segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

As estradas perdidas do abstraccionismo

De Hitchcock a Lynch, de Antonioni a Carax, uma viagem pelas estradas perdidas do abstraccionismo. Com os apocalípticos pássaros observando.

Foto      Psico conta-nos uma história na primeira meia hora, para depois passar a contar outra. A personagem principal, que começamos a seguir no início, com o roubo e a fuga que seguimos de perto, servem só para que a sua morte seja para nós muito mais brutal e violenta Bettmann/Getty Images  Em 1989, ano em que entrei para o curso de cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema, estreou O Sangue, primeiro filme de Pedro Costa, que nos marcou. Era um filme a que a Escola de Cinema estava ligada, ainda que lateralmente. Fui vê-lo com amigos que não eram do curso. Havia algo atractivo no trailer, que eles viram na televisão, e por isso acederam a ir ver um filme português. Não era comum. Oliveira tinha um estigma e havia todos os clichés do cinema português parado e sem acção muito presentes. O Sangue parecia contrariar isso. Não era um filme de acção, mas havia ali uma dinâmica forte, um movimento evidente e não era um filme “declamado”. Se para mim e para os meus colegas da Escola de Cinema foi uma revelação (aquelas personagens falavam como nós e pareciam existir num universo que se não era o nosso, era ali ao lado e eram filmadas num preto e branco deslumbrante), foi uma desilusão para os meus amigos. A narrativa ficava em aberto, deixando no ar a resolução de um conflito e de um problema em que as personagens estavam enredadas. Os irmãos continuavam separados, as dívidas por pagar, os “bandidos” continuavam a perseguir os “heróis”. Por mais que eu argumentasse que a obra não precisava de se explicar totalmente, foi estranho para os meus amigos.O que acontecia naquela época (e talvez ainda hoje) é que se confundia uma narrativa que trilhava caminhos diferentes com a incapacidade de contar uma história. A muitos aspirantes a cineastas, ou mesmo a cineastas já firmados, ouvia-se: “O que é importante no cinema português é começar a saber contar bem uma história”. Nessa geração, o cinema português teve exemplos de cineastas que contaram “bem” uma história. Joaquim Leitão, por exemplo, dominava, e domina, a narrativa de forma mais clássica e com eficácia. Houve outros. Mas para Pedro Costa, como se viu pela obra subsequente, essa não era a preocupação primordial. Antes dele, os grandes nomes que cimentaram o cinema português, Oliveira à cabeça mas também Paulo Rocha em alguns dos seus filmes, António Reis e Margarida Cordeiro principalmente em Rosa da Areia (um mosaico de poemas mais do que uma linha narrativa), ou o Fernando Lopes de Uma Abelha na Chuva não estavam interessados na narrativa clássica. O que não quer dizer que não a dominassem. Oliveira fez Aniki Bóbó, Paulo Rocha Os Verdes Anos e Mudar de Vida, Lopes através da quase maioria dos filmes posteriores, todos eles ancorados numa forma mais clássica. Reis ensinava (e deslumbrava-nos com a forma como ensinava) baseando-se em clássicos como A Desaparecida de Ford. Essa forma de fazer cinema apenas não era uma escolha quando se deparavam com o seu próprio trabalho.Para o espectador menos avisado, a falta de conclusão de um enredo narrativo gera desconforto. O facto é que é preciso haver habituação, é preciso ter visto mais cinema, lido muitos romances, para se usufruir de uma obra que deixa pontas soltas. É mais difícil apreciar Wagner sem conhecer um pouco da história da música, muito menos entender e desfrutar de uma peça de Stockhausen ou Cage e entender as obras de Duchamp sem ter lido sobre arte conceptual. No cinema acontece o mesmo. Aquilo de que muitas vezes se fala sobre a necessidade de “formar públicos” é extremamente importante. A pintura é uma arte que já avançou muito nesse sentido. A maioria já valoriza um Picasso sem estar a desconsiderar algo que já foi julgado por alguns, de forma displicente, como infantil.A narrativa clássica, que muitos tomam erradamente como a única via, é fechada. Na Escola de Cinema alguém teve a ousadia de proclamar que a narrativa é feita em 3 actos e quando assim não é, a história está mal contada   É certo que a narrativa clássica, tradicional, que muitos tomam erradamente como a única via no cinema, é fechada. Ainda na Escola de Cinema alguém teve a ousadia de proclamar que a narrativa é feita em três actos e quando assim não é, é porque a história está mal contada. A verdade é que a narrativa clássica é quase intuitiva. Percebi há muito que quando contamos uma história a uma criança para a adormecer os seus fundamentos estão lá: “Era uma