EXPERIMENTALIDADES
quarta-feira, 4 de junho de 2025
A música folk e os progressistas norte-americanos
Os cantores comunistas que formaram Bob Dylan
Pedro Silva
Antes de Bob Dylan ser Bob Dylan, ele foi discípulo de Woody Guthrie. Mas Guthrie e seus contemporâneos eram mais do que cantores folk — eram radicais perseguidos, moldando a música estadunidense enquanto enfrentavam o "pânico vermelho".
Em 1960, o jovem Robert Zimmerman — que começara a se chamar “Bob Dylan” — viajou das planícies geladas de Minnesota para Nova Jersey em peregrinação. Seu destino: a cabeceira de seu ídolo doente, o lendário herói folk, Woody Guthrie. Ele era obcecado por Woody, ou melhor, pela figura mítica que Guthrie criou em suas memórias, Bound for Glory [Rumo à Glória]. O livro retratava Guthrie como um trovador folk que viajava de trem e cantava para acampamentos de mendigos, sindicatos e bares, munido apenas de um violão e uma gaita. O biógrafo Clinton Heylin descreveu Dylan nessa época como estando totalmente imerso em sua “fase Guthrie”.
Um Completo Desconhecido, inspirado em Dylan Goes Electric! [Dylan Fica Elétrico!], de Elijah Wald, trouxe Dylan de volta aos holofotes. No entanto, a representação de sua história encobre um fato histórico fundamental: tanto Pete Seeger quanto Woody Guthrie — figuras centrais na carreira de Dylan e na narrativa do filme — eram comunistas. Considerando os limites do que um filme pode retratar, vale a pena revisitar o período anterior a Um Completo Desconhecido para ver o que moldou as primeiras influências de Dylan.
Quando Seeger e Guthrie cantaram por suas vidas
“Não tenho certeza se esses caras vão tentar interromper esta reunião ou não”, confessou Robert Wood a Pete Seeger e Woody Guthrie, com os olhos fixos na fileira de homens enfileirados no fundo do salão do sindicato. Era 1940, e a greve da Refinaria Mid-Continent se arrastava há mais de um ano, com sua violência se manifestando em atentados a bomba, tiroteios e até ataques com ácido. Naquele dia, o salão continha sessenta trabalhadores exaustos e suas famílias, amontoados sob o olhar severo dos homens no fundo — cuja lealdade, fosse à polícia, à Guarda Nacional ou à companhia petrolífera, permanecia uma incógnita.
Seeger e Guthrie haviam se conhecido recentemente, mas quando Guthrie convidou o jovem músico para uma viagem de carro ao Texas, Seeger aproveitou a oportunidade. Ambos compartilhavam a crença de que o socialismo e a música folk estavam interligados, que seus objetivos revolucionários eram melhor expressos por meio da autenticidade da música folk. Seeger afirmou mais tarde, em uma carta selada de 1956 para seus netos, que “ser comunista me ajudou, acredito, a ser um cantor e folclorista melhor, e um cidadão mais altruísta”.
O que aconteceu naquela viagem é lendário. Eles tocaram música em bares para arrecadar dinheiro para a gasolina, deram carona a curiosos (incluindo um homem sem pernas chamado Brooklyn Speedy) e, em mais de uma ocasião, escaparam por pouco da prisão.
Ao chegarem a Oklahoma, Woody contatou o Partido Comunista local, que enviou militantes, Robert e Ina Wood, para escoltá-los. Os Woods organizaram uma espécie de mini-turnê, levando-os a cantar para os moradores pobres de Hooverville, para a Aliança dos Trabalhadores Desempregados e para os petroleiros em greve. Foi o início de uma amizade e colaboração para toda a vida — mas, na época, não estava claro se essa parada terminaria na prisão deles ou em algo muito pior.
Naquela noite, no salão do sindicato, enquanto a tensão ameaçava explodir, Robert Wood teve uma ideia original para acalmar a situação. “Vejam se conseguem fazer a galera toda cantar”, instruiu Guthrie e Seeger.
