antagonista” e “o impostor é desmascarado” — Rodari transformou isso em cartas que as crianças poderiam usar para improvisar suas próprias histórias. As “cartas de Propp” eram, em sua mente, uma maneira de fornecer às crianças uma consciência dos elementos básicos dos contos de fadas e, assim, se tornarem leitores e contadores de histórias mais críticos — as funções de Propp sendo semelhantes às doze notas que os músicos usam “para criar inúmeras melodias”.
As raízes classistas de Rodari, juntamente com as arbitrariedades que seus amigos e familiares sofreram nas mãos dos fascistas durante a Segunda Guerra Mundial, acabaram por levá-lo à Resistência clandestina e — uma vez que a guerra acabou — ao Partido Comunista Italiano, um dos mais fortes do Ocidente. Através de seu trabalho como editor e colaborador de publicações como L’Unità (o diário do partido) ou Il Pioniere (a revista infantil publicada pelo PCI), bem como por meio de suas próprias rimas infantis e contos de fadas, Rodari acrescentou um toque político decisivo à sua literatura infantil; no entanto, uma leitura socialista de sua obra hoje deve celebrar esse aspecto e evitar reduzi-lo a um slogan banal.
Uma cebola tem muitas camadas
Se Rodari tivesse se limitado a escrever contos moralistas com um toque comunista, seus livros dificilmente teriam qualquer influência significativa sobre os leitores de hoje. Provavelmente o veríamos como uma relíquia um tanto embaraçosa de uma época em que ideias e políticas da esquerda faziam parte do mainstream — um fornecedor de propaganda infantil cuja proximidade ideológica com nossas próprias convicções o deixaria ainda mais desconfortável. No entanto, os livros de Rodari ainda conseguem fascinar leitores de todas as idades em todo o mundo, apontando para algum elemento eterno em suas produções que lhe permite manter a relevância mesmo trinta ou quarenta anos após seu apogeu e morte. Isso ocorre em parte porque seu trabalho testa os limites do que os contos de fadas podem fazer.
Seu trabalho educacional por meio de livros como A gramática da fantasia e as oficinas com crianças, professores e pais que o precederam são apenas um lado da equação — e seria ingênuo ver isso como uma transmissão dos “meios de produção literária”. Por um lado, Rodari teve que lidar com a relutância da indústria em pagar seus criadores adequadamente. A literatura sob o capitalismo é uma indústria como qualquer outra (com a ressalva de que muitas vezes não se vê como uma, sentindo-se livre para tomar mais liberdades com seus trabalhadores do que normalmente seria o caso), e nenhum volume de pensamento crítico ou narrativa pode mudar suas hierarquias da noite para o dia.
O trabalho de Rodari visa outro tipo de libertação, por meio da compreensão e da criatividade, em uma mudança semelhante à que Crystal Giacomo produziu. É a possibilidade de suspender as rotinas automáticas do pensamento cotidiano e as ofensas que poderiam ser simplesmente tomadas como corretas, em vez de abrir mentes para a mudança e até mesmo a revolução por meio da imaginação.
Esta é também a razão pela qual tantos contos e contos de fadas de Rodari não se passam em mundos de fantasia ou em um passado atemporal. Em vez disso, ele opta pelo cenário mais mundano da Itália contemporânea, especificamente as cidades industriais do Norte que eram tão familiares para ele e tão facilmente reconhecíveis para seus jovens leitores. A magia e a desordem que irrompem na história têm um efeito consideravelmente mais forte nesses cenários cotidianos — especialmente para leitores muito jovens, que podem ser atraídos por mundos fictícios precisamente porque instintivamente sentem que a realidade ao seu redor é sufocante e opressiva.
Vemos isso em uma história de Il libro degli errori (“O Livro dos Erros”, publicado em 1964), centrada em um ragioniere esbelto e excessivamente zeloso de Trieste. (Um ragioniere é um contador, um trabalho comum e “seguro” da classe média que era um alvo popular de piadas sobre o caráter insosso e o tédio da vida burguesa do pós-guerra.) Ele pode evitar ser levado pelos poderosos ventos bora da cidade portuária apenas carregando um tijolo em sua pasta, até que um dia ele deixa o peso cair por acidente, e o bora o leva para uma aventura transatlântica. Em seu retorno, ninguém em sua família ou em sua empresa acredita em sua história, mas ele ainda repete seus exercícios de voo nos dias de bora, encontrando neles grande diversão e relaxamento.