vez...” a situação tal... onde vivia fulano de tal... “Até que um dia...”, aconteceu algo... que desestabilizou o seu universo. “... e por fim... viveram felizes para sempre” (nem sempre, mas enfim...). Esta ordem de ideias é instintiva e não é preciso estudar narrativa para se lá chegar.Guerra das Estrelas, a saga, é um exemplo de uma narrativa tradicional que culmina num conjunto de obras que a cada passo segue esse caminho. Se nos três primeiros filmes da série (A Guerra das Estrelas, O Império Contra-Ataca e O Regresso de Jedi, indexados como episódios IX, X e XI), havia um universo que se fechava e uma aventura que se resolvia, deixava ao mesmo tempo portas abertas: havia um futuro aberto e um passado também incerto. De tal forma que, quando fez estes três filmes, Lucas escreveu o que chamamos normalmente de back story, um texto que serve para os actores entenderem melhor as personagens e a sua origem, mas cuja intenção inicial não era, provavelmente, a de fazer a prequela que hoje conhecemos. No entanto, mais tarde, a prequela não só se fez a partir desse texto, como se fez ainda uma sequela fechando passado e também o futuro (embora possa sempre haver espaço para mais futuro e mais passado). Mas tudo foi explicado dentro de uma linha de tempo de nascimento e morte das personagens, deixando pouco ou nenhum espaço para o espectador imaginar. Guerra das Estrelas é um exemplo interessante do que pode significar o fecho de uma narrativa. Peguemos em Darth Vader e na força (literalmente) que tem essa personagem, que aparece logo nos primeiros minutos do primeiro filme que foi feito, não por acaso. Quanto é poderosa essa presença misteriosa do homem “máquina” com a respiração e a voz filtrada e mecânica! Mas depois, na prequela ficamos a saber que afinal foi um homem comum, ou quase, e exactamente como se tornou o que depois foi. Isso faz com que a personagem perca uma das suas grandes forças: o mistério, totalmente desvendado, fechando qualquer hipótese especulativa. Vemos como se queimou, como se refez das cinzas e como continuou a viver. Não sou fã da prequela de Star Wars. Assim como poderia passar sem o fecho e a morte das personagens na sequela mais recente. Apesar de tudo, num conto de fadas, o “viveram felizes para sempre” é mais ficcional, sem qualquer laivo de realismo e totalmente aberto. Na sequela de Star Wars, é obvio que não só não viveram “para sempre”, como também não foram “felizes”, como acontece na realidade das nossas vidas. O momento em que a narrativa clássica suspende a história, o “fim” do filme, esse momento seria o auge da aventura de uma personagem que acaba bem, de uma forma que prenuncia um futuro risonho, aberto, incerto, mas que parece sempre poder ser feliz, pelo menos naquele momento. Neste caso, no final dos primeiros três filmes, Luke comtempla o futuro, Leia e Han Solo num clima de felicidade romântica e o passado olhando os Jedis desaparecidos, mas que parecem ter uma existência pacífica numa outra dimensão, terminado assim num momento “feliz” de um percurso. Ir para além disso é aproximar-nos da realidade da vida. Pode parecer contraditório falar de realidade num universo de ficção cientifica, mas não é. Qual é a realidade inevitável da vida? A velhice decrépita, a morte e a infelicidade. Como todos sabemos, a vida real é uma tragédia anunciada à nascença com um único final possível. Foi o que aconteceu na sequela, vimos os nossos heróis velhos e debilitados e a sua morte. Aproximar a ficção, ou a criação artística, da realidade talvez seja uma coisa pouco interessante ou não se faria ficção, sempre muito mais divertida e fantasiosa onde podemos viver os sonhos do “felizes para sempre”. Mesmo quando por vezes a ficção, ou até o documentário, parecem assumir características realistas, esse realismo é sempre trabalhado artisticamente de forma a que se torne interessante, quanto mais não seja através da escolha dos momentos chaves da narrativa. O que acontece com a saga de Star Wars é, pois, o caminho inverso do abstraccionismo da narrativa, o caminho inverso da ficção. Quanto mais nos encaminhamos para a ficção, mais pontas soltas, mais espaços abertos e inexplicáveis temos pela frente, tornando o mundo mais misterioso, com um Darth Vader irreal ou surreal que não sabemos de onde veio. Não conhecer a origem de Darth Vader tornaria estes filmes mais abstractos e potentes. Foto
David Lynch recusa a influência do surrealismo, mas é evidente a inspiração de Magritte não só a nível pictórico, mas também na sugestão de várias narrativas dentro de uma mesma obra, entre janelas e fundos que abrem outras paisagens e que sugerem caminhos Amy T. Zielinski/Getty Images