“Como artistas, eles buscavam incorporar a visão do escritor comunista Mike Gold de um ‘Shakespeare de macacão’ — uma voz cultural para as lutas sociais da época.”
Nenhum dos dois estava totalmente confiante de que poderiam desempenhar o papel de pacificadores. Seeger, com apenas 22 anos, ainda era mais um fã do que um colaborador do então pouco conhecido, mas amplamente respeitado, Woody Guthrie. Eles também eram, em muitos aspectos, opostos. Guthrie era baixo, direto, órfão e jovem, e passou seus primeiros anos pegando trens e cantando em bares. Seeger, por outro lado, era alto, de fala mansa, um desertor de Harvard que não fazia ideia de como embarcar clandestinamente em um trem. No entanto, apesar de suas diferenças, os dois compartilhavam um profundo compromisso com a música e a política, vendo a música folk como a voz das contradições dos Estados Unidos — sua beleza e tragédia, sua diversidade e lutas. Unidos em sua oposição às duras realidades do capitalismo, ambos viam no Partido Comunista a visão de uma sociedade mais justa e igualitária.
Seeger havia sido membro da Liga dos Jovens Comunistas em Harvard antes de, em suas palavras, “se formar no Partido Comunista”. Guthrie foi lançado em lutas relacionadas ao partido por meio de seu programa de rádio na Califórnia — o primeiro agente de reservas de Guthrie, Ed Robbin, foi tanto o apresentador do programa antes dele quanto editor do People’s World [Mundo Popular], o jornal do Partido Comunista na Costa Oeste. Guthrie viria a escrever uma coluna diária para o jornal, chamada “Woody Sez”. Como artistas, eles buscavam incorporar a visão do escritor comunista Mike Gold de um “Shakespeare de macacão” — uma voz cultural para as lutas sociais da época.
Naquela noite, no salão sindical, essas lutas estavam em plena exibição. Qualquer pessoa presente teria visto a mudança brusca na atmosfera quando Guthrie e Seeger sacaram seus instrumentos. Enquanto os convidados indesejados no fundo observavam a sala, todos os trabalhadores e suas famílias começaram a cantar. Mesmo que por apenas um instante, as tensões se dissiparam.
“Talvez tenha sido a presença de tantas mulheres e crianças que os desanimou”, refletiu Seeger mais tarde. “Ou talvez tenha sido a música.”
A Casa Almanac
Talvez tenha sido a música que levou, mais tarde naquele ano, Ina e Robert Wood a serem presos em sua loja, a Livraria Progressista. Eles foram condenados a dez anos de prisão por violar a Lei do Sindicalismo Criminal. Era ilegal, segundo a lei, vender livros que defendessem o sindicalismo criminoso ou a sabotagem. Entre os títulos supostamente subversivos em questão estavam obras como a Constituição dos EUA, a Bíblia e a biografia de Benjamin Franklin, escrita por Carl Van Doren.
O pânico vermelho de Oklahoma, em 1940, inaugurou uma lista estadual de suspeitos de serem comunistas, forçando outra musicista radical de Oklahoma, Agnes “Sis” Cunningham, a fugir para Nova York. Integrante do grupo teatral de esquerda Red Dust Players, Cunningham chamou a atenção do FBI, que a descreveu como “muito ativa com o elemento comunista”.
Pete Seeger estava ocupado com papeladas quando Sis Cunningham e seu marido, Gordon Friesen, chegaram à Casa Almanac — o apartamento em Greenwich Village onde o termo “hootenanny” foi usado pela primeira vez para descrever uma apresentação folk improvisada. (Os hootenannies de domingo à noite também ajudavam a pagar o aluguel.) Seeger se levantou para dar boas-vindas animadas e os apresentou a Lee Hays, que estava absorto em transformar um par de colheres em um instrumento musical, e a um violonista de Oklahoma, de cabelos desgrenhados: Woody Guthrie. Cunningham e Friesen logo se mudaram para lá e Sis, acordeonista, tornou-se uma membra central do grupo.