“Nunca julgue um homem por sua aparência, sua profissão ou o estado de sua jaqueta”, somos advertidos. “Cada homem pode realizar coisas extraordinárias: muitos não as fazem apenas porque não sabem que podem, ou porque não conseguem se livrar de seu próprio tijolo”. Este final não pretende ser um consolo da labuta do trabalho repetitivo e entorpecente por meio da magia do escapismo; em vez disso, aponta para o absurdo das restrições impostas por classe, trabalho e educação, e como ignorá-las é a única maneira de alcançar a liberdade. “Livrar-se do próprio tijolo”, nas fábulas de Rodari, nunca é um ato puramente individualista.
Isso é ilustrado até mesmo em contos mais fantasiosos como “Cipollino”, que carregam uma mensagem oculta que pode ter passado despercebida pelos pais e educadores que contaram a fábula para seus alunos e filhos: Rodari escolheu vegetais e frutas para ensaiar sua própria versão da luta de classes porque eram itens básicos que os italianos achavam difícil adquirir no período imediatamente posterior à guerra. Há também uma estratificação de classe oculta em seu papel na história, o protagonista sendo uma cebola humilde em uma comunidade de vegetais igualmente baratos como abobrinha e abóboras, e as pessoas nobres sendo representadas por iguarias “mais sofisticadas” como cerejas e tomates. A história é uma intimação para não confiar em nenhum abuso de poder por autoridades cuja legitimidade deve, em qualquer caso, ser questionada.
Jogos soviéticos
A filiação formal de Rodari ao PCI não o salvou das críticas de seus camaradas de partido. A marca de antiautoritarismo que seus contos de fadas promoviam não agradava a certos quadros, e Rodari enfrentou considerável ostracismo devido às suas visões pouco ortodoxas. Este debate no contexto italiano reflete a maneira como Rodari foi recebido na URSS. Tradutores e escritores lixaram preventivamente as arestas afiadas de seus personagens e histórias para fazê-los parecer mais alinhados com a ortodoxia do partido, lançando Rodari em uma luz semi-heroica: o bardo comunista levando de forma divertida a linha do partido à juventude que sofria a lavagem cerebral de um país capitalista, com um elemento adicional de exotismo italiano.
Deixando de lado todas as desventuras de sua recepção, Rodari sempre teve curiosidade de conhecer seus leitores no bloco comunista. Um ano antes de sua morte em 1980, ele embarcou em sua última e mais extensa viagem pela União Soviética. Seu diário desta última jornada — que ele nunca teve tempo de editar para publicação e que apareceu postumamente em 1984 sob o título Giochi nell’URSS (“Jogos na URSS”) — documenta suas impressões sinceras das muitas cidades e países que visitou. Ele toma nota do ritmo diário de trabalho, estudo e lazer dos jovens, e descreve as organizações que regulam suas vidas (para melhor ou para pior). Ele nos dá descrições deliciosas dos jogos e charadas populares com que as crianças brincavam — e os jogos de linguagem que vêm à sua mente enquanto italiano e russo (dos quais ele tinha algum conhecimento prático) batalham em sua cabeça.
“O protagonista de Rodari é uma cebola humilde em uma comunidade de vegetais igualmente baratos, como abobrinha e abóbora, enquanto os nobres são representados por iguarias ‘mais sofisticadas’, como cerejas e tomates.”
Rodari também reflete lucidamente sobre seu próprio relacionamento distorcido com a Rússia e o bloco soviético como um comunista italiano — projetando nele certas ideias de civilidade coletivista e encontrando-as parcialmente confirmadas, mas parcialmente refutadas. Ele avalia a configuração do terreno observando como as crianças que ele conhece em escolas e orfanatos locais reagem aos desafios de contar histórias e jogos que ele apresenta a elas. Algumas delas são brincalhonas e atenciosas, misturando folclore local e esperteza das ruas em suas invenções e provando uma capacidade de pensamento criativo. Mas outras permanecem rígidas e “quase congeladas”, como se estivessem com medo de mergulhar na fantasia diante dos educadores sempre vigilantes que regimentam as visitas do escritor com precisão militar.
Na cidade caucasiana de Pyatigorsk, ele participa das celebrações de outono de uma escola primária local. Enquanto as crianças e seus pais brincam, cantam e oferecem a ele pão, biscoitos e blinis, ele é levado de volta à sua Piemonte natal, e tem uma visão de seu pai há muito perdido que ele encapsula em um poema:
Eu vi meu pai hoje. Chegando aos portões do Cáucaso, bem depois dos meus anos verdes, de repente vi meu pai quando criança, longe de casa, arrancado de seus entes queridos, um trabalhador de oito anos em uma padaria em meio às montanhas áridas do vale de Ossola.
