sexta-feira, 21 de abril de 2017




Isso a que chamamos “Cultura”

Isso a que chamamos “Cultura”
A batalha das Ideias na produção de sentido
“O colonialismo ideológico acompanha sempre o colonialismo económico
e a libertação económica não é possível sem a libertação ideológica”
        Rodolfo Puiggros
A Cultura não é, em nenhuma das suas expressões, um ser imaculado nem intocável. A sua própria existência exige a presença da crítica como condição necessária e como motor do seu desenvolvimento histórico (especialmente hoje) quando chegamos ao ponto em que a palavra “Cultura” pode ser usada para significar quase todas as coisas. Umas vezes porque certos caprichos epistemológicos, nos seus debates cada vez mais escolásticos, cinzelam de bom grado a sua necessidade de chamar “Cultura” ao que não se atrevem a qualificar como Ideologia. Outras vezes porque se fundaram tradiçõesantropológicas, sociológicas ou filosóficas que se derramariam sobre generalidades (cada vez mais confusas) se não contassem com um conceito dique onde caiba tudo, incluindo a sua raiz de cultivo. Outras vezes ainda porque atrás – ou debaixo- da palavra “Cultura” podem camuflar-se ou esconder-se interesses de todo o tipo… – incluindo os mais retorcidos. Basta recordar as aventuras culturais da NATO.
  
 É muito importante manter aberto o debate sobre a Cultura e seus significados. “Cultura de massas”, “Cultura de Elite”, “Cultura Culinária”, “Cultura Indígena”, “Cultura Popular”… “antropologia cultural”, “políticas culturais”, “Indústrias Culturais”, “Narco cultura”… enfim, trata­-se hoje de um conceito faz-tudo que pode utilizar-se em qualquer momento para dar lustro retórico a um sem-número de actividades, intenções ou falácias. E o usuário  fica bem perante os auditórios mais diversos, bastando-lhe para isso invocar a Cultura que habitualmente é apresentada como um ente intocável.
Do cultivo dos campos passámos a cultivar o espírito e o século XVII inclinou o seu significado para o cultivo das faculdades intelectuais. Com a Ilustração a palavra “Cultura” tornou-se sinónimo de “Civilização” em oposição de classe ao conceito “barbárie”, em oposição de classe entre as forças da natureza e as forças da Cultura… actualização feita à medida da Grécia clássica na divisão artificial capitalista entre o trabalho físico e o trabalho intelectual. Nasce a ideia de que a Cultura é um instrumento de dominação expressa nas Belas Artes, nos lucros da burguesia. Só a classe culta produz “Cultura”, “saberes”, “progresso”, “razão”, “educação”.
Também o etnocentrismo se apoderou do conceito para modelar os imaginários coletivos ao serviço do consumismo de mercadorias como máximo ganho cultural permitido aos povos. Para cúmulo, isso a que se chama “Cultura” enverniza-se com a ideia do folclore em oposição – matizada – face ao iluminismo e ao romantismo e portanto não há “Cultura” mas “Culturas”. Mesmo com uma carga, não poucas vezes, racista. E chegamos a usar o conceito Cultura como sinónimo – reducionista – de organização de espectáculos, feiras e exposições.
E hoje somos dominados a nível planetário pela Cultura da Guerra (o comércio por outros meios), realidade esta camuflada por todos os Mass Media. O que, diga-se de passagem, nem sequer é uma novidade. Cinema, literatura, televisão, vídeo-jogos…  são hoje novos campos de disputa da luta de classes que (também) se trava com valores, condutas e com sinais… na cabeça e nos corações. É uma disputa de interesses, em sociedades divididas em colonizadores e colonizados, para ganhar o terreno dos imaginários onde se erguem os princípios, as ideias, os afectos… cenários da Batalha das Ideias, dos Gostos e dos Hábitos. Disputa antiga pelo domínio dos valores sociais, para pôr o mundo de pernas para o ar, para tornar invisíveis as coisas que realmente contam e impor-nos como valiosassó as mercadorias e a ideologia dominante. Claro que se trata de uma disputa edificada sobre mísseis, canhões, metralha e golpadas… cimentada com terrorismo financeiro, chantagem com investimentos e vampirismo bancário.
As suas armas estratégicas continuam a ser – entre outras – as Igrejas, o Estado Burguês, a Educação e os mass media… que desenvolvem formas diversas de violência psicológica planificada contra os povos, o aviltamento da dignidade, a criminalização das rebeldias, a situação de ameaça permanente e o amedrontamento como religião… É uma sequência de acções alienantes sistemáticas convertidas em Indústria do entretimentoe do prazer… é o sequestro dos jogos, do ludismo  necessário, do sentido do humor, das tradições colectivas e da identidade comum. É o sequestro do social nas garras do individualismo, é o reino da fadiga, a moral da extenuação, as privações e as carências daqueles que produzem a riqueza concreta. É a perversão da ternura nas garras do sentimentalismo lamechas; o parasitismo contra a solidariedade, contra a consciência de classe e contra a organização social transformadora.
Se o mundo é abalado pela crise prolongada do capitalismo, que na sua agonia depreda e mata tudo à sua passagem, a Nossa América foi muito em especial considerada “traspatio” onde o imperialismo  praticou todas as suas monstruosidades, que incluem a lista dos estragos terríveis causados pela ideologia da classe dominante… nem por isso vamos ficar calados. Não permaneceremos em silêncio, e muito menos hoje quando a guerra psicológica permanente, que o capitalismo desencadeia com as suas máquinas de guerra ideológica (radiofónicas, televisivas, impressas, digitais…) se traduziu em golpes de Estado, magnicídios e genocídios.
Não vamos emudecer perante a pressão quotidiana do consumismo febril, não ficaremos indiferentes ante a intoxicação dos povos com a mentalidade individualista. Não vamos evadir a nossa responsabilidade crítica face à manipulação dos gostos, dos valores sob as manias disfarçadas de “entretenimento”, noticiários, diversões, jogos e concursos…  mesmo quando disfarçados de escolas, institutos e universidades, tudo isto constituindo uma ofensiva servil à lógica do império para saquear e escravizar recursos naturais, mão-de-obra e a consciência dos povos.
Precisamos de blindagens para a esperança de  impulsionar uma grande Revolução Cultural a partir do melhor  que os nossos povos conquistaram em centúrias de lutas emancipadoras, em séculos de aprendizagens e como resultado de milhões de experiências teórico metodológicas. Num continente que foi submetido a barbaridades de todo o género; num continente que foi espezinhado por quase todos os impérios do planeta; num continente extraordinariamente rico em matérias-primas, heranças culturais e diversidades identitárias… num continente vitimado, com toda a impunidade, pela avidez colonialista de escravizar a consciência e a mão-de-obra dos seus povoadores, o desenvolvimento de uma grande Revolução Cultural para a integração – desde as bases – não só parece uma necessidade suprema, lógica e urgente… mas é sobretudo um acto de justiça social de primeira ordem. E não se pode dizer que uma tal Revolução não esteja, a seu modo e com as suas limitações, em marcha.
Revolução Cultural continental para entender cientificamente o cenário actual da disputa cultural e sonhar, objectivamente, com mudanças históricas verdadeiras. “Se não mudarmos as ideias, não mudamos nada”. Uma Revolução Cultural da Nossa América é, por necessidade, uma Revolução económica, social e política. Revolução alfabetizadora, uma Revolução ecológica, uma Revolução educativa, uma Revolução do habitat, uma revolução do trabalho… e, também, uma revolução artística, científica, comunicacional e ético-moral; em suma, uma Revolução também da produção dos Símbolos emancipadores… ou será nada.
Rebelión/Instituto de Cultura e Comunicação UNLA
Este artigo encontra-se em: as palavras são armas http://bit.ly/2pWsqfJ