Pouco depois da fatídica turnê por Oklahoma, Guthrie e Seeger uniram forças na cidade de Nova York, onde a Casa Almanac se tornou parte de uma comunidade urbana de cantores folk de esquerda. Era uma mistura de músicos, radicais e andarilhos unidos por duas coisas: música e a concepção de um mundo melhor.
Aqui, a narrativa fragmentada de Guthrie encontrou a musicalidade refinada de Seeger. Eles escreveram e interpretaram canções que capturavam as lutas das pessoas comuns, de mineiros de carvão a meeiros, lançando álbuns impregnados da linguagem da luta de classes.
Os Almanac Singers eram assumidamente políticos. Suas canções frequentemente seguiam “a linha do Partido”, alternando entre hinos antifascistas e “canções de paz” isolacionistas durante o breve período do Pacto Molotov-Ribbentrop — e retornando à luta contra os fascistas após a invasão nazista da União Soviética. Críticos descreveram essa mudança política como ingênua ou oportunista, mas para Guthrie, Seeger e seus companheiros, essas mudanças refletiam a urgência de sua época.
Como Seeger explicou posteriormente em uma entrevista de 2006, o Reino Unido e os Estados Unidos toleraram Adolf Hitler, esperando que ele atacasse a União Soviética. Joseph Stalin interrompeu seus planos ao assinar um pacto de não agressão, temporariamente derrubando essa expectativa. Os comunistas lutavam contra o fascismo há muito tempo na Espanha, Alemanha e Itália, instando a Liga das Nações a agir, mas viam a guerra como imperialista até que os nazistas invadiram a URSS. Isso transformou completamente o conflito em um ataque ao socialismo, levando Woody a dizer a Pete: “Acho que não estamos mais cantando canções de paz”.
Os Almanac Singers eram famosos — pelo menos nas páginas do Daily Worker. O colunista Mike Gold, um dos primeiros apoiadores, viu neles algo mais inspirador do que o Composers’ Collective. “No Daily Worker, éramos famosos”, disse Seeger em uma entrevista, “mas seguíamos desconhecidos em outros lugares”. Mas eles lançaram as bases para o que estava por vir.
Os primeiros músicos a serem cancelados eram comunistas
Em 1950, a música “Goodnight, Irene”, dos Weavers, era a número um nas jukeboxes. Em 1951, seus sucessos — “Tzena”, “Kisses Sweeter Than Wine” e “So Long, It’s Been Good to Know Yuh” — tocavam em toda parte. Essas músicas, arranjadas com cordas suaves, flautas e andamentos lentos, ofereciam uma versão refinada e radiofônica do folk. Nenhum grupo folk na cena musical de Nova York havia alcançado tal nível.
Mas sua fama durou pouco. Um de seus membros, Pete Seeger, foi o único músico nomeado em Red Channels, o infame livreto de 1950 que denunciava supostos laços comunistas entre figuras do mundo da cultura. Com o FBI apoiando a lista, os Weavers se tornaram o primeiro grupo musical a ser verdadeiramente “cancelado” no sentido moderno. Seus comerciais de televisão foram descartados, seus shows — incluindo um na Feira Estadual de Ohio — cancelados. (O governador de Ohio, Frank Lausche, recebeu pessoalmente documentos confidenciais do FBI diretamente de J. Edgar Hoover antes de cancelar sua apresentação, embora a decisão tenha sido tão rápida que seus nomes ainda apareceram nos programas.) A Variety observou que eles foram “o primeiro grupo cancelado em um café de Nova York por causa de supostas afiliações de esquerda”.
“Quando testemunhou perante o Comitê de Atividades Antiestadunidenses da Câmara (HUAC) em 1955, Seeger se recusou a invocar a Quinta Emenda ou a citar nomes.”