Mas há alguns exemplos importantes, no que diz respeito à obra aberta, por vezes ainda alicerçada no cinema clássico. É interessante perceber que o desenvolvimento da História do Cinema é feito de muitos recuos e não é uma evolução linear. Da vanguarda dos anos 20 e 30, ou dos anos 80 e 90, o cinema apontou as suas agulhas quase sempre de volta à mira do classicismo.

Em Hitchcock temos alguns exemplos interessantes. Psico conta-nos uma história na primeira meia hora, para depois passar a contar outra. A personagem principal, que começamos a seguir no início, o roubo e a fuga que seguimos de perto servem só para que a sua morte às mãos do assassino do Bates Motel, Norman, seja para nós muito mais brutal e violenta, porque nessa altura já estabelecemos uma empatia com a personagem. A morte de um desconhecido não seria tão eficaz e Hitchcock não hesita em matar a sua estrela, Janet Leigh, para a substituir por outra, Vera Miles. Personagem e actriz não são dissociáveis uma vez que é quase norma que a estrela de um filme nunca morre. Não pelo menos antes do fim. Mas aqui sim. Era algo que nunca se fazia, e ainda hoje pouco se faz. Nesse sentido, a personagem que toma o seu lugar enfrenta o mesmo perigo que já conhecemos a partir da famosa cena de morte a facadas no chuveiro, o que nos leva a temer, de forma mais intensa, a possível sorte desta nova personagem, aumentando assim a força do suspense.

Algo semelhante acontece em Vertigo também de Hitchcock. A morte da personagem interpretada por Kim Novak não deixa de ser surpreendente enquanto não descobrimos que, na verdade, ela continua viva. É um processo quase inverso, de descoberta de que afinal ela não morreu e não poderia ter morrido, pelo menos não na narrativa clássica a não ser... em Psico.

Mas, se em ambos estes filmes tudo acaba por se fechar no final, há algo de muito moderno e contemporâneo num filme posterior de Hitchcock, Os Pássaros. Dois aspectos ressaltam. Em primeiro lugar, nunca é explicado porque é que os pássaros atacam. Em segundo lugar, o final em aberto deixa o espectador com um plano apocalíptico do carro a afastar-se da casa onde os protagonistas se refugiaram, rodeados de milhares de pássaros que fazem uma pausa no seu ataque. Porquê e como segue a história não parece ser importante. A história roda à volta das relações de um casal onde de premeio está a mãe do protagonista. Esse é o enredo principal, o enredo humano. Como em quase todos os filmes de Hitchcock, e de muitos cineastas do cinema clássico, o plot principal, neste caso o ataque dos pássaros, serve apenas para enquadrar algo mais importante mas que passa por vezes de forma subliminar: as relações entre as personagens. O que acontece aqui, mais do que deixar espaço em branco para o espectador imaginar, é que a resolução e explicação do plot aparentemente principal não é assim tão importante. Interessa mostrar a acção, o medo e o terror das pessoas no turbilhão que os desequilibra. É uma obra aberta no sentido em que não ficamos preocupados com as razões de ser do ataque ou de como vai seguir o futuro. Há aqui já uma aceitação por parte do autor e do espectador que estamos perante uma ficção que nos diverte e entretém e isso é suficiente. Há um acordo tácito entre as partes, autor e espectador. No entanto, é um filme concreto, talvez com um pé no fantástico e talvez por isso segure a verosimilhança sem as explicações clássicas tradicionais.

