sexta-feira, 19 de julho de 2019

POEMAS PARA ESTE VERÃO


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POEMAS DE VERÃO

Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.

Pablo Neruda

POEMAS SOBRE O VERÃO

~ Soneto 18 ~
Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.

Às vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.

Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:

Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.
William Shakespeare

sábado, 13 de julho de 2019

BUÑUEL


Buñuel
Sem Deus nem mestre
getty images
Arrancou este mês, no Nimas, em Lisboa, um grande ciclo de filmes de Luis Buñuel que depois se prolonga, em várias cidades, em vagas a durar, pelo menos, até ao fim do ano. Visita ao maior cineasta ibérico do século XX, iconoclasta, anticlerical, surrealista e tudo
textos Jorge Leitão Ramos
Dezembro de 1960. Luis Buñuel, um dos mais célebres exilados artistas espanhóis, há uma década naturalizado cidadão mexicano, pede em Paris um visto para entrar em Espanha. Aquele que fora, em França, espião do Governo republicano nos anos da guerra civil, estaria disposto a pactuar com o regime ditatorial de Francisco Franco? Assim parecia e não poucos intelectuais de esquerda no exílio vituperaram a atitude de Buñuel, ainda mais quando souberam que ele iria fazer um filme no seu país natal. O caudillo estava tão interessado em bem acolher o cineasta que quando foi apresentado às autoridades o argumento de “Viridiana”, o mais que fizeram foi sugerir, respeitosamente, algumas alterações que Buñuel seguiu, em alguns casos fazendo piorar as leituras possíveis. Em traços gerais o filme era a história de uma postulante, prestes a tomar votos como freira, que vai por uma temporada para casa de um velho tio viúvo que dela se enamora e quer a todo o custo mantê-la perto e para ele. Desencadeada uma tragédia, a protagonista tenta a radical caridade como destino, acolhendo pobres e destituídos da sociedade, boa obra que não dará bons frutos. Concluído mesmo nas vésperas do Festival de Cannes de 1961, “Viridiana” será aí apresentado sob pavilhão espanhol, conquistando a Palma de Ouro que um feliz director-geral de Franco foi receber. Parece que não tinha visto o filme, Buñuel, retido em Paris, nem queria acreditar quando soube. Dois dias volvidos, o “L’Osservatore Romano”, órgão oficial do Vaticano, qualificava o filme como blasfemo e sacrílego, o que em Madrid caiu como um terramoto. Além da demissão sumária do alto funcionário governamental que deixara que um tal filme ostentasse a bandeira espanhola no certame francês, todas as cópias e o próprio negativo foram sequestrados e destruídos, o filme sumariamente proibido — tal como a sua exportação. Mas o produtor mexicano que tinha estado na base do financiamento, Gustavo Alatriste, um homem de negócios que gostava de atrizes, tivera a prudência de albergar em Paris um duplicado do negativo. O filme acabaria estreado um pouco por todo o mundo (em Portugal, nem pensar...), grangeando um considerável sucesso. “Viridiana” teve o condão de escancarar as portas dos produtores franceses ao cinema de Buñuel. O cineasta ainda faria mais dois filmes no México, sempre com Alatriste (e com a atriz Silvia Pinal, sua mulher que já protagonizara “Viridiana”), mas seria em França que basearia o resto da sua obra e o cume da sua fama nos últimos anos da sua carreira (com o Leão de Ouro de Veneza, em 1967, duas nomeações para os Óscares nos anos 70, como argumentista, e o galardão de Melhor Filme em Língua Estrangeira para “O Charme Discreto da Burguesia“). Todavia, sempre manteve residência na Cidade do México onde, aliás, viria a falecer em 1983.
<span class="arranque">Auge</span> Luis Buñuel em 1954, durante o seu período mexicano
Auge Luis Buñuel em 1954, durante o seu período mexicano
UM CINEASTA MEXICANO