A resistência de Seeger só agravou seus problemas. Quando testemunhou perante o Comitê de Atividades Antiestadunidenses da Câmara (HUAC) em 1955, Seeger recusou-se a invocar a Quinta Emenda ou a citar nomes. Em vez disso, contestou a própria autoridade do comitê para interrogar estadunidenses sobre suas crenças, citando implicitamente a Primeira Emenda. Como resultado, foi rotulado de “testemunha hostil”. Àquela altura, a inclusão na lista negra havia limitado as carreiras dos Almanac Singers, dos Weavers e do próprio Seeger. Em 1956, foi acusado de desacato ao Congresso, juntamente com Arthur Miller e o bom amigo de Albert Einstein, Dr. Otto Nathan.
Woody Guthrie nunca alcançou o nível de fama dos Weavers — e nunca foi citado em Red Channels. Enquanto o espírito da nação era sufocado por julgamentos anticomunistas, a saúde de Woody começou a se deteriorar. Ele seguiu os passos dos pais — desenvolvendo a doença de Huntington como sua mãe e, num eco trágico do pai, se queimando acidentalmente. As queimaduras em seu braço e mão direitos os deixaram inutilizáveis. Posteriormente, ele entrou e saiu de hospitais — até que um dia, não saiu mais.
Apesar da repressão, Seeger permaneceu desafiador e recordou essa época com carinho. “Isso me motivava”, refletiu mais tarde. Sua música era vista pelo governo mais poderoso do mundo como uma arma que valia a pena desarmar.
Uma luta e uma canção
Embora Seeger tenha encontrado público mais tarde na vida, ele nunca escapou completamente da mira do anticomunismo. Acabou na lista de banimento do programa de TV Hootenanny e vilipendiado por visitar o Vietnã do Norte durante a Guerra do Vietnã — embora figuras como Johnny Cash o tenham defendido, chamando-o de “um dos melhores estadunidenses e patriotas que já conheci”. Ele também se posicionou ao lado da onda mais jovem de cantores folk que se dirigiram ao Sul para apoiar as ações pelos direitos civis que ocorreram ao longo da década de 1960.
A história deles é mais do que uma nota de rodapé na vida de Bob Dylan. O autor de Dylan Goes Electric!, Elijah Wald, escreveu em uma publicação no Facebook já apagada que Um Completo Desconhecido “ignora tanto o humor quanto o compromisso político daquela época”. O legado de Dylan é complexo, e minimizar as maiores influências do início de sua carreira não o ajuda em nada.
A música folk, para Woody Guthrie e Pete Seeger, nunca foi apenas música — era memória, resistência e um lembrete de que, mesmo nos momentos mais difíceis, as canções mais simples ainda podem carregar o peso de um mundo melhor. Escrevendo sobre Guthrie, Mike Gold levantou uma questão: “Para onde estamos indo todos nós que apostamos nossas vidas em democracias? Quem pode dizer?” Ele encontrou a resposta nas canções “duras e dolorosas” de Guthrie — canções que “cheiravam a pobreza, sujeira genuína e sofrimento”. “A democracia é assim”, escreveu ele, “e é uma luta e uma canção”.
Talvez seja hora de uma nova “fase Guthrie” — pegar nossas máquinas contra o fascismo, como os cantores folk comunistas fizeram um dia, e ousar imaginar um novo mundo.
Sobre os autores
Taylor Dorrell
é um escritor e fotógrafo baseado em Columbus, Ohio. É escritor colaborador da Cleveland Review of Books, repórter da Columbus Free Press e fotógrafo freelancer.
terça-feira, 3 de junho de 2025
Dois passos atrás
Dizem-me : “Há tantos céus quantos quiseres!”.
Não sei, não sei, o céu é infinito?
Onde estava tudo no começo?
Eu chamava-te camarada, e vinham logo
mais cinco, trazendo o pão e abraços,
lembras-te? Escuta agora a cotovia
assustadiça, sobre árvores velhas derrubadas.
Aqueles que se levantaram do chão,
já a terra-mãe os consumiu.
Nas aldeias desertas os citadinos
almoçam aos domingos. Às vezes fogem
das matas de eucaliptos que ardem de repente.
Chamo-te e tu agora lentamente vens sozinho.
Os outros cinco perderam-se no caminho.
Já não nos sentaremos na mesa comum
da fraternidade universal.