Não por acaso, do mesmo ano de 1960, mas de uma galáxia diferente do ponto de vista formal e conceptual, A Aventura, de Michelangelo Antonioni, desenvolve a primeira meia hora de maneira semelhante a Psico. O filme segue Ana, uma jovem romanticamente envolvida com um homem de negócios e envolve-nos numa trama sentimental e existencialista em relação às questões e dúvidas da personagem. Até que Ana desaparece misteriosamente numa ilha quase deserta sem explicação. O filme continua mostrando a busca dos amigos e da polícia por Ana, mas ninguém a encontra, nem sequer se encontra alguma pista. Antonioni deixa um “buraco” numa narrativa que se torna muito aberta, pois o desaparecimento de Ana é, a partir daí, o elemento catalisador do resto do filme e das reacções e relações entre as personagens e é, assim, um acontecimento que se mantém presente. Mas, se em Psico, o intuito do realizador acaba por ser o fortalecimento da história e o suspense e o desaparecimento da personagem é bem explicado, em A Aventura não é a história e as suas peripécias que interessam a Antonioni. É o desequilíbrio que o desaparecimento de Ana causa nas relações entre as outras personagens, à semelhança de Os Pássaros. Cláudia, interpretada por Monica Vitti, toma o lugar de Ana. Substitui Ana, não só como protagonista, mas como objecto de desejo do noivo de Ana, demonstrando que o equilíbrio era ténue e já se demonstrava frágil e em perigo na relação de Ana com o noivo. O filme deixa assim em aberto todo o motivo que faz avançar as personagens por esse preambular dos sentimentos e de desejo. O espectador pode imaginar o que aconteceu a Ana mas, de facto, isso não é importante, tal como não é importante a explicação do ataque em Os Pássaros. O que é importante, em ambos os filmes, é o que isso provoca nas personagens. Parece que Antonioni escreveu uma cena em que o cadáver de Ana aparecia no mar. Essa cena chegou a ser filmada, mas ficou fora do filme. Ou seja, com essa cena o filme fecharia o que seria aparentemente a sua história (mas não é) numa narrativa mais próxima do classicismo. Ao deixar a cena de fora, Antonioni demonstra o seu domínio da narrativa clássica. Não é uma história mal contada, é uma opção. Saber que essa cena existia só reforça a força da opção. E é preciso um domínio, uma confiança e uma segurança muito grandes para fazer uma escolha dessas num filme que poderia não seguir esse caminho. Este espaço deixado em aberto deixa-nos envolvidos nas consequências de um acontecimento que, por ser enigmático, envolve o filme e os personagens ainda mais numa aura nublosa de desequilíbrio. Este aspecto não explicado, aproxima-se de um conceito abstracto. Não que o restante do filme não seja cheio de significados, mas a ausência de elementos da narrativa aproxima-nos do abstraccionismo tal como na pintura ou na música, uma vez que abre a porta à não-significação.