Eu o vi nas crianças sorridentes que dançavam e me ofereciam pão em Pyatigorsk: na grande e bela cúpula daquele pão esplêndido. É assim que aqueles que têm fome sonham com pão e sentem sua fragrância durante o sono.
Ele estava feliz, meu pai estava, e ele cantava com as vozes estridentes de crianças como eu nunca o tinha ouvido cantar antes de sua morte. E em seu coração, meu próprio coração estava batendo.
Obrigado, camaradas, pelo pão doce, pelas memórias agridoces, pelo meu pai criança, sozinho com seu trabalho, amassando o pão dos outros em sua dor.
Mais uma vez, sua mente retorna à arte de assar pães que seu pai transformou em um trabalho e ao seu primeiro contato com a alegria de criar — mas também à opressão que ele sofreu como trabalhador e criança, enquanto o festival que acontece ao seu redor em uma escola primária de Pyatigorsk sugere um futuro possível diferente e mais sereno.
A longa e exaustiva viagem não fez nada para aliviar as já precárias condições de saúde de Rodari, que pioraram constantemente após seu retorno da URSS. Ele morreu de parada cardíaca em 1980, deixando para trás sua esposa e filhas, bem como um legado literário que durará mais que sua própria idade.
Sobre os autores
é um escritor, professor e pesquisador que vive e trabalha em Berlim.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
sábado, 8 de fevereiro de 2025
quinta-feira, 23 de janeiro de 2025
NAOMI KLEIN
Naomi Klein: O falso e o real através do espelho
Livro provocador da jornalista canadense analisa a realidade da falsidade
no indivíduo “duplicado” nas redes sociais. Como o desejo por fama e
adulação alimenta uma performance que pode, rapidamente, levar à “morte
social”? E como isso alimenta a ultradireita?
Boletim Outras Palavras
segunda-feira, 20 de janeiro de 2025
PHILIP ROTH
Philip Roth, muito além da imaginação
O escritor era acusado de ser antissemita, de odiar a si mesmo. Por outro lado, era enaltecido pelos judeus por ser um dos escritores norte-americanos mais premiados de sua geração
A imaginação possui uma estrutura desvendável. Já o real é totalmente indecifrável e imprevisível, até que efetivamente ocorra e torne-se óbvio para os assinantes do jornal de amanhã e para os engenheiros de obras prontas.
Você pode ficar maravilhado com uma ficção e pode até ficar encafifado com a linguagem onírica de uma obra nonsense. Mas o susto que leva com a chamada realidade está muito além da imaginação. “Nunca vi isso!”, pois é, mas agora você está vendo. A maior parte dos escritores usa suas memórias para produzir ficção, mas Philip Roth é conhecido como o autor que, mais do que isso, confunde deliberadamente autobiografia e ficção.
Eu não escrevo ficção porque, para mim, soa como se eu estivesse escrevendo um monte de mentiras (embora eu adore ler ficção). Só escrevo memórias e, mesmo assim, filtro todas elas porque acho que sou responsável pelas palavras que saem da minha boca e, mais ainda, pelas palavras cravadas, isto é, gravadas ou grafadas. Evito expor as pessoas que me cercam, vivas, moribundas ou mortas. Não conto o que sei, sei o que conto. Alguém poderia dizer, então, que conto meias verdades.
Mesmo me abstendo de expor as pessoas que me cercam, minhas memórias põem a nu um monte de instituições e pessoas, sem nomeá-las, que se escondem atrás dessas instituições. Pode parecer contraditório, mas, nestes casos, estou assumindo a responsabilidade de denunciar condutas que me parecem perversas, vindas de pessoas e instituições acima de qualquer suspeita.
Goodbye Columbus
Goodbye Columbus marca a estreia do irreverente Philip Roth no mercado editorial. O que conhecemos como a revolução sexual dos anos 1960, nos Estados Unidos deu-se nos anos 1950, a ponto de ganhar espaço literário já no final dessa década. O livro Goodbye Columbus reúne cinco contos, além da história que dá título ao livro, que narra o relacionamento sexual entre dois jovens namorados, publicada originalmente em The Paris Review.
Na abertura do conto Goodbye Columbus, já no primeiro parágrafo, o rapaz tem uma ereção ao observar uma garota puxar, com os dedos, a parte de trás do maiô, de forma a colocar as suas carnes no devido lugar. Tive uma ereção, em inglês, seria I had an erection e, mais vulgarmente, I had a hard-on, pouco apropriado para uma obra literária. Philip Roth usou my blood jumped, meu sangue saltou.