O novo, afinal, não nasceu.
Escuta : a justiça para ser real
é dar a cada um o que é seu.
---------------N. P. --------Maio, 2025
Canto do amor e da luta
Alguns criticam o poeta:
“Deste em cantar amores camarada?”
Sim, camarada, eu canto a ternura :
que beleza!
nos olhos negros!
Eternos fossem os beijos!
Outros acusam severos:
“Camarada, nesta hora de perigos deixa os lirismos!
Menos importam agora
os teus amores!”
Como? Acaso não escutas
a doce música dos lábios
nas teclas dos pianos?
Acaso a liberdade não é amor,
viver livremente?
Logo, sossega, cantarei como souber o martírio dos nossos heróis.
Contra as seitas declamo a unidade agora de novo necessária,
“Fascismo, nunca mais!”,
E proclamo em versos as crianças mortas
em Gaza,
pelos que construíram museus turísticos
com as sandálias das crianças gazeadas por iguais nazis.
Confia, meu amigo, democrata e patriota :
não beberico o chá das cinco
com as damas da moda,
nem verto lágrimas com o canto dos rouxinóis
ao luar.
Luto com as armas dos meus pobres versos!
Enquanto lembro os meus amores.
------------N. P. --------Maio 2025
Vai
Caminhos
Solitários
por montes
e vales
da vida.
Água das fontes
A dor
A ferida.
O começo
é só música.
No fim
Um jardim
há de florir
se amares
as coisas pequenas.
Se escutares
o riso
das crianças
O grito
das andorinhas.
Eu digo
o que te espera
ainda ao longe
Muito longe
De novo
a música
e um rio
De estrelas
As vidas
que viveste.
Duvida sempre
e ousa negar.
Foi das fontes
onde bebeste
que se fez
o teu andar.
Não te guies
por utopias,
segue acompanhado
por terras
que primeiro
conheças.
As mãos nuas
Um olhar franco
São nossas
As praças
e as ruas.
Não te encerres
na tua Verdade
Maiúscula.
às vezes
para vencer
é preciso falar
noutras línguas.
E não esqueças
De regar
com as palavras
Perfeitas
Exatas
Os teus amores.
O resto?
São apenas rumores.
--------N. P. ----Junho 2025
domingo, 1 de junho de 2025
II. LITERATURA E PARTIDO
Em 1905, Lênin, através do artigo “A orga
nização do partido e a literatura do partido”, já
se colocava no centro de uma polêmica ideoló
gica e estética, a um só tempo. Ao comentar o
trabalho literário, Lênin diz: “Estamos longe de
pregar um sistema uniforme ou uma solução do
problema mediante qualquer deliberação. Não,
nesse campo não há lugar para o esquematismo
[...]. Acalmem-se senhores! Antes de mais nada
trata-se da literatura de partido [incluindo o
jornalismo] e da sua submissão ao controle do
Partido. Cada um é livre para escrever e dizer o
que bem lhe agrade, sem a menor limitação. Mas
toda associação livre [incluído o Partido] é livre
também para afastar os seus membros que se
servem da bandeira do Partido para pregar idéias
contrárias a ele. A liberdade de palavra e de
imprensa deve ser total. Mas a liberdade das
associações também deve ser total” (LÊNIN
apud HOBSBAWM, 1987: 115-116).
Briusov, poeta simbolista simpatizante da
Revolução, reagiu: “Não se pode negar a cora
gem de Lênin: ele leva sua idéia às extremas
conseqüências. Mas, em suas palavras, está de
todo ausente o verdadeiro amor pela liberdade.
A literatura livre [‘extra-classista’] é para ele
um longínquo ideal que só será realizado na
sociedade socialista do futuro. Enquanto isso, à
‘literatura hipocritamente livre, mas na realidade
ligada à burguesia’, Lênin contrapõe ‘uma
literatura abertamente ligada ao proletariado’.