Importa aqui caracterizar, ou descaracterizar, aquilo que pode ser um falso abstraccionismo. O abstraccionismo no cinema não se resume ao uso de imagens pictóricas abstractas, mesmo que em movimento, coordenadas com música ou efeitos sonoros concretos, também eles abstractos se escutados “per si”. Na conjunção de um filme, na relação com o que está antes ou com o que vem depois, estas cenas ou sequências adquirem certamente um significado. No entanto, o filme de Hans Richter, Rhythmus 21 (1921), por exemplo, apresenta somente imagens puramente geométricas em movimento. O filme não tem significado narrativo, nem sentido poético ou metafórico. Não contém a possibilidade de ideias abertas ou fechadas. Nem o título ajuda a criar um significado. Simplesmente não contém nada concreto, e é esse o seu objectivo e por isso se torna abstracto. Mas é um abstraccionismo que vem da pintura e não do cinema. Bebe directamente na pintura, como se fosse apenas uma animação de movimento de um quadro, e é limitado às formas geométricas puras, de maneira a eliminar qualquer relação com a realidade, o que levaria logo à criação de significado. Neste filme de Richter não existe narrativa e talvez por isso ele se aproxime mais de pintura animada do que do cinema. Não por acaso, quase todos os cineastas que exploraram este caminho tinham como principal actividade a pintura. E aquilo que se fez posteriormente nesta linha não conseguiu nunca afastar-se daquilo que foi feito em 1921, como se este filme já esgotasse esta fórmula. Além de abstractos, estes podem ser sim, assumidamente, filmes não narrativos. Muito diferente de Os Pássaros, A Aventura ou até de filmes fragmentados e sem uma linha minimamente lógica de narrativa global, como Rosa de Areia de Margarida Cordeiro e António Reis ou Um Cão Andaluz de Salvador Dali e Luís Buñuel, que são filmes narrativos, mesmo que pervertam a narrativa. O filme de Dali e Buñuel obedece a uma lógica surrealista que procura a forma aleatória das relações que a mente estabelece nos sonhos. Mais do que um filme surrealista (e as suas imagens são claramente surrealistas com toda a influência que Dali teve na sua concepção), trata-se de um filme totalmente aberto, como o de Cordeiro e Reis. São filmes abstractos, lacunares, que nos tiram abruptamente o “chão”, mas que mantém uma ligação à realidade mesmo sem a explicar. Na linha temporal da montagem de um filme, a conexão de imagens surrealistas aparentemente desconexas torna-se em algo que cria um sentido, mesmo que esse sentido seja poético ou metafórico. Já o filme de Richter nunca chega a ter “chão”, algo concreto onde nos possamos agarrar.

Assim, será que na sua essência o cinema é uma arte primordialmente narrativa? Parece que sim. Mas, como vimos, narrativa não significa a ausência de uma obra aberta e muito menos de uma obra com contornos abstractos. Aliás, é por ser uma arte primordialmente narrativa que a manipulação da narrativa pode tornar o cinema abstracto.

O tempo no cinema é o elemento fundamental, o que não existe na pintura, e que o faz tornar-se concreto. Ou não. E por isso narrativo ou envolvido de significados vários, pois conjuga várias imagens. E é nessa conjugação que ele verdadeiramente nasce, na montagem (sendo que o plano sequência, a cena sem cortes, é sempre montada em conjunção com outras cenas ou envolve em si mesmo vários planos e enquadramentos).

Será então que para chegar ao abstraccionismo no cinema pelo percurso narrativo e a ausência de informação, precisamos de elementos da narrativa clássica, lógica, tradicional, como em Hitchcock ou Antonioni? Elementos esses de certa forma mais ausentes, mas sempre existentes em maior ou menor medida, em Um Cão Andaluz ou Rosa de Areia?

Ou melhor: precisamos primeiro de tornar um filme concreto para depois o abrir ao abstracto? São provavelmente os filmes que, durante uma grande parte da sua duração, estabelecem um universo dentro da lógica e ordem narrativa mais comum que mais estranhamento causam quando fogem a esta mesma lógica. Pensamos obviamente em David Lynch.

Lynch esvazia o sentido de outra forma. Os seus filmes têm uma história sólida, com personagens bem construídas e universos próprios. Mas Lynch vai retirar elementos da narrativa, manipulá-los, já num momento adiantado do filme, e subvertê-los de uma forma fora da lógica, tirando o conforto da percepção ao espectador que ainda não está habituado ou ainda não tem assimilada essa maneira de construção ou de desconstrução, como já hoje tem na pintura de Picasso. Vindo das artes plásticas, sabe que a obra de arte não tem de conter em si todas as chaves, aproximando-se daquilo que pode, enfim, ser uma forma de abstraccionismo ainda mais profundo no cinema pela ausência total de sentido aparente para aquilo que estamos a ver. É por isso que Lynch sempre se recusa dar uma explicação para os seus filmes. Não cabe ao autor explicar a sua obra, se não seria escusado fazê-la. Essa necessidade de a obra se explicar em si mesma vem das regras clássicas da narrativa. Estamos perante uma narrativa? Com certeza, e até bastante elaborada, mas uma outra que subverte os cânones e padrões. O que por vezes se confunde com o “não saber contar uma história”, que não é mais que uma visão redutora de quem acredita que só há uma maneira de contar e uma maneira de fazer, como também havia os que acreditavam que Picasso não saberia desenhar.

