quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A merda – Hans Magnus Enzensberger

A merda
como se ela tivesse culpa de tudo.
vejam só como suave e modesta
ela que se senta debaixo de nós!
porquê conspurcarmos então
o seu bom nome
e o emprestamos
ao presidente dos usa,
aos chuis, à guerra
e ao capitalismo?
que efémera ela é,
e aquilo a que damos o seu nome
que duradouro!
ela, a flexível,
anda na nossa boca
e referimo-nos aos exploradores.
ela, que nós esprememos,
terá agora que exprimir ainda
a nossa raiva?
não nos aliviou?
de mole consistência
e singularmente mansa
é de todas as obras do homem
provavelmente a mais pacífica.
que mal é que ela nos fez?
(Poemas Políticos)
Tradução de Almeida Faria
Publicações Dom Quixote, 1975
(original de gedichte 1971)

Die Scheisse

Immerzu höre ich von ihr reden
Als wäre sie an allem Schuld.
Seht nur, wie sanft und bescheiden
sie unter uns Platz nimmt!
Warum besudeln wir denn
ihren guten Namen
und leihen ihn
dem Präsidenten der USA,
den Bullen, dem Krieg
und dem Kapitalismus?

Wie vergänglich sie ist,
und das, was wir nach ihr nennen,
wie dauerhaft!
Sie, die Nachgiebige
führen wir auf der Zunge
und meinen die Ausbeuter.
Sie, die wir ausgedrückt haben,
soll nun auch noch ausdrücken
unsere Wut?

Hat sie uns nicht erleichtert?
Von weicher Beschaffenheit
und eigentümlich gewaltlos
ist sie von allen Werken des Menschen
vermutlich das friedlichste.
Was hat sie uns nur getan?

H.M. Enzensberger

(1964)

Via: voar fora da asa http://bit.ly/2fkfy0F

terça-feira, 15 de novembro de 2016


O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.


A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.


A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.


O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.


A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.


Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.


Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.


No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.


O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.


Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.


A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.


Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

Manoel de Barros

sábado, 12 de novembro de 2016



Leonard Cohen morreu? Nem penses, velhos desses apenas adormecem

 
Velho demais Estou velho demais
Para decorar os nomes
Dos novos assassinos
Este aqui
Parece cansado e ataente
Devotado, profissional
Ele se parece muito comigo
No tempo em que ensinava
Uma forma radical de Budismo
Para os insanos sem salvação
Em nome da velha
Mágica sagrada
Ele ordena
Que famílias sejam queimadas vivas
E crianças mutiladas
Ele provavelmente conhece
Uma ou duas de minhas canções
Todas elas
Todos que banharam suas mãos em sangue
E os mastigadores de vísceras
E escalpeladores
Todos eles dançaram
Ao som dos Beatles
Todos adoraram a Bob Dylan
Prezados amigos
Poucos de nós restaram
Silenciados
Tremendo sem parar
Escondidos no  meio do sangue –
Fanáticos chocados
Enquanto testemunhamos uns aos outros
A velha atrocidade
A velha e obsoleta atrocidade
Que levou para longe
O apetite ardoroso do coração
E acanhou a evolução
E vomitou preces

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

“So Long Marianne” (1967)

Come over to the window, my little darling,
I’d like to try to read your palm.
I used to think I was some kind of Gypsy boy
before I let you take me home.
Now so long, Marianne, it’s time that we began
to laugh and cry and cry and laugh about it all again.
Well you know that I love to live with you,
but you make me forget so very much.
I forget to pray for the angels
and then the angels forget to pray for us.
Now so long, Marianne, it’s time that we began …
We met when we were almost young
deep in the green lilac park.
You held on to me like I was a crucifix,
as we went kneeling through the dark.
Oh so long, Marianne, it’s time that we began …
Your letters they all say that you’re beside me now.
Then why do I feel alone?
I’m standing on a ledge and your fine spider web
is fastening my ankle to a stone.
Now so long, Marianne, it’s time that we began …
For now I need your hidden love.
I’m cold as a new razor blade.
You left when I told you I was curious,
I never said that I was brave.
Oh so long, Marianne, it’s time that we began …
Oh, you are really such a pretty one.
I see you’ve gone and changed your name again.
And just when I climbed this whole mountainside,
to wash my eyelids in the rain!
Oh so long, Marianne, it’s time that we began …

So long, Leonard Cohen!

