quinta-feira, 3 de novembro de 2016


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Pop xunga


Eu não gosto do que a Joana Vasconcelos (JV) produz actualmente. Mas isso não importa nada porque o gosto não pode ser um instrumento de apreciação e definição da política cultural.
A produção da artista standard é uma repetição em ciclo de uma receita estafada que começou por ser inovadora por pegar em tradições estéticas portuguesas e assumir a sua “piroseira” intrínseca numa abordagem construída com novos materiais, até com alguma audácia plástica. Hoje em dia, JV é uma empresária da arte, trabalha por encomenda numa espécie de produção em série em que a criatividade é apenas uma lembrança que jaz no seu historial.
Mas isso não importa nada porque o gosto não pode ser um critério político. 
Independentemente do que achamos, as elites ou as massas, o indivíduo ou o colectivo, a avaliação da política cultural não pode passar pela crítica do conteúdo artístico, pelo simples facto de que a produção artística é uma cadeia criativa que interliga todos os pontos de formas mais ou menos perceptíveis: a história da Arte é, ainda assim, História e, como tal, está sujeita precisamente às mesmas leis que a História. 
Portanto, o que nos cabe julgar não é a validade da produção artística, nem mesmo da mensagem ou inexistência dela. O que nos cabe julgar é se a política de cultura em Portugal e em Lisboa é a adequada a cumprir os objectivos constitucionais da “liberdade de criação e fruição artística e cultural”. Ou seja, a contratação sistemática de artistas, os mesmos artistas, principalmente dos que produzem uma arte despida de incómodos, de inquietação, aqueles que produzem uma arte da conservação do status quo, cumpre os objectivos máximos da política cultural em Portugal ou, pelo contrário, confrontam-se com esses objectivos. 
A adopção de estéticas de regime, de artistas de regime, a consagração de “gostos” avalizados pelo poder político cumpre dois papéis claros: promove a produção do artista e a estética neutralizante e, ao mesmo tempo, assegura a projecção do comprador na perspectiva da publicidade. 
Não está em causa a virtude do Pop Galo nem de JV. O que está em causa é saber se o nosso papel – do Estado, das autarquias e mesmo da Comunicação Social e dos programadores artísticos – é dedicar importantes fatias do orçamento público e privado à alimentação de um mercado da arte e de uma cadeia de exploração capitalista com base na reprodução de estéticas entorpecedoras ou, pelo contrário, é assegurar que há espaço para toda a produção artística, sem sujeições, sem crivo político, estético e, muito menos, de gosto. 
O papel dos agentes de política cultural não pode ignorar a produção artística que corresponde à hegemonia, claro. Mas não pode, nem deve, “iconizar”, nem “reduzir” a produção a um cânone, seja ele qual for, sob pena de estar a usar a arte como mero broche na lapela, como adorno da classe que domina as restantes ou como instrumento de domínio dessa classe sobre as restantes. 
Os ícones da arte, na minha opinião, são os milhares que pintam paredes com latas de tinta às escondidas da polícia, são os que fazem teatro sem dinheiro e escrevem livros sabendo que só os amigos os lerão, são os que ensaiam a banda na garagem e aspiram tocar para uma centena, os que pintam, dançam, esculpem, vencendo as condições sociais em que vivem. Se a JV recebesse milhões para levar um cacilheiro não sei aonde, mas estes operários das artes pudessem trabalhar em condições iguais, eu não teria nada a dizer. Mas enquanto JV for simultaneamente o espelho e o objecto que simbolizam a decadência de uma burguesia desvairada, prefirirei sempre os Popxula ao Pop Galo.
Via: Manifesto 74 http://bit.ly/2fiovGm

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