David Lynch suprime um elemento narrativo primordial e substitui-o por outro. Aliado a elementos surrealistas, isso é feito, literalmente, substituindo uma personagem por outra: tirando-a do seu contexto e trazendo uma nova para o seu lugar, vinda de outro universo narrativo, mesmo que estes universos acabem por se tocar numa complexa teia de relações, como por exemplo em Estrada Perdida. A personagem principal está encerrada numa cela de segurança numa prisão (para não haver dúvidas quanto a possível fuga, o que seria uma explicação lógica) e transforma-se numa outra personagem que não sabe nem percebe porque, nem como, foi ali parar. Nem ele, nem os guardas, nem o mundo que o rodeia. Nem nós, espectadores. Outras vezes, isso acontece tirando a personagem do seu contexto e dando-lhe nova vida, um novo universo, onde ela própria não se reconhece: o Inspector Dale Cooper de Twin Peaks, the return acaba por encarnar, ou visitar (?), outras personagens, apesar de se manter o mesmo actor e até usar a mesma roupa. Dale Cooper vagueia no universo de Dougie Jones: na sua casa, no seu trabalho e no seio da sua família (embora a consciência de si mesmo seja afectada de forma também inusitada). Atenção, não é um actor que interpreta várias personagens. É uma personagem que, através do mesmo actor, encarna diferentes pessoas. É confuso e abstracto. Lynch recusa a influência do surrealismo, mas é evidente a inspiração de Magritte não só a nível pictórico, mas também na sugestão de várias narrativas dentro de uma mesma obra, entre janelas e fundos que abrem outras paisagens e que sugerem caminhos. Os caminhos e as estradas que nos levam ao abstraccionismo.

Muitas obras deixam questões em aberto, poucas de maneira tão evidente como os filmes de Lynch, aproximando-se assim de uma forma nova e diferente. Antonioni não tem a abstracção, no sentido em que a definimos para Lynch, como objectivo. Mas passa por lá. Mas a subversão em Antonioni serve para chegar a lugares definidos. A subversão de um cinema ainda mais abstracto serve para chegar a lugares não definidos. O fecho circular da narrativa de Estrada Perdida, o final que volta ao início numa espiral sem fim, pode aproximar-se de alguns trabalhos plásticos figurativos, mas que desafiam a lógica coerente do mundo e as suas regras, como a pintura de Escher e as suas escadas impossíveis. Tal como o cinema de Lynch, ou um cinema aberto ou uma narrativa que desafia a lógica do mundo real, as escadas impossíveis de Escher são impossíveis na realidade, mas não na tela do pintor.

Quem já escreveu uma obra narrativa, seja literatura, cinema ou teatro sabe que com a imaginação que Deus nos deu (e Deus, a ter existido, é alguém cheio de imaginação), pode, facilmente, com algum trabalho e até com algum prazer, conjugar as peças de um puzzle e encaixar tudo num mundo semelhante ao nosso, explicar a sua lógica e justificar todas as acções. Mas, imaginar algo que vai além da lógica da realidade é uma forma de ascender à criação de uma forma suprema, de atingir uma proximidade com Deus que só é permitida a artistas capazes de desafiar de facto a realidade nas suas obras, movendo-se em conceitos que estão para lá do entendimento da lógica, criando um outro universo.

Há quem jure a pés juntos que Holy Motors de Leos Carax, se trata do melhor filme do século XXI (a par de Twin Peaks, the return, que é um filme, ou uma série de televisão ou de streaming, pouco importa, já passamos essa parte juvenil da discussão). O filme de Carax remete-nos para um simbolismo surrealista em que a veracidade e verosimilhança são construídas em função de um universo onírico surreal parente de Lynch, mas distinto. Várias são as lacunas na narrativa, mistérios assumidos como adquiridos e, a partir dos quais, o filme lança as suas bases e avança através de um mundo próprio e artificial, criado como um sonho. E é para uma sala de cinema cheia de espectadores que o sonho existe. Um filme é sempre um “sonho” de um realizador. Esse sonho é assumido numa revelação inicial: o filme começa mostrando, de forma poética e simbólica, que o que vamos ver é um filme que parte do sonho de Alguém. É o próprio Carax que encarna esse Alguém. É curioso que, quase no final, há uma revelação. O que por vezes, em filmes mais convencionais, vem fechar o sentido da narrativa e explicar que, afinal, o que estávamos a ver era fruto de algo que só agora nos é explicado, como o acordar do sonho/pesadelo, justificando assim a derivação que se tornava abstracta. Mas, em Holy Motors essa revelação final vai em sentido contrário. Metaforicamente (ou simbolicamente, como quiserem, é um final aberto), aquilo que nos é revelado é que o protagonista tem uma família de símios, de macacos! É surpreendente e continua a não ter uma lógica concreta e, no entanto, explica o filme ao mesmo tempo que o deixa aberto. Abre outros sentidos que não aquilo que é o concreto do filme. O concreto do filme seria apenas a estranheza ou o absurdo. Depois disso, as limousines que conversam entre si, na cena que termina o filme, revela-nos de facto o sonho, a viagem, o filme, irreal como todos, em que estamos imersos. Só que aqui as pistas claramente nos levam a essa conclusão.