Buñuel estabelecera-se no México em 1945 depois de um atribulado périplo americano onde chegara, em 1939, como delegado da República Espanhola para ser conselheiro em filmes que Hollywood fazia sobre Espanha, tarefa que nunca cumpriu deveras já que a entrada de Franco em Madrid ditou o termo da Guerra Civil e condenou o cineasta ao exílio. Entre Los Angeles e Nova Iorque teve vários empregos, passou dificuldades, tentou a sua sorte em projetos que nunca se concretizariam. Conotado com a esquerda, provavelmente criptocomunista, embora o próprio sempre afirmasse que nunca se filiara no partido, nem em Madrid nem em Paris, acabaria olhado de soslaio, para dizer o mínimo, quando um livro de Dalí o denunciou publicamente como marxista. Buñuel não filmava desde 1932, desde um documentário em forma de grito (“Las Hurdes”), embora, em 1935/36, tivesse trabalhado como produtor de filmes comerciais em Espanha e há quem diga e jure que também (pelo menos) colaborado na sua realização, embora com o nome nunca creditado nos genéricos. O cineasta, cuja nomeada continuava a assentar nos parisienses dois rasgos polémicos e surrealistas (“Un Chien Andalou”, 1929; “L’Âge d’Or”, 1930) precisava de fazer cinema com urgência, viver da boa vontade e dos empréstimos dos amigos não era sustentável. O país para onde se deslocara, por seu lado, tinha uma bem estruturada indústria cinematográfica, com um grande mercado interno e de exportação e o apoio do forte vizinho norte-americano. Tinha estúdios, tinha grande técnicos (como o diretor de fotografia Gabriel Figueroa), tinha vedetas de impacto internacional (como Maria Félix ou Cantinflas). Buñuel não podia esperar hipóteses vanguardistas e estava disposto a enfileirar na indústria, a fazer filmes comerciais, a ganhar a vida, desde que, como declarou nas suas memórias, não filmasse nada que fosse contrário às suas convicções, à sua moral pessoal. Assim aconteceu, num labor que se tornou continuado, nas condições que havia. As filmagens seriam sempre em prazos espartanos — entre dezoito e vinte e quatro dias — e, nas suas próprias palavras, ter-lhe-á acontecido “aceitar temas que não tinha escolhido e trabalhado com atores muito mal ajustados aos papéis”. Mas serão esses vinte filmes que fez no México que viriam a constituir o carne e o coração da sua obra, na época em geral quase desconhecidos internacionalmente, mas que foram circulando e sendo reavaliados, às vezes com espanto do próprio realizador que pouco considerava a maior parte deles. Fez de tudo um pouco, mas, sobretudo, melodramas que cumpriam os cânones do comércio e onde inoculou muitos dos seus fantasmas e obsessões, o ciúme, a morte, a podolatria, o machismo, pinceladas oníricas, o sexo como coisa secreta, implícita, não mais que sussurrada, uma conturbado relação com o catolicismo que oscilava entre um respeito fundo pelo seu quadro ético e um radical anticlericalismo que nunca o largaria. E também uma contraditória posição sobre a diferenciação de classes: implacável em relação aos possidentes e às injustiças com que acederam ou se mantêm nesse lugar, o olhar de Buñuel nem por isso se irmanaria com o lado de baixo da humanidade, com a sua brutalidade simples que os filmes retratam sem qualquer espécie de complacência. Veja-se a crueldade dos miseráveis de “Los Olvidados” ou a desgovernada violência “El Bruto”. No cinema de Luis Buñuel a luta de classes nunca é uma coisa épica, é sempre maculada pela sordidez. E, todavia, o lado ‘sujo’ da realidade é, a um tempo, escancarado e refreado. Os filmes mexicanos de Buñuel transpiram desejo por todos os lados, não recuam perante nenhuma insinuação, e, todavia, no que a imagem explicitamente mostra, são reprimidos, disciplinados, como o pode ser quem esteve dez anos sob a educação de padres jesuítas, sob a regra de Santo Inácio de Loyola.
UM SEÑORITO ARAGONÊS
