II. LITERATURA E PARTIDO
Em 1905, Lênin, através do artigo “A orga
nização do partido e a literatura do partido”, já
se colocava no centro de uma polêmica ideoló
gica e estética, a um só tempo. Ao comentar o
trabalho literário, Lênin diz: “Estamos longe de
pregar um sistema uniforme ou uma solução do
problema mediante qualquer deliberação. Não,
nesse campo não há lugar para o esquematismo
[...]. Acalmem-se senhores! Antes de mais nada
trata-se da literatura de partido [incluindo o
jornalismo] e da sua submissão ao controle do
Partido. Cada um é livre para escrever e dizer o
que bem lhe agrade, sem a menor limitação. Mas
toda associação livre [incluído o Partido] é livre
também para afastar os seus membros que se
servem da bandeira do Partido para pregar idéias
contrárias a ele. A liberdade de palavra e de
imprensa deve ser total. Mas a liberdade das
associações também deve ser total” (LÊNIN
apud HOBSBAWM, 1987: 115-116).
Briusov, poeta simbolista simpatizante da
Revolução, reagiu: “Não se pode negar a cora
gem de Lênin: ele leva sua idéia às extremas
conseqüências. Mas, em suas palavras, está de
todo ausente o verdadeiro amor pela liberdade.
A literatura livre [‘extra-classista’] é para ele
um longínquo ideal que só será realizado na
sociedade socialista do futuro. Enquanto isso, à
‘literatura hipocritamente livre, mas na realidade
ligada à burguesia’, Lênin contrapõe ‘uma
literatura abertamente ligada ao proletariado’.
Ela chama essa última de ‘efetivamente livre’,
mas de um modo extremamente arbitrário. De
acordo com o sentido exato de suas definições,
nenhuma das duas literaturas é livre. A primeira
é secretamente ligada à burguesia, a segunda é
abertamente ligada ao proletariado. A prerroga
tiva da segunda pode ser vista apenas num mais
aberto reconhecimento da própria escravidão,
não numa maior liberdade. A literatura con
temporânea, segundo Lênin, está a serviço do
‘saco de dinheiro’; a literatura de partido será
uma ‘porca e um parafuso’ da causa proletária.
Mas se reconhecermos que a causa proletária é
uma causa justa e o saco de dinheiro é algo ver
gonhoso, isso por acaso mudará o grau de depen
dência? O escravo do sábio Platão continuava
sempre a ser um escravo [...]” (BRIUSOV apud
HOBSBAWM, 1987: 116).
Se as idéias de Lênin desagradavam os
artistas comprometidos com a idéia de uma
“liberdade de criação” que não deveria se con
trapor aos ideais revolucionários, o líder dos bol
cheviques também entrava em choque com
Bogdanov, criador do Proletkult {Cultura Prole
tária), alvo de suas críticas no livro Materialis
mo e Empiriocriticismo. O ponto central da dis
córdia era a tese de que a revolução cultural só
poderia ocorrer a reboque da revolução política,
conduzida pelo Partido. Para Lênin, o campo
cultural não teria autonomia para a criação de
uma consciência proletária global, sobretudo
dentro das contradições enfrentadas pela
sociedade russa. Bogdanov resumiu mais tarde
seus princípios, que o conduziram ao rompi
mento político com Lênin em 1909: “A or
ganização conscientemente camaradística da
classe operária no presente, e a organização
socialista de toda a sociedade no futuro são mo
mentos de um mesmo processo, graus diversos
de um mesmo fenômeno. Se é assim, então a
luta pelo socialismo não se reduz somente à
guerra contra o capitalismo, à simples acumula
ção das forças necessárias. Trata-se de uma luta
que é, ao mesmo tempo, um trabalho positivo e
criador: a invenção de elementos sempre novos
de socialismo no próprio proletariado, em suas
relações internas, em suas condições de vida
cotidiana: eis a elaboração da cultura proletária
socialista” (BOGDANOV apud HOBSBAWM,
1987: 120). Lênin insistia no caráter “esquer
dista” desta posição, ligada ao radicalismo “pe-
queno-burguês”, e que não ajudava em nada o
processo organizativo e político da classe ope
rária. O documento de Lênin, acima citado, será
usado mais tarde, para fundamentar a política
partidária de controle da criação a partir de 1925.
IV. REVOLUÇÃO, ESTÉTICA E CONS
CIÊNCIA DE CLASSE
Com a Revolução de 1917, a Rússia se toma
o centro das expectativas não só políticas como
também estéticas das vanguardas européias. As
chamadas “vanguardas históricas”1 entravam
numa outra fase, iniciada com o Dadaísmo a
partir de 1916. Sofrendo o impacto da Guerra
Mundial, alguns artistas desconfiavam das
possibilidades efetivas da arte na formação das
consciências: “Embora os fatores culturais, por
si só, pudessem vir a gerar um movimento de
dúvida tão radical, foi o impacto da Primeira
Guerra Mundial que convenceu os poetas da
geração mais nova de que a cultura ocidental
era mortal e fora atingida em seus alicerces [...].