segunda-feira, 17 de abril de 2017



Portugal – Alexandre O’Neill

Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!         *
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós . . .
 
© 1965, Alexandre O’Neill
From: Poesias Completas
Publisher: Assírio & Alvim, Lisbon, 2000
ISBN: 972-37-0614-8
Este artigo encontra-se em: voar fora da asa http://bit.ly/2p89EFL

terça-feira, 4 de abril de 2017

Salvador Dali, um dos maiores pintores de todos os tempos

Salvador Dali, um dos maiores pintores de todos os tempos

Salvador Dali, um dos maiores pintores de todos os tempos, perseguiu, durante todo o seu percurso artístico, a ideia da transgressão, quer a transgressão temática, desconstruindo as narrativas mitológicas e as narrativas do mundo real, tal como as interpretamos, quer a transgressão formal, ao nível do estilo pictórico e ao nível da figuração, optando por agigantar até ao limite as personagens e todos os elementos físicos das suas composições. Repare-se, por exemplo, no efeito cinético, conseguido na pintura “A Tentação de Santo António”, em que o cavalo, desencabrestado, parece querer saltar para fora da tela.
Dali, tal como Picasso, inaugurou um novo conceito de pintura, que eu designo de surrealismo do fantástico ou, segundo alguns autores, do surrealismo metafórico. Também poderíamos dizer que Dali trabalhou na tela a alucinação, a loucura, a excentricidade e o assombro, numa tentativa de intimidar o espectador, obrigando-o a ser mais activo na observação e na interpretação da obra, já que, em relação ao passado, olhava-se para uma pintura, de uma forma mais passiva e tranquila, tal como se se observasse uma paisagem. Perante uma pintura de Dali, ninguém fica indiferente. Pela intensidade das cores e pela distorção e gigantismo das formas, e, também, pelo uso do plano da profundidade, que dá a sensação de não ter fim, Dali impressiona e cria tensões emocionais nos espectadores. Ele não é o pintor da estética harmoniosa. Na maioria dos seus trabalhos emerge uma tensão de violência e uma sensação de desequilíbrio, à beira do abismo.
Alexandre de Castro
2016 01 30
Este artigo encontra-se em: Alpendre da Lua http://bit.ly/2otVXAz