O romance segue com a aproximação afetiva e sexual do casal. O rapaz pede para a namorada usar um diafragma como contraceptivo. A pílula anticoncepcional só foi introduzida nos anos 1960, mas o diafragma era amplamente utilizado pelas mulheres casadas norte-americanas desde os anos 1920. Nos anos 1950, vários ginecologistas começaram a disponibilizar o contraceptivo para mulheres solteiras. A garota, a princípio, recusou-se a providenciar um diafragma, mas depois cedeu. Eles estavam enamorados.
Por descuido, a garota deixou o diafragma na casa dos pais quando voltou para a universidade. A mãe, limpando as gavetas da menina, encontrou o artefato debaixo de uma de suas roupas e foi um escândalo. Quando o rapaz soube do ocorrido, não conseguiu desculpar a namorada pelo descuido e o romance terminou. Junto com o romance entre os dois enamorados, acabou a história também, em total desacordo com o sublime envolvimento do casal até esse ponto.
Ou seja, a história desanda no final. Mas o que valeu o tremendo sucesso de crítica e público foi a irreverente narrativa literária de uma relação amorosa e sexual entre dois jovens de classe média, não casados, já nos anos 1950.
Goodbye Columbus foi publicado em forma de livro em 1959. Em Epstein, um dos outros cinco contos que compõem o livro, a filha do protagonista também se relaciona sexualmente com o noivo. Até o sobrinho, em visita por uma só noite, aproveita a oportunidade para trazer a filha da vizinha, que acabara de conhecer, para uma relação sexual na casa do titio Lou Epstein.
Patrimony
Patrimony, que alguns escritores consideram a obra máxima de Philip Roth, foi publicado em1991 e narra a sua história com o pai. O pai, dissolvido em lágrimas, pediu para ele não contar a sua cagada (I beshat myself, eu me caguei) para os netos, nem para a esposa do Philip, e ele prontamente aquiesceu, “não vou contar para ninguém”. Mas, depois que o pai se foi, Philip contou a cagada dele para deus e para o diabo, a cagada que era a herança que seu pai lhe deixou e deu título a Patrimony, a true story.
“A merda estava por todos os lados, espalhada no tapete do banheiro, escorrendo pela borda do vaso sanitário e, ao pé do vaso, em uma pilha no chão. Estava borrifada pelo vidro do box do chuveiro de onde ele tinha acabado de sair; e as roupas descartadas no corredor estavam coaguladas com merda. Estava no canto da toalha com a qual ele tinha começado a se secar… ele tinha conseguido espalhar merda sobre todas as coisas. Eu vi que estava até nas pontas das cerdas da minha escova de dentes pendurada no suporte sobre a pia”.
“So that was the patrimony… There was my patrimony… the shit.”
E Philip Roth teve ainda que viver com o peso de seu vaidoso pai, em sonhos, reclamar de ter sido enterrado nu, envolto em seu sagrado manto judeu, ele que queria partir para a eternidade vestido em um garboso terno.
Operation Shylock
Algumas pessoas valorizam histórias reais e romances históricos, principalmente se estiverem disponíveis em forma de filmes. Há pessoas que não se interessam minimamente por história, mas que se gabam quando assistem um romance histórico “real”, achando que estão adentrando a alta cultura.
Antes de partir para Israel em abril de 2023, para me acompanhar na viagem, uma amiga me presenteou com o Operation Shylock, que tem como foco a relação do irreverente Philip Roth com o sionismo e o Estado de Israel. Comecei a ler o livro ainda em São Paulo e achei instigante. Quando cheguei na altura da metade do livro, eu já estava completamente paranoico, pensando em desistir dessa minha viagem a Israel. Empreendi a viagem, mas sem a companhia do Philip, que deixei para terminar de ler na minha volta a São Paulo, quando redigi Jaffa.
Philip Roth era acusado de ser antissemita, de odiar a si mesmo. Por outro lado, era enaltecido pelos judeus por ser um dos escritores norte-americanos mais premiados de sua geração. Em Operation Shylock, publicado em 1993, em um jogo de espelhos, há três Philip Roth – o autor, o protagonista (que acumula a função de narrador) e o duplo do protagonista (e o protagonista, no meio da obra, também assume o papel do duplo, que então poderia até ser considerado um quarto Philip).