Já no seu último trabalho, Annette, Carax leva tudo isto a um outro lugar. Primeiro, pelo facto de ser um musical. Nada de novo aqui, desde há muito que a convenção do musical estabelece com o espectador uma relação de verosimilhança. Mas Annette assume também o artifício através de uma forma mais ligada ao que se fazia na Novelle Vague, dizendo no início que se vai começar a fazer um filme. “So may we start, (...)The budget is large but still, it’s not enough (...) We’ve fashioned a world, a world built just for you” são linhas cantadas nos primeiros minutos em que o próprio realizador, sentado aos comandos de uma mesa de mistura, dá ordem para começar aos Sparks, os autores e intérpretes da música. A isto se soma algo inusitado: Annette é a filha do casal interpretado por Adam Driver e Marion Coutillard, e, quando vemos a cena do seu nascimento, vemos um bebé recém-nascido num contra luz escuro, filmado de longe, quando é retirado da barriga da mãe. Esse bebé parece falso, como se o realizador tivesse recuado a câmara para disfarçar o boneco mal conseguido pela direcção de arte. À medida que o filme avança e que Annette vai crescendo percebemos que não: Annette é mesmo representada por uma boneca de madeira. Todo o universo criado, embora não seja nada realista, não indicava esse nível de abstracção que pede ao espectador. Na cena final, sem justificação aparente ou lógica interna da ficção, Annette torna-se uma personagem de carne e osso, representada por uma actriz de carne e osso. No último plano, no chão, no lugar onde esteve a Annette de carne e osso, está uma boneca inanimada, caída, que tem pela mão um macaco. Numa óbvia auto-referência ao final de Holy Motors, sublinhando a metáfora ou simbolismo que passa de um filme ao outro, a obra desenvolve-se assim numa toada de abstracção, em simbolismos e metáforas permanentes desde o início, assumindo tudo isso de uma forma clara e preponderante. Este é talvez o cineasta que assume a vanguarda do cinema. Desafia as convenções clássicas, avança por caminhos novos e por desbravar, mesmo dentro de uma lógica mainstream, trabalhando no sistema, com orçamentos relativamente grandes e suficientes para colocar de pé as suas obras. O cinema assume assim um carácter que outras formas de arte já assumiram, não se vergando apenas à narrativa clássica e fechada, que é necessária à indústria. Ora para a arte avançar, caminhar noutros sentidos e explorar o novo, precisa de arriscar, de tentar terrenos movediços, de falhar e meter-se em caminhos menos seguros, que podem levar a que alguns vejam estas obras como disparatadas (uma boneca de madeira como personagem?!...”). Annette pode ou não ser conseguido, mas explora caminhos. Por isso o cinema de Leos Carax está na vanguarda. Eu diria mesmo que está muito à frente daquilo que se faz no cinema hoje.

A imagem fotográfica da boneca que representa Annette parece real como boneca e por isso é difícil de assumir como uma pessoa de carne e osso, realista. E sim, ela não é real. Mas não é a realidade o que queremos ver no cinema.

Glenn Gould plays Bach - The Goldberg Variations, BMV 998 (Zenph re-perf...

domingo, 13 de fevereiro de 2022

 

E então, que quereis?

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.

( Maiakóvski, tradução de E. Carrera Guerra )