Ela chama essa última de ‘efetivamente livre’,
mas de um modo extremamente arbitrário. De
acordo com o sentido exato de suas definições,
nenhuma das duas literaturas é livre. A primeira
é secretamente ligada à burguesia, a segunda é
abertamente ligada ao proletariado. A prerroga
tiva da segunda pode ser vista apenas num mais
aberto reconhecimento da própria escravidão,
não numa maior liberdade. A literatura con
temporânea, segundo Lênin, está a serviço do
‘saco de dinheiro’; a literatura de partido será
uma ‘porca e um parafuso’ da causa proletária.
Mas se reconhecermos que a causa proletária é
uma causa justa e o saco de dinheiro é algo ver
gonhoso, isso por acaso mudará o grau de depen
dência? O escravo do sábio Platão continuava
sempre a ser um escravo [...]” (BRIUSOV apud
HOBSBAWM, 1987: 116).
Se as idéias de Lênin desagradavam os
artistas comprometidos com a idéia de uma
“liberdade de criação” que não deveria se con
trapor aos ideais revolucionários, o líder dos bol
cheviques também entrava em choque com
Bogdanov, criador do Proletkult {Cultura Prole
tária), alvo de suas críticas no livro Materialis
mo e Empiriocriticismo. O ponto central da dis
córdia era a tese de que a revolução cultural só
poderia ocorrer a reboque da revolução política,
conduzida pelo Partido. Para Lênin, o campo
cultural não teria autonomia para a criação de
uma consciência proletária global, sobretudo
dentro das contradições enfrentadas pela
sociedade russa. Bogdanov resumiu mais tarde
seus princípios, que o conduziram ao rompi
mento político com Lênin em 1909: “A or
ganização conscientemente camaradística da
classe operária no presente, e a organização
socialista de toda a sociedade no futuro são mo
mentos de um mesmo processo, graus diversos
de um mesmo fenômeno. Se é assim, então a
luta pelo socialismo não se reduz somente à
guerra contra o capitalismo, à simples acumula
ção das forças necessárias. Trata-se de uma luta
que é, ao mesmo tempo, um trabalho positivo e
criador: a invenção de elementos sempre novos
de socialismo no próprio proletariado, em suas
relações internas, em suas condições de vida
cotidiana: eis a elaboração da cultura proletária
socialista” (BOGDANOV apud HOBSBAWM,
1987: 120). Lênin insistia no caráter “esquer
dista” desta posição, ligada ao radicalismo “pe-
queno-burguês”, e que não ajudava em nada o
processo organizativo e político da classe ope
rária. O documento de Lênin, acima citado, será
usado mais tarde, para fundamentar a política
partidária de controle da criação a partir de 1925.
IV. REVOLUÇÃO, ESTÉTICA E CONS
CIÊNCIA DE CLASSE
Com a Revolução de 1917, a Rússia se toma
o centro das expectativas não só políticas como
também estéticas das vanguardas européias. As
chamadas “vanguardas históricas”1 entravam
numa outra fase, iniciada com o Dadaísmo a
partir de 1916. Sofrendo o impacto da Guerra
Mundial, alguns artistas desconfiavam das
possibilidades efetivas da arte na formação das
consciências: “Embora os fatores culturais, por
si só, pudessem vir a gerar um movimento de
dúvida tão radical, foi o impacto da Primeira
Guerra Mundial que convenceu os poetas da
geração mais nova de que a cultura ocidental
era mortal e fora atingida em seus alicerces [...].
A guerra confirmou a convicção cada vez maior
— que mal apontava entre os cubistas e futuris
tas do pré-guerra — de que a obsessão do Oci
dente com o avanço tecnológico e a super-valo-
rização da razão, em detrimento da sensibi
lidade, conduzia diretamente a uma megaloma
nia destrutiva” (SHORT, 1989: 238).
Se esta explicação vale para a gênese do Da
daísmo, no centro da Europa germânica, a Rús
sia revolucionária caminhava para uma outra
direção. A Revolução havia colocado de forma
dramática mais do que novas possibilidades, no
vas necessidades culturais e artísticas. Por outro
lado, a Revolução fazia extrapolar os limites
territoriais do debate cultural russo, atraindo o
interesse de todos os intelectuais e artistas que
estavam dispostos a pensar a relação entre cultu
ra e revolução. Reafirmava-se uma nova pers
pectiva sobre a visão formativa da arte e da cul
tura (WILLET, 1987), ainda que as diversas
correntes divergissem sobre o método mais
apropriado para tal fim: “Entre 1917 e 1932, o
problema da arte revolucionária está ainda em
aberto, e diferentes propostas disputam sua
hegemonia diretora — apesar da insistência de
Lênin em subsidiar o conjunto de atividades
culturais à diretrizes e necessidades partidárias,
mas respeitando ainda a sua pluralidade”
(ZERON, 1991: 281).
O período entre 1917 e 1932, não só no âm
bito da União Soviética, representou um dos mo
mentos mais fecundos em relação à discussão
1 Conjunto de movimentos artísticos que vai do
período de 1909 até meados dos anos vinte, incluindo
(por ordem cronológica): Cubismo, Futurismo
italiano, Expressionismo, Futurismo russo, Dadaísmo
e Surrealismo, para citarmos os mais notórios.
sobre o papel social da arte e do artista. Nas
Américas, na Alemanha de Weimar (onde, além
do Expressionismo, floresceu o teatro de Bertold
Brecht), na França (onde o Dadaísmo e o Surrea
lismo impunham os termos do debate), as ca
tegorias básicas pelas quais a intelectualidade
pensava o mundo eram revistas e questionadas.
Palavras como “nação”, “povo”, “classe”, “revo
lução” eram pensadas não só conceitualmente
como também esteticamente.
No contexto russo o debate ganhava ares
mais dramáticos à medida em que o país discutia
as próprias bases da fundação de uma nova so
ciedade, numa experiência radicalmente inédita.
Se as expectativas e o otimismo de produtores
culturais, russos ou não, cresciam com as possi
bilidades revolucionárias, as tensões com as
diretrizes partidárias tendiam a aumentar.
Em setembro de 1918, ocorreu a I Confe
rência Pan-Russa de Organizações Culturais
Proletárias, onde Lebedev e Polianski, identi
ficados com o Proletkult, defendiam que o tra
balho cultural tem dois “momentos”: “didático”
(a cargo do comissariado da instrução) e “cria
dor” (que recebia a ênfase do Proletkult). Plet-
nev concluía, apontando para um imbricamento
das duas instâncias: “A história do movimento
operário deve ser o material para a criação artís
tica” (ZERON, 1991: 281).
As máximas dos “proletkultistas” e a sua de
dicação revolucionária não abrandavam as des
confianças do Partido Comunista em relação aos
artistas que buscavam ou uma organização
paralela ou a “liberdade de criação”. Em 1921,
Lunatcharski (comissário de instrução e
identificado com o grupo), no texto “A liberdade
do livro e a revolução”, chegou a defender a
censura “revolucionária”: “Sim, nós absoluta
mente não nos deixamos espantar diante da ne
cessidade de censurar até mesmo a beletrística,
porque sob sua bandeira, sob seu belo semblante,
pode ser inoculado o veneno na alma ainda in
gênua e ignorante de uma enorme massa, sempre
pronta a vacilar e recusar a mão que a conduz,
através do deserto para a terra prometida” (apud
HOBSBAWM, 1987: 147). (...) "
ARTE E REVOLUÇÃO:
ENTRE O ARTESANATO DOS SONHOS
E A ENGENHARIA DAS ALMAS (1917-1968)
Marcos Napolitano
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
Este artigo traça um panorama das discussões em torno do binômio “arte "e “revolução ”, partindo do
contexto histórico da Revolução Russa, examinando o engajamento das vanguardas européias na busca de
novas matrizes estéticas e ideológicas para reconstruir a consciência social. Procuramos confrontar as
diversas visões sobre esta questão, explicitadas através de programas, artigos e manifestos de época,
demonstrando a luta política e ideológica por trás dasformulações de ordem estética.
PALAVRAS-CHAVE: Revolução Russa; arte epolítica; vanguardas; história da arte.