No romance, o protagonista, embora íntegro, depois de ser sequestrado pelo Mossad, decide colaborar com o serviço secreto, para poder, como queria acreditar, denunciar as formas de atuação do Estado de Israel. O cínico agente sênior, que convence Philip Roth a colaborar com o Mossad, afirma que “O que nós fizemos com os palestinos é perverso. Nós os tiramos de suas casas e os oprimimos. Nós os expulsamos, espancamos, torturamos e assassinamos. O Estado Judeu, desde que nasceu, se dedicou a eliminar a presença palestina na Palestina histórica e a desapropriar a terra de um povo nativo. Os palestinos foram expulsos, dispersos e dominados pelos judeus. Para criar um Estado Judeu, nós traímos nossa história – fizemos com os palestinos o que os cristãos fizeram conosco: nós os transformamos sistematicamente no desprezado e subjugado Outro, privando-os, desta forma, de sua condição humana. Independentemente do terrorismo ou dos terroristas, ou da estupidez política de Yasser Arafat, a verdade é esta: como povo, os palestinos são totalmente inocentes, e como povo os judeus são totalmente culpados”.
A estrutura da obra é perfeita, o autor suprime o último capítulo do romance porque foi rejeitado pelo Mossad, o capítulo que denunciava as formas de atuação do Estado de Israel, que havia sido a razão que tinha levado o protagonista e narrador a colaborar com o serviço secreto israelense, em uma ação que expôs e provocou a morte de seu amigo palestino de infância. O Mossad ameaçou arruinar a reputação de Philip Roth enquanto escritor e fazê-lo em pedaços, em uma operação de inteligência sem limites, acionada por uma coordenada, mas dissipada campanha articulando boatos, piadinhas infames, insultos, calúnias, denúncias de deficiências morais, superficialidade, vulgaridade, covardia, avareza, indecência, falsidade, traição, difamação…
Intimidado, Philip, o protagonista, suprime o último capítulo, mas, em nota ao leitor, o autor afirma que “Qualquer semelhança com fatos, locais e pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência. Esta confissão é falsa”.
*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Jaffa amz.run/7C8V.
in blogue A Viagem Dos Argonautas
CARLOS PATRÃO – o filme “AINDA ESTOU AQUI”, de WALTER SALLES
Fui ontem ao Cinema para ver o aclamado e premiado Ainda Estou Aqui, do laureado Walter Salles, que já nos tinha brindado com Central do Brasil e Diários de Motocicleta. Grande filme, com uma pungente actuação de Fernanda Torres, no papel de uma viúva que procura saber do paradeiro e da verdade do que sucedeu ao marido (um antigo deputado do Partido Trabalhista Brasileiro) raptado nas suas barbas, em casa, em 1971, por um comando militar. Uma vida de luta que só alcança alguma justiça em 1996, já depois da Ditadura militar, quando finalmente o Estado brasileiro emite a certidão de óbito.
Para além da teia dramática e das brilhantes actuações o filme prima por uma fotografia com efeito retro que nos transporta magicamente para os anos 70 do século XX, uma época mítica, de grande esperança, esmagada por ditaduras e/ou pelo neo-liberalismo, ainda hoje vigente, em alguns casos como no Chile, por ambos.
A ditadura brasileira, uma das mais longas e repressivas da América do Sul, durou mais de 20 anos (64-85), em Portugal é secundarizada, talvez pelos laços que nos ligam ao Brasil, talvez porque tinha uma junta militar em que os ditadores se revezavam e é mais difícil personificar, ao contrário do Paraguai, Chile e Argentina, em que as associamos os caudilhos, Stroessner, Pinochet e Videla. Mas matou e torturou tanto ou mais que as outras, tendo funcionado como uma referência em toda a América latina, aluna aplicada da sinistra Escola das Américas, que os EUA mantiveram em funcionamento entre 46-84 no Panamá (sempre o Panamá) para exportarem a contra revolução.
O filme retrata bem os chamados anos de chumbo no Brasil, com os seus raptos, tortura, assassinatos e desaparecimentos, que vão de 1969 a 1974 e coincidem com a presidência do general Emílio Médici.
Carlos Patrão
PS:
Apesar da tentativa de boicote ao
filme pela extrema direita Bolsonarista no Brasil, o mesmo está a ter um
enorme sucesso, quer no Brasil, quer na Europa, e em Portugal. Ontem
para o ver fiz uma primeira tentativa no Nimas, cuja sessão estava
esgotada, e tive que me dirigir ao City Alvalade a onde lá consegui
arranjar dois bilhetes no canto da sala.
domingo, 19 de janeiro de 2025
Borges e a ditadura
Os intelectuais e as ditaduras

O historiador belga Henry Pirene, preso durante dois anos pelos alemães durante a primeira guerra mundial, escreveu de memória uma História Social e Econômica da Europa Medieval.