A guerra confirmou a convicção cada vez maior
— que mal apontava entre os cubistas e futuris
tas do pré-guerra — de que a obsessão do Oci
dente com o avanço tecnológico e a super-valo-
rização da razão, em detrimento da sensibi
lidade, conduzia diretamente a uma megaloma
nia destrutiva” (SHORT, 1989: 238).
Se esta explicação vale para a gênese do Da
daísmo, no centro da Europa germânica, a Rús
sia revolucionária caminhava para uma outra
direção. A Revolução havia colocado de forma
dramática mais do que novas possibilidades, no
vas necessidades culturais e artísticas. Por outro
lado, a Revolução fazia extrapolar os limites
territoriais do debate cultural russo, atraindo o
interesse de todos os intelectuais e artistas que
estavam dispostos a pensar a relação entre cultu
ra e revolução. Reafirmava-se uma nova pers
pectiva sobre a visão formativa da arte e da cul
tura (WILLET, 1987), ainda que as diversas
correntes divergissem sobre o método mais
apropriado para tal fim: “Entre 1917 e 1932, o
problema da arte revolucionária está ainda em
aberto, e diferentes propostas disputam sua
hegemonia diretora — apesar da insistência de
Lênin em subsidiar o conjunto de atividades
culturais à diretrizes e necessidades partidárias,
mas respeitando ainda a sua pluralidade”
(ZERON, 1991: 281).
O período entre 1917 e 1932, não só no âm
bito da União Soviética, representou um dos mo
mentos mais fecundos em relação à discussão
1 Conjunto de movimentos artísticos que vai do
período de 1909 até meados dos anos vinte, incluindo
(por ordem cronológica): Cubismo, Futurismo
italiano, Expressionismo, Futurismo russo, Dadaísmo
e Surrealismo, para citarmos os mais notórios.
sobre o papel social da arte e do artista. Nas
Américas, na Alemanha de Weimar (onde, além
do Expressionismo, floresceu o teatro de Bertold
Brecht), na França (onde o Dadaísmo e o Surrea
lismo impunham os termos do debate), as ca
tegorias básicas pelas quais a intelectualidade
pensava o mundo eram revistas e questionadas.
Palavras como “nação”, “povo”, “classe”, “revo
lução” eram pensadas não só conceitualmente
como também esteticamente.
No contexto russo o debate ganhava ares
mais dramáticos à medida em que o país discutia
as próprias bases da fundação de uma nova so
ciedade, numa experiência radicalmente inédita.
Se as expectativas e o otimismo de produtores
culturais, russos ou não, cresciam com as possi
bilidades revolucionárias, as tensões com as
diretrizes partidárias tendiam a aumentar.
Em setembro de 1918, ocorreu a I Confe
rência Pan-Russa de Organizações Culturais
Proletárias, onde Lebedev e Polianski, identi
ficados com o Proletkult, defendiam que o tra
balho cultural tem dois “momentos”: “didático”
(a cargo do comissariado da instrução) e “cria
dor” (que recebia a ênfase do Proletkult). Plet-
nev concluía, apontando para um imbricamento
das duas instâncias: “A história do movimento
operário deve ser o material para a criação artís
tica” (ZERON, 1991: 281).
As máximas dos “proletkultistas” e a sua de
dicação revolucionária não abrandavam as des
confianças do Partido Comunista em relação aos
artistas que buscavam ou uma organização
paralela ou a “liberdade de criação”. Em 1921,
Lunatcharski (comissário de instrução e
identificado com o grupo), no texto “A liberdade
do livro e a revolução”, chegou a defender a
censura “revolucionária”: “Sim, nós absoluta
mente não nos deixamos espantar diante da ne
cessidade de censurar até mesmo a beletrística,
porque sob sua bandeira, sob seu belo semblante,
pode ser inoculado o veneno na alma ainda in
gênua e ignorante de uma enorme massa, sempre
pronta a vacilar e recusar a mão que a conduz,
através do deserto para a terra prometida” (apud
HOBSBAWM, 1987: 147). (...) "
ARTE E REVOLUÇÃO:
ENTRE O ARTESANATO DOS SONHOS
E A ENGENHARIA DAS ALMAS (1917-1968)
Marcos Napolitano
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
Este artigo traça um panorama das discussões em torno do binômio “arte "e “revolução ”, partindo do
contexto histórico da Revolução Russa, examinando o engajamento das vanguardas européias na busca de
novas matrizes estéticas e ideológicas para reconstruir a consciência social. Procuramos confrontar as
diversas visões sobre esta questão, explicitadas através de programas, artigos e manifestos de época,
demonstrando a luta política e ideológica por trás dasformulações de ordem estética.
PALAVRAS-CHAVE: Revolução Russa; arte epolítica; vanguardas; história da arte.
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