So Long, Leonard Cohen

quinta-feira, 3 de novembro de 2016


escrever

Pop xunga


Eu não gosto do que a Joana Vasconcelos (JV) produz actualmente. Mas isso não importa nada porque o gosto não pode ser um instrumento de apreciação e definição da política cultural.
A produção da artista standard é uma repetição em ciclo de uma receita estafada que começou por ser inovadora por pegar em tradições estéticas portuguesas e assumir a sua “piroseira” intrínseca numa abordagem construída com novos materiais, até com alguma audácia plástica. Hoje em dia, JV é uma empresária da arte, trabalha por encomenda numa espécie de produção em série em que a criatividade é apenas uma lembrança que jaz no seu historial.
Mas isso não importa nada porque o gosto não pode ser um critério político. 
Independentemente do que achamos, as elites ou as massas, o indivíduo ou o colectivo, a avaliação da política cultural não pode passar pela crítica do conteúdo artístico, pelo simples facto de que a produção artística é uma cadeia criativa que interliga todos os pontos de formas mais ou menos perceptíveis: a história da Arte é, ainda assim, História e, como tal, está sujeita precisamente às mesmas leis que a História. 
Portanto, o que nos cabe julgar não é a validade da produção artística, nem mesmo da mensagem ou inexistência dela. O que nos cabe julgar é se a política de cultura em Portugal e em Lisboa é a adequada a cumprir os objectivos constitucionais da “liberdade de criação e fruição artística e cultural”. Ou seja, a contratação sistemática de artistas, os mesmos artistas, principalmente dos que produzem uma arte despida de incómodos, de inquietação, aqueles que produzem uma arte da conservação do status quo, cumpre os objectivos máximos da política cultural em Portugal ou, pelo contrário, confrontam-se com esses objectivos. 
A adopção de estéticas de regime, de artistas de regime, a consagração de “gostos” avalizados pelo poder político cumpre dois papéis claros: promove a produção do artista e a estética neutralizante e, ao mesmo tempo, assegura a projecção do comprador na perspectiva da publicidade. 
Não está em causa a virtude do Pop Galo nem de JV. O que está em causa é saber se o nosso papel – do Estado, das autarquias e mesmo da Comunicação Social e dos programadores artísticos – é dedicar importantes fatias do orçamento público e privado à alimentação de um mercado da arte e de uma cadeia de exploração capitalista com base na reprodução de estéticas entorpecedoras ou, pelo contrário, é assegurar que há espaço para toda a produção artística, sem sujeições, sem crivo político, estético e, muito menos, de gosto. 
O papel dos agentes de política cultural não pode ignorar a produção artística que corresponde à hegemonia, claro. Mas não pode, nem deve, “iconizar”, nem “reduzir” a produção a um cânone, seja ele qual for, sob pena de estar a usar a arte como mero broche na lapela, como adorno da classe que domina as restantes ou como instrumento de domínio dessa classe sobre as restantes. 
Os ícones da arte, na minha opinião, são os milhares que pintam paredes com latas de tinta às escondidas da polícia, são os que fazem teatro sem dinheiro e escrevem livros sabendo que só os amigos os lerão, são os que ensaiam a banda na garagem e aspiram tocar para uma centena, os que pintam, dançam, esculpem, vencendo as condições sociais em que vivem. Se a JV recebesse milhões para levar um cacilheiro não sei aonde, mas estes operários das artes pudessem trabalhar em condições iguais, eu não teria nada a dizer. Mas enquanto JV for simultaneamente o espelho e o objecto que simbolizam a decadência de uma burguesia desvairada, prefirirei sempre os Popxula ao Pop Galo.
Via: Manifesto 74 http://bit.ly/2fiovGm