Nas condições miseráveis da prisão, aproveitava os intervalos da escritura do livro para ministrar aulas de história aos seus companheiros de desgraça, muitos deles operários e camponeses analfabetos. Ele e o holandês Johan Huizingha, com seu livro “O Outono da Idade Média”, foram os melhores e mais fidedignos historiadores daquele período obscuro de nossa história.
Certamente, ao dedicar tantos esforços e sacrifícios para nos contar os fatos corretos e verdadeiros da chamada Idade das Trevas, pensavam como o filósofo George Santayana, citado na epígrafe deste texto.
O papel importante da intelectualidade sempre foi, em todo o mundo, o de alertar as diversas classes sociais, escassamente informadas ou deformadas pelos historiadores oficiais e pelos meios de comunicação, dos perigos dos regimes não democráticos e de denunciá-los quando estes assaltam o poder.
Relembrando o que aconteceu em nossa vizinha Argentina durante a ditadura militar, entre os anos de 1973 a 1983, assinalamos os trágicos fatos que lá sucederam porque nunca é demais descrevê-los. O General Jorge Rafael Videla, falecido na prisão em 2013, instaurou, por um golpe de estado, uma das ditaduras mais atrozes da história argentina e das Américas. Em seu governo, foram desaparecidas cerca de 30.000 pessoas entre as quais se encontravam operários, estudantes, jornalistas e intelectuais opositores do governo. E muitas crianças arrancadas dos ventres de suas mães e entregues a famílias de militares e policiais. Foram cometidas, em nome do Estado, diabólicas atrocidades como os voos da morte, os assassinatos seletivos, os sequestros, torturas e assassinatos de intelectuais, jornalistas, operários e estudantes pelas forças de segurança.
De uma dessas atrocidades, por exemplo, poucos se lembram.
No dia 4 de maio de 1976, o jornalista portenho Haroldo Conti sua esposa e filhos foram sequestrados, agredidos em frente a sua casa por um esquadrão do serviço secreto do exército, e Conti, empurrado para dentro de um camburão, nunca mais foi visto.
Duas semanas depois deste sequestro, o então presidente Videla organizou um almoço na Casa Rosada para o qual foram convidadas várias personalidades de destaque na cultura argentina: Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato, o famoso cardiologista René Favaloro, Horacio Ratti, presidente de la Sociedade Argentina de Escritores, Bioy Casares e o padre Leonardo Castellani que conhecia Conti de sua época no seminário e que intercedeu por ele. Por sua vez, Ratti entregou ao ditador uma lista de onze escritores desaparecidos, inclusive o jornalista Rodolfo Walsh que nesta altura já tinha sido assassinado a tiros em plena rua por um comando da polícia. Finalmente, em 1980, Videla confirmou para jornalistas espanhóis que Conti e Walsh estavam mortos, sem informar os locais e as circunstâncias. Como os restos mortais nunca foram encontrados, seus nomes continuam integrando a longa lista dos desaparecidos pela ditadura.
Videla, homem alheio à Cultura, achou politicamente conveniente se aliar com alguns representantes de prestígio das artes, das ciências e das letras. Ernesto Sabato que havia feito declarações depreciativas à democracia na ocasião do golpe do General Ongania, não deixou de elogiar Videla na revista alemã GEO (1977). Foi um entusiástico propagandista da preparação política do mundial de futebol de 1978, da guerra das Malvinas e aconselhava aos exilados políticos a não colaborar com as campanhas anti-argentinas, que depreciavam o governo do momento.
A enorme predisposição ao esquecimento da sociedade civil e a hipocrisia da maioria dos dirigentes políticos possibilitaram que, em 1984, Sabato se apresentasse como um herói cívico e fosse nomeado pele Presidente Alfonsin para a presidência da CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas).
Tanto Borges quanto Sabato, ícones da literatura argentina, foram acusados de ser complacentes com os crimes da ditadura. Videla, em sua aposentadoria, publicou o livro Disposición Final, no qual revela que no almoço já citado Borges o saudou dizendo “Ave, Cesar , vencedor dos peronistas”.
Mais grave foram as declarações que os dois grandes escritores fizeram aos jornalistas depois do almoço que durou duas horas. Sabato disse que “O general me causou uma excelente impressão. Trata-se de um homem culto, modesto e inteligente. Impressionou-me a amplitude de critérios e a cultura do presidente”. E Borges, tão breve quanto incisivo, não deixou por menos: “Ele é um perfeito cavalheiro “.