Buñuel não nasceu rebelde, nem herético, nem, evidentemente, surrealista. Nasceu rico, primogénito de sete irmãos, em Calanda, pequena povoação a uma centena de quilómetros de Saragoça, no mesmo ano em que nasceu o século XX. O pai fizera fortuna em Cuba e, de regresso a Aragão, casara-se com a filha de um proprietário rural que era a mulher mais bonita da terra. Na casa da sua adolescência havia cinco criados e, quando ia para as aulas de violino, um deles levava a caixa com o instrumento do jovem Luis. John Baxter, biógrafo de Buñuel, afirma que o mais que o pai podia carregar em público seria uma lata de caviar. E uma arma de fogo, paixão que o filho havia de herdar. Para tudo o resto, havia criados. Entre os sete e os dezasseis anos Buñuel estudou no jesuíta Colégio del Salvador. Saiu de lá “ateu, graças a Deus”. Mas o catolicismo seria, para sempre, uma das traves da sua personalidade e, mais tarde, do seu cinema.
Era um homem ciumento, autoritário, controlava o dinheiro e as decisões importantes dentro de casa
Foi a música a primeira inclinação do futuro cineasta; depois anunciou ao pai que queria estudar entomologia. Acabou por ir cursar Agronomia, em Madrid, depois Engenharia, acabou diplomando-se em Filosofia. Mas o mais importante que lhe aconteceu na velha e então muito provinciana capital de Espanha foi o contacto com uma brilhante geração de intelectuais, tornou-se amigo de Albertí, de Lorca, de Dalí, de Manuel de Falla. Ir para Paris, centro do mundo nos anos 20, foi quase uma evolução natural. É aí que decide que quer ser cineasta, fascinado por “A Morte Cansada”, de Fritz Lang. O pai, entretanto, morrera, e é a mãe que fica a gerir a herança e a financiar o jovem Buñuel, com uma fixa mensalidade que lhe permite viver em Paris. Do teatro ao cinema, da escrita à encenação, faz um caminho que, no fim da década, desembocará num filme surrealista, engendrado em parceria com Dalí, financiado pela mãe: “Un Chien Andalou”. Um sucesso instantâneo — oito meses em cartaz afirma o cineasta nas suas memórias — e o aplauso ditirâmbico dos parceiros parisienses. André Breton, o papa do Movimento Surrealista, diria do filme que era “belo como o encontro dum guarda-chuva e de um cão numa mesa de autópsia”. Famoso de um dia para o outro, as portas abriram-se para a produção do filme seguinte, “L’Âge d’Or”. A fama continuou a favorecer Buñuel, mas o sucesso não. Proibido pelas autoridades, na sequência do escândalo público que foi a sua estreia, o filme só viria a ter distribuição comercial meio século depois — e cimentou, para sempre, a aura de Buñuel como absolutamente iconoclasta. Todavia, o provocador que o mundo veria nele, o homem que tão bem figurou as impotências na vida, as vontades que não se cumprem, como orgasmos continuamente adiados numa tensão que não amaina, era um homem bastante pacato, quase monacal. Deitava-se cedo, casou-se uma única vez, viveu com essa mulher durante quase cinquenta anos — e, defendem os amigos íntimos, foi-lhe fiel. Bebia cinco dry-martinis por dia, a horas certas, e algum vinho e se dedica um capítulo inteiro das suas memórias aos “prazeres daqui de baixo” (com uma pormenorizada receita para preparar o seu cocktail preferido), em que o tabaco aparecia como central, nele se confessa um tímido no que respeita às mulheres e, como membro de uma geração de castelhanos a quem o catolicismo moldara, dotada de um desejo sexual que era talvez o mais forte do mundo. Todavia, escritas as memórias já em idade avançada, admite ter assistido ao “desaparecimento progressivo e, por fim, total do [seu] instinto sexual, mesmo em sonho”. E remata: “Estou muito satisfeito por tal facto. É como se finalmente me tivesse visto livre de um tirano.” Era um homem ciumento, autoritário no interior da sua família, não gostava de lisonjas, controlava o dinheiro e as decisões importantes dentro de casa, talvez não muito diferente dos señoritos castelhanos de “Tristana” ou de “Viridiana” ou do paranoico de “Él”. Tinha, todavia, sobre eles, uma ínclita vantagem, um humor sem medida. O humor com que se despede de nós nas suas memórias, imaginando a própria morte e um desejo para depois que não resisto a citar.