O encontro de Videla com Borges e Sabato está documentado com fotos numa edição do suplemento Ñ do jornal Clarín. De qualquer forma, vários fatos posteriores demonstraram a proximidade amistosa que ambos escritores mantiveram com a ditadura militar. Nunca foram perseguidos, e até pelo contrário, foram mostrados como exemplo da cultura argentina. Sabato, em 1978, até justificou o regime ao dizer: “A imensa maioria dos argentinos rogava intensamente que as Forças Armadas tomassem o poder”. E inclusive afirmou que a situação do país estava melhorando.
Quanto a Borges, além de nunca ter denunciado as torturas e desaparecimentos, em 1976 foi ao Chile, onde recebeu o diploma de Doutor Honoris Causa da Universidade e depois foi recepcionado por Pinochet. Segundo o filósofo Juan Pablo Feinmann, o encontro de ambos não se limitou a um simples ato protocolar. Na ocasião, Borges discursou e disse “Agradeço ao Chile haver mostrado à Argentina como se luta contra o comunismo, porque elegeu a branca espada antes do que a furtiva dinamite”.( In Filosofia política del poder mediático – Ed. Planeta 2013)
Com o passar dos anos, Borges e Sabato foram se afastando e até começaram a criticar a ditadura. Borges apoiou o movimento das Mães da Praça de Maio e em 1980 publicou no Clarín uma “ Solicitação pelos desaparecidos” e se manifestou contra a aventura das Malvinas. Sabato, convidado pelo presidente Alfonsin, foi nomeado para a já referida “Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) e no ano seguinte entregou à imprensa documentos que provaram ter o regime militar praticado 8.960 desaparições e criado 340 centros de detenção e tortura.
Alguns admiradores de Borges e Sabato ( entre eles o autor deste texto), não gostam que se lembre desses desagradáveis acontecimentos ocorridos durante a ditadura genocida na Argentina. Mesmo assim, devemos lembra-los para mostrar as vicissitudes que passam os escritores quando se intrometem em política apenas informados pela mídia mercenária e pelos preconceitos e desinformações da classe média da qual fazem parte.
O capítulo sobre o apoio, participação e a colaboração de intelectuais brasileiros na ditadura nos imposta em 1964, merece a pena de um competente e lúcido historiador que os temos a basto.
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Franklin Cunha é médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
O historiador belga Henry Pirene, preso durante dois anos pelos alemães durante a primeira guerra mundial, escreveu de memória uma História Social e Econômica da Europa Medieval.
Nas condições miseráveis da prisão, aproveitava os intervalos da escritura do livro para ministrar aulas de história aos seus companheiros de desgraça, muitos deles operários e camponeses analfabetos. Ele e o holandês Johan Huizingha, com seu livro “O Outono da Idade Média”, foram os melhores e mais fidedignos historiadores daquele período obscuro de nossa história.
Certamente, ao dedicar tantos esforços e sacrifícios para nos contar os fatos corretos e verdadeiros da chamada Idade das Trevas, pensavam como o filósofo George Santayana, citado na epígrafe deste texto.
O papel importante da intelectualidade sempre foi, em todo o mundo, o de alertar as diversas classes sociais, escassamente informadas ou deformadas pelos historiadores oficiais e pelos meios de comunicação, dos perigos dos regimes não democráticos e de denunciá-los quando estes assaltam o poder.
Relembrando o que aconteceu em nossa vizinha Argentina durante a ditadura militar, entre os anos de 1973 a 1983, assinalamos os trágicos fatos que lá sucederam porque nunca é demais descrevê-los. O General Jorge Rafael Videla, falecido na prisão em 2013, instaurou, por um golpe de estado, uma das ditaduras mais atrozes da história argentina e das Américas. Em seu governo, foram desaparecidas cerca de 30.000 pessoas entre as quais se encontravam operários, estudantes, jornalistas e intelectuais opositores do governo. E muitas crianças arrancadas dos ventres de suas mães e entregues a famílias de militares e policiais. Foram cometidas, em nome do Estado, diabólicas atrocidades como os voos da morte, os assassinatos seletivos, os sequestros, torturas e assassinatos de intelectuais, jornalistas, operários e estudantes pelas forças de segurança.
De uma dessas atrocidades, por exemplo, poucos se lembram.
No dia 4 de maio de 1976, o jornalista portenho Haroldo Conti sua esposa e filhos foram sequestrados, agredidos em frente a sua casa por um esquadrão do serviço secreto do exército, e Conti, empurrado para dentro de um camburão, nunca mais foi visto.