Preferido “Él”, a história de um ciumento paranoico, era o filme que Buñuel mais amava
“Próximo do meu último suspiro, imagino bastantes vezes uma última partida. Convoco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu. Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos, confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro.
Mas será que encontraremos ainda força para gracejar nesse momento?
Um desgosto: não saber o que se vai passar, abandonar o mundo em pleno movimento, como no meio dum folhetim. Acho que esta curiosidade do pós-morte não existia noutros tempos, ou existia menos, num mundo que quase não mudava. Uma confissão: apesar de todo o meu ódio pela informação, gostaria de me poder levantar entre os mortos, de dez em dez anos, ir até a um quiosque e comprar alguns jornais. Não pediria mais nada. Com eles debaixo do braço, pálido, roçando as paredes, voltaria ao cemitério e leria os desastres do mundo, antes de voltar a adormecer satisfeito, abrigado tranquilamente pelo túmulo.”
Sequências “Un Chien Andalou” e “Belle de Jour”: o alfa e o ómega do cinema de Buñuel
IMAGENS MATRICIAIS
Há duas sequências que assombram/iluminam todo o cinema de Luis Buñuel. A primeira é a inaugural abertura do seu primeiro filme, ainda mudo, o vanguardista “Un Chien Andalou”, de 1929. Um homem — o próprio Buñuel — afia uma navalha. Uma mulher, à varanda, contempla a noite. O homem aproxima-se dela, por trás, segura a arca orbital do olho esquerdo com dois dedos, expondo o globo ocular. No céu há uma lua, muito branca, atravessada pela faixa negra de uma nuvem. A navalha corta um olho. É, talvez, a mais terrífica imagem em toda a História do Cinema, cem vezes vista, nunca o impacto diminui. Não importa que saibamos que se trata de um olho de vaca, evidentemente morta. É sempre o nosso olho que a lâmina de Buñuel decepa. Posso assegurar, por experiência própria.
A segunda sequência matricial da obra buñueliana pertence a um filme muito posterior, “Belle de Jour”, de 1967. A cena decorre no bordel de Madame Anaïs onde Séverine, uma senhora casada da alta burguesia, se prostitui, às tardes, talvez para experimentar rêveries de submissão que a sua situação conjugal não cultiva. Um dia apresenta-se um cliente oriental, possante, a falar uma língua tão ininteligível quanto inidentificável. Para explicar o que quer traz uma caixinha com incrustações que abre e de onde sai um zumbido. Uma primeira rapariga recusa, horripilada. Séverine acede. Não vemos o que se passa, ficamos de fora da porta fechada do quarto. No fim da função, o cliente sai, uma velha criada entra no quarto em grande desalinho, há mesmo um candeeiro de cabeceira tombado na refrega. Séverine está deitada na cama, de barriga para baixo, o rosto afundado nos lençóis, a cabeça na nossa direção. A criada começa a arrumar e comenta, comísera: “Às vezes, deve ser muito penoso.” Séverine ergue a cabeça e murmura: “O que é que tu sabes disso?” E sorri, entre o saciado e o irónico: é um raio que se despenha sobre o espectador. E não nos deixa dúvidas; e deixa-nos as dúvidas todas.
Crueldade, absurdo, desejo, sexo — e tudo moldado por alusões, por fetiches, por imagens a que havemos de querer atribuir significados, estimulando o que de mais secreto, às vezes inconfessável, nos habita. E, todavia, sempre com a consciência de que não conseguiremos esgotar os significados, conhecer a verdade, porque, no fundo de nós, sabemos que tal coisa não existe. O cinema de Buñuel é obra aberta a todas as incursões e mesmo às profanações do nosso olhar e do nosso entendimento. / J.L.R.


João Gilberto <span>1931-2019</span>
João Gilberto 1931-2019
Nelson Motta
João e o mundo
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Jornalista, compositor, escritor, produtor musical, o consagrado Nelson Motta aceitou o repto do Expresso e escreve sobre João Gilberto, um dos pais da bossa nova
Assim como qualquer norte-americano se lembra de como e onde estava ao saber do assassínio do Presidente John Kennedy, gerações de brasileiros jamais se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando ‘Chega de Saudade’ no rádio, em 1958. Muitos grandes mestres como Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gal Costa e Gilberto Gil decidiram fazer música depois de ouvir a histórica gravação, que lançava a bossa nova e se tornaria um marco da vida cultural brasileira.
No centro de tudo um violão tocando um ritmo que ninguém jamais ouvira, que se parecia com o samba, mas não era o samba tradicional, era um balanço irresistível feito de acordes dissonantes e sequências harmónicas surpreendentes, envolvendo uma voz suave e doce, com impecável afinação e fraseado muito diferente das “grandes vozes” da era do rádio, ainda na tradição operística, mesmo depois da invenção do microfone.
Neste sentido, João Gilberto é o primeiro cantor tecnológico, ao usar o microfone não apenas para aumentar o volume da voz mas para permitir-lhe concentrar no que realmente interessa, a melodia, o ritmo, as harmonias, com um mínimo de volume e um máximo de invenção e precisão.
Não por acaso, o histórico ‘Chega de Saudade’ de João Gilberto, foi ouvido nos primeiros rádios de pilha que chegavam ao Brasil como a novidade tecnológica do momento.
Esta gravação é o grande marco divisório da música brasileira. Depois dela as músicas de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes ganharam o mundo e, com João Gilberto, Stan Getz e Astrud Gilberto, quatro Grammys em 1964. ‘The Girl From Ipanema’ se tornava um sucesso mundial e João um culto entre músicos sofisticados dos mais diversos estilos.
Como Bob Dylan, que em seu álbum “Lay, Lady, Lay” (1971), confessa que gostaria de cantar tão bem quanto o “soft brazilian singer”. Dylan, conhecido por sua voz nasalada e canto cru, realmente melhorou muito como cantor nesse álbum.
A partir de João Gilberto e do filme “Black Orpheus”, em que ele cantava ‘Felicidade’, a bossa nova foi adotada pelos grandes músicos de jazz — como Miles Davis, Bill Evans, Stan Getz, Gil Evans e Charlie Byrd — e consagrada pelas críticas mais exigentes.
Ao longo dos anos, na trilha luminosa aberta por João Gilberto, a música brasileira se multiplicou em ritmos e estilos, as gerações se sucederam, mas a sua influência só fez aumentar. No Brasil, ninguém questiona que João Gilberto é o artista mais influente da música brasileira.
Acompanho João Gilberto desde o início — afinal, sua gravação de ‘Chega de Saudade’ mudou minha vida — e tive o privilégio e a sorte de o ouvir em Roma, Nova Iorque, Paris, Montreux, Salvador, São Paulo, Miami e Rio de Janeiro várias vezes ao longo desses quase 60 anos de estrada. João fazia raros concertos por ano, às vezes nenhum, e onde ia esgotava as lotações com meses de antecedência e era aplaudido por públicos de diversas gerações e nacionalidades, todos fascinados com seu estilo elegante de sintetizar em sua voz e nas cordas do seu violão o coração pulsante de um país que ama a música e o ritmo.
Em 1988, eu estava pela primeira vez no Japão, como diretor da tournée de Gal Costa por diversas cidades. Encantado com a suavidade e elegância das pessoas e das paisagens, com a discrição e o respeito pela música que João tanto gosta, em Fukuoka, telefonei-lhe no Rio de Janeiro, falando do Japão, de tudo que ele gosta. E dizendo que ele tinha de um dia vir fazer show no Japão, que ele ia adorar a atmosfera, o público, a precisão tecnológica, os templos antigos. Zen-baiano, ele respondeu apenas:
“Eu sou daí.”
Em 2004, finalmente João foi ao Japão e recebeu uma das maiores consagrações de sua vida, que resultou num belo CD gravado ao vivo em Tóquio.
João e nós
Naquela noite, naquele terraço sobre Copacabana, hipnotizado, vi e ouvi João Gilberto de perto pela primeira vez. Até ouvir ‘Chega de Saudade’ com João Gilberto eu não gostava de música. Não me interessava. Em 1958, tudo o que se ouvia no rádio e nas poucas TV a preto e branco era chato — para adolescentes de Copacabana como nós, jovens filhos da classe média na alvorada dos Anos JFK, da modernização do Brasil. Depois de João foi como se alguém acendesse a luz e aumentasse o som (ou, melhor, diminuísse), tornando a música e a letra mais leves, mais swingadas, mais elegantes e modernas. Tudo o que ele cantava parecia novo, com sua nova batida, inconfundível, síntese do samba e das marchinhas. Sua música era a trilha sonora perfeita para o estilo de vida alegre e liberal do Rio de Janeiro que se modernizava. João Gilberto era nosso pastor e nada nos faltaria. Foi ele quem inspirou e levou a minha geração (Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Francis, João Bosco, Roberto e Erasmo, Tim Maia e até mesmo Jorge Benjor) a mergulhar num universo musical que já não era o da Rádio Nacional, tinha um novo sol, mais brilhante, mais discretamente brilhante, com um alto teor de magnetismo e radioatividade.
Gerações de brasileiros jamais se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando no rádio
Todos os que um dia foram tocados por sua música sabem (como testemunharam Miles Davis, Bob Dylan e Madonna, e tardiamente Eric Clapton), como qualquer músico brasileiro de qualquer estilo ou geração sabe, que depois de ouvi-lo tudo soa (mesmo os melhores sons) mais barulhento, excessivo, áspero. Não que seja pior, mas certamente é menos suave, macio e delicado. Até Chet Baker. Que mágica fez este homem! Não é mágica, é génio e predestinação. De uma pequena cidade do interior da Bahia para — com sua pequena voz e grande violão — mudar a música do planeta, como o genial criador da maior contribuição cultural (uma das raras) que o Brasil deu ao mundo nos tempos modernos, conhecida como bossa nova, mas na verdade a música original de João Gilberto, sua revisão permanente dos grandes mestres, desenvolvida por Antonio Carlos Jobim, Vinicius de Morais e seus seguidores de várias gerações até hoje, no que se chama de MPB.
Não há, dificilmente haverá artista mais influente na história da música brasileira moderna. Sim, também Tom Jobim, mas ninguém influenciou mais Tom Jobim do que João Gilberto... Ninguém cantou Antonio melhor do que João. Glauber Rocha, que amava e respeitava João Gilberto, atribuía ao seu estilo intimista a “feminização” da música brasileira moderna: depois dele todos os homens passaram a cantar mais suavemente. Como Chico, Caetano, Gil, Roberto Carlos e todos. Em contrapartida, segundo Glauber, depois dele as mulheres passaram a cantar com mais força e “virilidade”, como Elis Regina, Maria Bethânia, Simone e uma sucessão de cantoras vigorosas e dramáticas, de vozes potentes e grande expressividade. Glauber adorava uma polémica, João gostava de harmonia e silêncio. Dois baianos porretas, Apolo e Dionísio na Terra do Som.
Em João a revolução é permanente, like a rolling stone. A prova, o seu último disco, “Voz e violão”, vencedor do Grammy, com suas interpretações definitivas a ‘Desafinado’ e ‘Chega de Saudade’, 40 anos depois e, por qualquer critério ou conceito, musicalmente superiores às históricas versões originais, que serão sempre históricas, mas foram superadas pelo génio criador de uma obra em movimento permanente. É um espanto. Suave, mas espanto. Não interessam muito as canções que ele canta, mas como as canta, como Maria Callas, que gravou muitas versões diferentes de suas árias preferidas. Ou como Sinatra. Se bem que aos 70 anos Sinatra já não fazia novas versões melhores de suas músicas de sempre. João é diferente, sua luz é seu mistério, poucos personagens da nossa história musical terão um folclore mais abundante em volta de seu mito, a maioria exagerados e fantasiosos, a menor parte atitudes ou palavras de João mal compreendidas. Todos que o conhecem sabem: é um dos homens mais inteligentes de que se tem notícia. Sim, como a sua música, a sua inteligência e o seu humor são especiais, e seu estilo de vida, recolhido e em trabalho permanente de aperfeiçoamento da sua obra, é muito especial, não permite especulações e estimula o mistério. Então o melhor presente é deixar o homem em paz.
Mas nem todas as palavras já escritas sobre João Gilberto, por alguns dos maiores e mais influentes artistas brasileiros de diversos campos, valem juntas ouvir apenas uma de suas músicas: por exemplo, o ‘Desafinado 2000’ ( onde ele nem fala em bossa nova...). Você vai entender tudo. Silêncio. Som na caixa. Bem baixinho.
João e eu
Conheci João Gilberto numa noite de 1960, no apartamento dos meus pais, em Copacabana, quando, levado por Dori Caymmi e diante de poucas testemunhas, João nos visitou. Cantou, tocou e conversou muito com meu pai, que o admirava tanto quanto eu e minha mãe e dizia que as palavras que saíam da boca de João eram como pedrinhas brutas e agudas que vinham rolando desde a nascente do rio até se tornarem seixos lisos e roliços antes de chegarem ao mar.
Depois de oito anos nos Estados Unidos e no México, em 1970 João Gilberto voltou ao Rio de Janeiro, contratado por Ricardo Amaral para fazer um show numa cervejaria recém-inaugurada em Botafogo, o Canecão. E daria, pela primeira vez na vida, uma entrevista para a televisão. Como repórter da TV-Globo e com o melhor cinegrafista da casa, Roberto Padula, cheguei à cobertura de Amaral, no Leblon, no meio da tarde. João já estava lá, animado e sorridente, feliz em reencontrar a beleza do Rio.
No terraço, na linda luz da tarde carioca, conversámos por dez minutos diante da câmara de Padula e dos sorrisos de Amaral. Sobre música, naturalmente. João respondia com simpatia, mas com pouco mais que monossílabos, mas não importava: era o suficiente para mostrar ao Brasil que o mito falava. Padula filmava a preto e branco.
Conheci João numa noite de 1960, no apartamento dos meus pais, em Copacabana. Cantou, tocou e conversou muito
Com o coração aos pulos voltei correndo para a TV-Globo para revelar e editar o material na moviola, a tempo de entrar no “Jornal Nacional”. Roendo as unhas esperei à porta do laboratório, ansioso para ver o filme ainda húmido da revelação.
Quando o laboratorista me entregou a lata e disse pesaroso que, por um defeito na câmara, o material estava inutilizado, pensei que era brincadeira. Mas era verdade: no filme inteiro não havia nenhuma imagem impressa e nenhum som gravado.
João se divertiu muito quando lhe contei a história e, no dia seguinte, passou a tarde e a noite no Canecão, testando o som. A cervejaria era pouco mais que um galpão de cimento e zinco, com péssima acústica e um sistema de som precário, que reverberava por toda a casa. De madrugada, João desistiu. Cancelou o show e voou de volta a Nova Iorque.
No final de 1988, eu passava por uma devastadora rebordosa amorosa com o fim de um romance, sofria como um condenado dia e noite sem descanso, e conversava com João pelo telefone falando das minhas mágoas de amor.
Estava triste e sozinho em casa, um dia antes da véspera de Natal, quando o telefone tocou.
Era João Gilberto, me convidando a visitá-lo em seu apartamento no alto do prédio do Rio Design Center, no Leblon, a algumas quadras de minha casa.
À noite, cheguei à hora marcada mas, antes que eu tocasse à campainha, ele abriu a porta. Estava de banho tomado, de terno e gravata e com a caixa do violão na mão, como se fosse para um show.
“Não vamos ficar aqui”, disse misteriosamente sem explicar porquê, “vamos para sua casa”. Pegámos o elevador e descemos para a garagem, onde João colocou o violão no porta-malas e assumiu o volante de um Monza verde metálico, que jamais imaginei que ele tivesse. Quando chegámos à praia, me lembrei de uma das grandes “lendas e mistérios de João Gilberto”, contada por Galvão dos Novos Baianos, e senti um frio na barriga. Diz a lenda que João saiu de carro com Galvão de madrugada pela praia de Ipanema e que foi cruzando todos os sinais vermelhos, sem diminuir a marcha, sem olhar, conversando alegremente com absoluta tranquilidade. Mas, pouco adiante, num sinal aberto para ele, freiou inesperadamente — justo a tempo de escapar de um carro que cruzou o sinal vermelho em alta velocidade. Por maior fé que tivesse em João eu não estava disposto a experimentar tanta magia. Mas João dirigia devagar, admirando o mar noturno, ouvindo fitas de conjuntos vocais dos anos 40 e parando em todos os sinais vermelhos, do Leblon ao Arpoador, onde estacionámos e descemos para tomar água de coco, comer milho cozido e conversar.
Quando chegámos ao meu apartamento, diante do mar de Ipanema, João sentou-se de frente para mim, me deu o violão e pediu que eu tocasse para ele. Eu toquei medroso e ele sorriu amoroso, pegou o violão com delicadeza, ficou um tempo em silêncio e cantou duas horas para mim, a sério, como se estivesse em um concerto.