Duas semanas depois deste sequestro, o então presidente Videla organizou um almoço na Casa Rosada para o qual foram convidadas várias personalidades de destaque na cultura argentina: Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato, o famoso cardiologista René Favaloro, Horacio Ratti, presidente de la Sociedade Argentina de Escritores, Bioy Casares e o padre Leonardo Castellani que conhecia Conti de sua época no seminário e que intercedeu por ele. Por sua vez, Ratti entregou ao ditador uma lista de onze escritores desaparecidos, inclusive o jornalista Rodolfo Walsh que nesta altura já tinha sido assassinado a tiros em plena rua por um comando da polícia. Finalmente, em 1980, Videla confirmou para jornalistas espanhóis que Conti e Walsh estavam mortos, sem informar os locais e as circunstâncias. Como os restos mortais nunca foram encontrados, seus nomes continuam integrando a longa lista dos desaparecidos pela ditadura.
Videla, homem alheio à Cultura, achou politicamente conveniente se aliar com alguns representantes de prestígio das artes, das ciências e das letras. Ernesto Sabato que havia feito declarações depreciativas à democracia na ocasião do golpe do General Ongania, não deixou de elogiar Videla na revista alemã GEO (1977). Foi um entusiástico propagandista da preparação política do mundial de futebol de 1978, da guerra das Malvinas e aconselhava aos exilados políticos a não colaborar com as campanhas anti-argentinas, que depreciavam o governo do momento.
A enorme predisposição ao esquecimento da sociedade civil e a hipocrisia da maioria dos dirigentes políticos possibilitaram que, em 1984, Sabato se apresentasse como um herói cívico e fosse nomeado pele Presidente Alfonsin para a presidência da CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas).
Tanto Borges quanto Sabato, ícones da literatura argentina, foram acusados de ser complacentes com os crimes da ditadura. Videla, em sua aposentadoria, publicou o livro Disposición Final, no qual revela que no almoço já citado Borges o saudou dizendo “Ave, Cesar , vencedor dos peronistas”.
Mais grave foram as declarações que os dois grandes escritores fizeram aos jornalistas depois do almoço que durou duas horas. Sabato disse que “O general me causou uma excelente impressão. Trata-se de um homem culto, modesto e inteligente. Impressionou-me a amplitude de critérios e a cultura do presidente”. E Borges, tão breve quanto incisivo, não deixou por menos: “Ele é um perfeito cavalheiro “.
O encontro de Videla com Borges e Sabato está documentado com fotos numa edição do suplemento Ñ do jornal Clarín. De qualquer forma, vários fatos posteriores demonstraram a proximidade amistosa que ambos escritores mantiveram com a ditadura militar. Nunca foram perseguidos, e até pelo contrário, foram mostrados como exemplo da cultura argentina. Sabato, em 1978, até justificou o regime ao dizer: “A imensa maioria dos argentinos rogava intensamente que as Forças Armadas tomassem o poder”. E inclusive afirmou que a situação do país estava melhorando.
Quanto a Borges, além de nunca ter denunciado as torturas e desaparecimentos, em 1976 foi ao Chile, onde recebeu o diploma de Doutor Honoris Causa da Universidade e depois foi recepcionado por Pinochet. Segundo o filósofo Juan Pablo Feinmann, o encontro de ambos não se limitou a um simples ato protocolar. Na ocasião, Borges discursou e disse “Agradeço ao Chile haver mostrado à Argentina como se luta contra o comunismo, porque elegeu a branca espada antes do que a furtiva dinamite”.( In Filosofia política del poder mediático – Ed. Planeta 2013)
Com o passar dos anos, Borges e Sabato foram se afastando e até começaram a criticar a ditadura. Borges apoiou o movimento das Mães da Praça de Maio e em 1980 publicou no Clarín uma “ Solicitação pelos desaparecidos” e se manifestou contra a aventura das Malvinas. Sabato, convidado pelo presidente Alfonsin, foi nomeado para a já referida “Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) e no ano seguinte entregou à imprensa documentos que provaram ter o regime militar praticado 8.960 desaparições e criado 340 centros de detenção e tortura.
Alguns admiradores de Borges e Sabato ( entre eles o autor deste texto), não gostam que se lembre desses desagradáveis acontecimentos ocorridos durante a ditadura genocida na Argentina. Mesmo assim, devemos lembra-los para mostrar as vicissitudes que passam os escritores quando se intrometem em política apenas informados pela mídia mercenária e pelos preconceitos e desinformações da classe média da qual fazem parte.
O capítulo sobre o apoio, participação e a colaboração de intelectuais brasileiros na ditadura nos imposta em 1964, merece a pena de um competente e lúcido historiador que os temos a basto.
.oOo.
Franklin Cunha é médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras.