quinta-feira, 24 de março de 2016

FÁBULAS



FÁBULAS – O Sr. Deputado

Morreu na cama. Hotel de 5 estrelas, suite de luxo. Toda a comunicação social relatou o funesto acontecimento. “Morreu o Deputado Rodoberto M. Albuquerque e Sá”. As televisões omitiram o contexto. Na verdade, o coração do Sr. Deputado não resistiu ao peso-pluma de uma “acompanhante” (belíssima, dizem as más-línguas) sobre o tórax. As redes sociais encarregaram-se desta parte, com admiradores e adversários a digladiarem-se com aquele calor espontâneo com que alguns austrolopitecos comunicam entre si.
A vida do morto estava muito acima de disputas caseiras. O seu funeral foi grandioso. Centenas de curiosos aplaudiram a passagem solene do féretro. Ilustres personalidades públicas, entrevistadas no local, foram unânimes na firme convicção de que os despojos deveriam ser depositados no Panteão Nacional. A proposta iria ser discutida “atempadamente” (sic) na Assembleia da República.
Rodoberto Maria Albuquerque e Sá nascera num palacete setecentista no ano em que o general Franco invadiu a Espanha. Descendia de fidalgos cuja origem se perdia na alcova adúltera de Dom Sancho I. Oitavo filho, por ordem cronológica, bem cedo deu sinais de que a escola não era a sua vocação, excepto o pátio do recreio, embora todos os filhos do rico proprietário Afonso Maria Albuquerque e Sá gozassem dos favores especiais dos mestres. O pai finou-se mal fizera cinco décadas, a herança foi repartida pelos herdeiros, cabendo ao primogénito a maior fatia do bolo. Rodoberto, vinte e um anos feitos, vendeu o seu quinhão e despachou-o em menos de um fósforo em estadias faustosas no Palace Hotel de Mónaco e nos cabarés de Paris.
A mãe foi firme: “O menino gozou? Agora faça-se à vida!”. E Rodoberto fez a mala e rumou para Moçambique, onde um tio era dono de uma infinita plantação de coqueiros. Durante uns tempos ajudou na administração do território, dormindo a sesta com uma preta de cada lado da rede, repousando das noitadas na cidade da Beira. O tio despachou-o sem mais aquelas para Lourenço Marques repetindo as palavras da irmã: “Menino, faça-se à vida!”. E Rodoberto fez-se homem na cidade que haveria de tornar-se uma das mais belas do sul de África. Empregou-se num armazém que vendia a retalho os vinhos de zurrapa que a Metrópole exportava. Apanhado em flagrante a roubar a caixa foi trabalhar para uma pequena fábrica cervejeira. O produto era muito mais cobiçado que o carrascão. Rodoberto demonstrou finalmente todos os seus dotes de empresário, a fábrica converteu-se num empório, a tal ponto que o tio de Nampula já o elogiava aos amigos terra tenentes “Temos homem!”. Especialista em impingir a cerveja nas aldeias e colonatos, Rodoberto enriqueceu. Escolheu com visão de contabilista uma senhora muito séria e excelente herdeira de uma importante loja de fazendas, casou e fez dois filhos, um dos quais morreria ao volante de um Maserati na estrada do Bilene, e o outro ingressou na Escola Militar. O presidente da Câmara apresentou Rodoberto ao governador da colónia que o nomeou assessor para os assuntos económicos. Na década de cinquenta com a política de colonização acelerada de Salazar, Rodoberto alugou um navio mais velho que Matusalém e protagonizou uma das façanhas gloriosas desse período áureo: arregimentou milhares de emigrantes, fugidos da fome da metrópole, e arremessou-os para os confins da selva, pintada em folhetos atractivos como o novo El Dorado. Foi condecorado várias vezes com pompa e circunstância pelo governador em pessoa, classificado para todos os efeitos como “um homem leal ao Regime” e o chefe local da Pide passou a tratá-lo com o respeito que a máfia só dedica aos seus. Influente na política e nos negócios de monopólio, fluente na língua inglesa, depressa encontrou nos governantes sul-africanos do apartheid protecção para um futuro que se adivinhava nebuloso. Foi por altura em que eu estudava penosamente para os exames do 7º ano liceal no café Nicola que conheci Rodoberto: um empregado de mesa negro veio comunicar-me, com servilismo fingido que “O Senhor Rodoberto está a chamar!”. E estava. Fazia-me largos gestos da mesa dos fundos. Perguntou-me pela minha mãe, quis saber como corriam os estudos, prestou-se a ajudar-me se viesse a procurar emprego. Nunca mais o vi em África. Viajei para a universidade do Porto um mês depois.
O filho militar, ascendera a oficial superior e foi um dos artífices da arte de eliminar aldeias rebeldes do mapa. Na cidade da Beira, onde tecia a teia com que mantinha capturadas as boas-consciências que traficavam com o Maláui e a África do Sul, Rodoberto caiu gravemente doente. Recomposto ao fim de um mês de internamento, assustado e provisoriamente humilde, buscou a bênção salvífica do Bispo. Este escusou-se, porém, pois que o conhecia de ginjeira, e reencaminhou-o para as mãos de um apagado capelão militar. Quando a guerra se revelava perdida, ou pelo menos num impasse, Rodoberto afastou-se ostensivamente das ligações perigosas com a Pide e os sul-africanos e começou a rondar os negros que presumia serem, ou virem a ser, quadros importantes da Frelimo. Aquando da independência Rodoberto foi, portanto, apresentado num comício público como “um amigo dos africanos”. Na realidade dispunha de conhecimentos inigualáveis na produção de um produto sem cor política, embora a cerveja fosse loira.
Sucedida essa aurora luminosa que foi o dia 25 de Abril, Rodoberto alinhou sem hesitações na corte de Spínola, participou nas tentativas de golpe de estado do general, nos atentados terroristas do MDLP, e aguardou bem protegido em Espanha o desenrolar dos acontecimentos do 25 de Novembro. Regressou quando a tempestade passou e limpou o nome com uma amnistia oportuna.
Tacteou com a ronha dos gatos o poder que emergia do Partido Socialista e filiou-se sem dar muito nas vistas. A discrição cautelosa passou-lhe depressa. Em eleições autárquicas candidata-se pelo PS à vice-presidência da Câmara de uma importante cidade do Norte e dá um contributo decisivo à vitória, prometendo empregos e habitação social aos mais desfavorecidos. Quatro anos depois é acusado de peculato, porém um escritório poderoso de advogados de Lisboa obtém-lhe a absolvição com facilidade. Aproxima-se a mudança de turno: a Direita conquista o poder, Rodoberto bate com a porta na cara dos seus confrades socialistas e alista-se nas hostes aguerridas de Cavaco Silva. Entretanto, resolve subir mais um degrau: ingressa numa universidade privada e alcança em ano e meio os graus de doutor e mestre. Escolhido de imediato para a lista da capital ascende a deputado. No decurso de quinze anos é sucessivamente eleito, sem que alguma vez houvesse discursado. Faltava regularmente, viajava para o estrangeiro regularmente, jantava no Gambrinus regularmente. Reencontrei Rodoberto num desses jantares. Apresentado como seu parente, mostrou lembrar-se de mim perfeitamente, acolheu-me com aquela simpatia irradiante que lhe permitia ter amigos em todos os quadrantes. Ou quase. Convidou-me, entre dois uísques, a fazer parte do lóbi que chefiava no parlamento; declinei, não por escrúpulos mas por via da profissão que eu abraçara com gosto ou sem ele; arrependo-me hoje amargamente, pois gozaria de uma reforma muito confortável, o que não é o caso vertente.
Neste ano em que escrevo Rodoberto estava há muito reformado da política parlamentar.  Uma pensão gorda, direito a estadias gratuitas nos melhores hotéis de Xangai e Luanda em recompensa pelos serviços prestados nas privatizações, uma conta choruda na Suíça, quarto exclusivo no resort Conrad Algarve, um filho no estado-maior da NATO, um neto assessor do Primeiro-Ministro, uma jovem amante jornalista da televisão e outra jovem intérprete no Parlamento Europeu, que lhe deviam inúmeros favores. Enviuvara há trinta anos, o que lhe permitia usufruir da tolerância das elites lisbonenses.
O corpo do Sr. Deputado Rodoberto Maria Albuquerque e Sá, descendente de um filho bastardo de Dom Sancho I, “Merece o Panteão Nacional”, lê-se em título de caixa-alta num tablóide de referência. “ O país inteiro espera que se faça justiça a quem tão altos serviços prestou à Pátria”. Cavaco Silva, entrevistado pela RTP1, não disse que sim nem que não:” Cabe à Assembleia da República e aproveito para transmitir as minhas mais sinceras condolências ao filho do ilustre português Rodoberto Maria Albuquerque e Sá, que desempenha as mais elevadas responsabilidades na Aliança de que Portugal faz orgulhosamente parte”.
P.S. Os nomes são fictícios pois que o Sr. Deputado é meu parente por via do seu casamento com uma tia minha. Pedimos desculpa aos vivos se acaso ferimos susceptibilidades sem que fosse esse, de modo nenhum, o nosso propósito.
NOZES PIRES


quinta-feira, 10 de março de 2016

Ensaios- Crítica da Razão Consensual 1



A dialéctica da Natureza em discussão

 O livro  Dialéctica da Natureza, de F. Engels, é constituído por um conjunto de textos escritos para responder a situações políticas que exigiam a sua intervenção imediata. Imperativos políticos. Após a morte do seu grande amigo, Marx, Engels fica sozinho nesse combate de defender o movimento social-democrata alemão das tergiversações. O marxismo é hegemónico, adotado com sua ideologia pela II Internacional, o prestígio de Engels é enorme. Na realidade, porém, o marxismo ainda não se completara com uma ideologia comunista. Circulavam teorias heterogéneas no Movimento socialista, livros que pretendiam completar, corrigir ou mesmo atacar a teoria de Marx, teorias medíocres apresentadas como a última palavra sobre o socialismo. O Capital, de Marx, entretanto em publicação, não supre as necessidades teóricas do Movimento, pela dificuldade de leitura. Cientistas e outros menos divulgam apreciações que colidem com as convicções filosóficas de Engels. O Anti-Dühring , de Engels, é uma peça fundamental no seu combate contra o que entendeu serem teorias políticas perigosas e erróneas nos planos filosófico e científico: o empirismo, o naturalismo, o materialismo grosseiro. Teses que conduziam a desuniões e desviavam o Movimento das suas finalidades revolucionárias.
Contra os “naturalismos” (expressão de Engels) é preciso completar o edifício da filosofia marxiana. Com quê? Com uma filosofia da natureza. Na Dialética da Natureza Engels combate o método “metafísico”, opondo-lhe o método dialético, o qual é comprovado pelas ciências, ele mesmo é o método científico por excelência. A filosofia é se for metafísica ou simplesmente desnecessária quando a ciência experimental é preferível. Da filosofia guarda-se o que ela possui de mais valioso: o método dialético, aplicado a todas as áreas do saber, método que reflete as propriedades objetivas do mundo físico e social. O marxismo (expressão que Engels não utiliza), isto é o materialismo histórico e dialético, não se circunscreve às ciências sociais, à política, abrange as ciências da natureza. Trata-se, portanto, de demonstrar que a dialéctica é também natural, é a natureza na sua totalidade, rege-se por leis também dialéticas (Engels não nega evidentemente que outras leis expliquem o movimento dos corpos). Recusa e critica o uso do termo “forças”, é mais adequado falar-se em “energia”. Matéria equivale a massa e energia. A essência da Matéria é o movimento ou Energia. Esta manifesta-se de diversos modos. A Energia é indestrutível, 1ª Lei da Termodinâmica.
A filosofia marxista é o materialismo dialético. O segundo termo – dialética – faz toda a diferença com os filósofos e cientistas que são materialistas, com mais ou menos consciência disso, porém recusam o socialismo. A meu ver ser materialista não é raro no domínio das ciências, e menos raro ainda quando não se filosofa sobre isso, uma espécie de materialismo espontâneo (G. Bachelard). Porque não basta ser-se materialista para consequentemente se ficar de mal com o capitalismo… Além disso, não é o próprio marxismo variegado?
Um outro problema: F. Engels abandonou a filosofia? Toma ou não posições contraditórias, por um lado, na Dialética da Natureza e, por outro, em L. Feuerbach e o Fim da Filosofia clássica alemã? Reserva para a filosofia apenas a lógica, isto é a dialéctica, ficando tudo o mais a cargo das ciências “positivas”? Ou há nas duas primeiras obras elementos para uma ontologia marxista? E se a filosofia se confinar à lógica, como parece defender na Dialética da Natureza, para quem fica a ética e o direito que Engels, afinal, tão bem analisa no Anti-Dühring ? São estas áreas tarefa que cabe à ciência? Todavia, a ética, estética, política, não são ciências particulares…
Dialética da Natureza – Desde 1873 que Engels projetava escrever uma obra sobre a dialética da natureza (conforme correspondência com Marx), mas desde 1858 o seu interesse manifestava-se quanto a um estudo aprofundado das ciências naturais. O propósito que o orientava era a crítica do “método metafísico” e a exposição das categorias do método dialético. A “dialética racional” do materialismo filosófico, “despojada de todo o misticismo converte-se em uma necessidade absoluta para as ciências naturais (manuscritos da Dialética da Natureza, esboço com o título “Büchner”). Em 1873 projetava escrever, antes do Anti-Dühring , um “Anti-Büchner”, materialista vulgar. Depois de publicar a 1ª edição do seu Anti-Dühring  (1878) Engels trabalha na Dialética da Natureza. A morte de Marx em 1883, a imperiosa edição dos tomos segundo e terceiro de O Capital, as tarefas políticas na II Internacional, impedem que ele organize os materiais. A sua morte em 1895, impede de vez a publicação. Esquecidos os manuscritos, a obra só sai em Moscovo em 1925, a versão alemã e russa. Nova edição, amplamente corrigida, em 1927, em alemão. Demasiado tardia: a enorme projeção e prestígio de Engels desde o desaparecimento de Marx (muito maior do que do próprio Marx) viria a esmorecer desde 1914. A Dialética da Natureza é, pois, uma coleção de manuscritos, alguns inacabados, versando variados assuntos das ciências naturais: Formas de movimento da matéria; Classificação das ciências; Matemáticas; Mecânica e Astronomia; Física; Química; Biologia, e capítulos de grande importância sobre Dialética. Nada do que afirma sobre temas das ciências (as marés, o calor, a eletricidade, etc.) perdeu interesse ou é erróneo; apresenta-nos intuições penetrantes sobre as teorias mais avançadas; defende o papel pioneiro dos filósofos na explicação da natureza, nomeadamente Kant; desenvolve um estudo genial sobre o papel do trabalho que fez escola até hoje (“ O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”), no qual G. Lukács se inspirou para o seu último trabalho “Para uma ontologia do ser social” (1971), pese embora o facto de sempre haver preterido a Dialética da Natureza... Embora não possamos tratar aqui de toda a produção de Engels, é mister dizer que o seu enorme génio revela-se no carácter pioneiro das suas obras: A origem da família, da propriedade privada e do Estado, para citar só esta. O Anti-Dühring é outra obra notabilíssima, com varias edições ainda em vida de Engels. Na Primeira Parte trata da filosofia da natureza; da moral e do direito (Liberdade, igualdade e necessidade); da dialética. Nas duas restantes trata da teoria da violência; das descobertas de Marx (Teoria do valor, capital e mais-valia, etc.); do socialismo (produção, distribuição, Estado, família, educação). A sua leitura acompanhada é uma tarefa saudável, sobretudo para os mais novos.
No “Prefácio” à 2ª edição do Anti-Dühring e no chamado “Velho Prefácio” coligido para a Dialética da Natureza (título com que foi editado pela primeira vez em russo) Engels estende as leis da dialética à natureza, com o propósito de não deixar nada de fora do materialismo histórico. Uma filosofia geral, uma ontologia para todos os efeitos. No capítulo “Dialética”, (manuscrito da Dialética da Natureza), expõe três leis gerais: lei da mudança da quantidade em qualidade, e vice-versa; lei da penetração dos contrários; lei da negação da negação. Refere que as três leis haviam sido desenvolvidas por Hegel, “à sua maneira idealista, como simples leis do pensamento”. Estaline não incluiu a “lei da negação da negação” nas leis da dialética (O Materialismo Histórico e o Materialismo Dialéctico, Moscovo, 1951), mas cita largamente Engels no respeitante às “mudanças qualitativas” que “não são graduais, mas rápidas, bruscas e se verificam por saltos” o que permite conceber a natureza e a sociedade como “um desenvolvimento que vai do simples ao complexo, do inferior ao superior”. Estaline clarifica posições no âmbito das disputas marxistas que separam a filosofia soviética do chamado “Marxismo Ocidental”, sobretudo na admissão, ou não, de uma filosofia da natureza. Ora, em Engels, a” lei da negação da negação” (capitulo do Anti-Dühring) é a principal lei do desenvolvimento, enquanto para Estaline era a da “mudança da quantidade em qualidade”. Curiosamente o “marxismo ocidental” pensava aqui como o seu arqui-inimigo…
V.I. Lenine defende teses concordantes com as de Engels na Dialética da Natureza, no seu livro Materialismo e Empiriocriticismo, veja-se, por exemplo, o valor cimeiro que atribuem ambos à categoria de Movimento (“auto-movimento, insiste Lenine). Ora, o livro de Lenine é de 1909, não conheceu, portanto, a Dialética da Natureza! No seu texto Karl Marx (publicado pela primeira vez em 1915) cita Engels do Anti-Dühring com comentários elucidativos: “A natureza é a comprovação da dialética, e devemos dizer que as ciências modernas da natureza nos forneceram materiais extremamente numerosos”( e isto foi escrito antes da descoberta do rádio, dos eletrões, da transformação dos elementos, etc.!) “cujo volume aumenta dia a dia, provando assim que, em última análise, na natureza as coisas se passam dialeticamente, e não metafisicamente”.
A Dialética da Natureza, sobretudo no capítulo que referi acima, provocou controvérsias que ainda não encontraram consenso. É simples metafísica? Pura especulação abstrata sobre as “leis do ser”? A minha posição já apresentei-a no início: não faz sentido algum que categorias centrais como o desenvolvimento perpétuo e descontínuo que exprime uma história de transformações umas vezes lentas e graduais, outras, bruscas e profundas, apenas se aplique às sociedades e não à natureza, o “movimento, no sentido geral da palavra, concebido como uma modalidade ou um atributo da matéria, abarca todos e cada um das mudanças e processos que se operam no universo, desde o simples deslocação de lugar até ao pensamento”( Dialética da Natureza, Formas fundamentais do Movimento”). “A terra devêm, desenvolve-se e perece” (idem). A Matéria (Energia) é eterna. “Pela mesma férrea necessidade com que um dia desaparecerá da face da terra a sua floração mais elevada, o espírito pensante, voltará a brotar em outro lugar e em outro tempo” (Introdução). Apenas coloco sérias reservas à aplicação, por alguns marxistas, da fórmula redutora “tese-antítese-síntese” como lei da natureza. Julgo ser mais adequada a expressão “negação da negação”, pois não me suscita dúvidas e tenho-o como um facto teórico e empírico que a natureza é atravessada por contradições (forças contrárias que ora se equilibram, ora destroem); se a negatividade é uma categoria instante da dialética é de admitir que a superação também se aplique. A Vida foi quase exterminada várias vezes na terra; todavia, superou a catástrofe….O Homo sapiens é uma autêntica superação das diversas etapas e espécies que o antecederam e se extinguiram. As estrelas que pareceriam tudo destruir, forneceram, porém, os ingredientes necessários ao surgimento de planetas habitáveis e da Vida. O que rejeito é a possibilidade de contaminação dessa lei da dialética com a crença teleológica de que tudo se encaminha para uma finalidade superlativa (e boa necessariamente). As catástrofes existiram e continuarão a existir tanto nas sociedades como no universo. Sem muitas delas não existiríamos. Substituiria também a fórmula “desenvolvimento do inferior para o superior” pela expressão “do mais simples ao complexo”, quando falamos de Natureza, pois que me parece que a ideia de “superioridade” é claramente antropomórfica.
Estão ultrapassadas as situações históricas que conduziram às acusações mútuas do “marxismo ocidental” e do “marxismo estalinista”. Mas não está resolvida a querela sim ou não a uma  filosofia da natureza. Se defendermos uma ontologia marxiana (com o contributo inescapável de Engels com quem Marx trocou ideias e acordos) não vejo razão para que essa ontologia não abarque a Natureza. Se o materialismo de Marx- Engels é dialético, e é isso que o distingue de todos os materialismos antigos ou modernos, havemos de admitir que a ontologia é centralmente dialéctica. Não apenas um método construído pela mente, mas um processo de explicação cujas categorias refletem as características dos mundos natural e social; por isso é que são certeiras. É necessário que pensemos que as categorias que Marx e Engels usaram para a construção de uma visão do mundo e da vida foram revolucionárias não apenas na Economia, mas inclusivamente para a Natureza e anteciparam-se, no plano da teoria, a importantes correções dos postulados científicos. É certo que determinados avanços da Ciência ( a revolução operada por Einstein, a física quântica, etc.) obrigariam Engels a corrigir alguns comentários sobre aspetos específicos da Matéria. Não é isso que importa. Não surgiu nada, nem poderá alguma vez surgir suponho, que desminta as afirmações de Engels (e de Lenine) : a unidade material do mundo, o auto-movimento como propriedade essencial da Matéria (Natureza e Vida), as possibilidades de criação do Novo, do mais simples ao mais complexo. A compreensão de que tudo possui uma história, surge e desenvolve-se cada coisa em conexão com outras, numa unidade que vai do mais particular ao mais geral ( a que podemos chamar, aqui, de síntese, sem reservas, união de contrários (Lenine), um processo de desenvolvimento e transformação. Em que é que as ideias de Engels sobre a natureza (e muito provavelmente de Marx) contrariaram a lei darwiniana da seleção natural das espécies, se ele próprio enalteceu a revolução operada pelos livros de C. Darwin, apontando-lhe,contudo, com clarividência a “falta” deste no que respeitava às “causas”? As ideias de desenvolvimento e evolução ( que souberam recolher da filosofia de Hegel), que Marx e Engels formularam para as sociedades com muita antecedência sobre os que se lhe seguiram, constituem um grandioso património da cultura e da ciência. Engels estendeu-as à Natureza (com o acordo de Marx), apoiado na obra de Darwin e nas descobertas da física, química, da antropologia e da geologia. Mas soube contrariar o darwinismo com o conceito de trabalho entre os macacos e os seres humanos (Dialética da Natureza) importantíssima correção às ideias que se divulgavam sobre a evolução (o evolucionismo).  É preciso que a ciência prática se torne uma ciência humana, sem separação entre a vida e a ciência. (Marx, Manuscritos económico e filosóficos).As práticas científicas não estão acima dos interesses da humanidade, do concreto viver humano, da sua emancipação, nem acima dos valores nem da luta de classes. Embora elas sejam autónomas em certo sentido e o cientista teórico não tenha que ser apenas um técnico ao serviço das multinacionais. Em Engels não encontramos é claro uma defesa da ecologia, mas não encontramos a defesa da manipulação destrutiva da natureza, encontramos um vivo interesse pelas teorias da ciência, pelas matemáticas e física, sem lhes impor como único objetivo o da produção, ainda que ele seja fundamental.  Todas as ideias podem ser corrigidas, é mesmo isso o que tem de bom a ciência (ao contrário das metafísicas dogmáticas e das religiões). O darwinismo, por exemplo, não permanece como verdade intocável, nem outro tanto podia suceder com as teses formuladas por Engels.
É o materialismo dialético uma filosofia? Para os jovens Marx e Engels foi com certeza, como se comprova largamente em A Sagrada Família, A Ideologia Alemã, Os manuscritos económico-filosóficos, etc. A questão poe-se na maturidade: deve continuar a ser uma filosofia ou uma ciência, na altura da elaboração final e publicação do 1º tomo de O Capital( obra da ciencia) e dos estudos das ciências naturais por Engels. No Prefácio à segunda edição do Anti-Duhring e no chamado Velho Prefácio da Dialética da Natureza, tece considerações que vamos citar:
“ A investigação moderna da Natureza, a única que levou a um desenvolvimento científico, sistemático, omnilateral” em permanente desenvolvimento desde o Renascimento não impediu, porém, que uma “visão antiquada “, isto é “determinista”, “mecanicista”, dominasse a visão até à primeira metade do século dezanove “e ainda hoje, quanto ao principal é ensinada nas escolas” (Introdução à Dialéctica da Natureza). Falta uma “visão geral” para o qual a filosofia alemã colaborou ( Kant). Falta, embora existam por todo o lado elementos que apontam para a unidade das ciências, união que corresponda, afinal, à unidade da natureza, do mundo e da vida. Faz falta uma teoria que permita unir as ciências na sua complementaridade, fazem falta despectivas teóricas, pois “Se os teóricos são semi-sábios no domínio da ciência da Natureza, os naturalistas modernos são-no, efetivamente, outro tanto no domínio da teoria, no domínio daquilo que até aqui era designado por filosofia”. “A investigação empírica da Natureza acumulou uma tão enorme massa de matéria positiva de conhecimento que a necessidade de a ordenar sistematicamente e segundo a sua conexão interna se tornou pura e simplesmente irrecusável. Do mesmo modo irrecusável se tornou trazer os domínios singulares do conhecimento à sua correta conexão entre si. Mas, para isso, a ciência da Natureza transporta-se para o domínio teórico e aqui os métodos da experiência ( Empirie) fracassam; aqui, só o pensar teórico pode ajudar.”
É neste passo que alguma dúvida surge.
É o materialismo dialético uma filosofia ou uma ciência? Abandona-se a filosofia da Natureza a favor de uma Teoria geral das ciências (a criação de conceitos específicos e gerais que devem ir mais além dos puros dados empíricos) cujo centro é a sua compreensão dialética? Sobra para a filosofia apenas o método dialético, isto é, “as leis do pensamento”?

O empirismo desdenha da teoria, o método metafísico congela os conceitos para sempre e não vê como tudo muda : “O pensar teórico de cada época – portanto, também o da nossa – é um produto histórico”. A ciência do pensar é, portanto, tal como qualquer outra, uma ciência histórica. É, portanto, uma ciência, “a ciência do desenvolvimento histórico do pensar humano”, isto é a dialética. A dialética é “para a ciência da Natureza hodierna, a forma de pensar mais importante, porque só ela fornece o análogo e, por isso, o método de explicação para os processos de desenvolvimento que ocorrem na Natureza, para as conexões em geral, para as transições de um domínio de investigação a outro” (Velho Prefácio). “O caráter dialético dos processos da Natureza”. É necessário “chegar do entendimento do singular ao entendimento do todo, à penetração da conexão universal”, entender a Natureza como os filósofos gregos a intuíram: “como todo”.
Parece-me lógica a afirmação Engels: sendo a natureza um todo, em conexão universal, por essa razão as ciências se devem unir e admitir o que é inevitável: o método dialético que, afinal, exprime ou reflete a dialeticidade de todos os fenómenos. Somente desde modo se constrói e assume uma Teoria geral (Teoria da conexão dialética universal), para além das teorias específicas a cada ciência em particular. Ora, visto que o método dialético é científico, essa Teoria Geral é necessariamente científica.
Essa Teoria não é um sistema filosófico, porque “Um sistema da natureza e da história que abarca tudo e contém tudo, está em contradição com as leis fundamentais do pensamento dialético” ( Anti-Dühring, Capítulo “Noções gerais”), diz Engels para classificar o sistema hegeliano como “um aborto colossal, o último do género”, sistema que pretendia ser a expressão de uma verdade absoluta. “o conhecimento sistemático do conjunto do mundo exterior” não significa impor um mundivisão fechada, a verdade absoluta, o fim da história.
O materialismo dialético “não implica nenhuma filosofia sobreposta às outras ciências” (idem).
E eis que avança com a afirmação mais controversa: “Desde o momento em que se pede a cada ciência que dê conta da sua posição no conjunto total das coisas e do conhecimento das coisas, torna-se supérflua uma ciência especial do conjunto: o que subsiste de toda a antiga filosofia e conserva uma existência própria é a teoria do pensamento e suas leis – a lógica formal e a dialética. – Todo o resto se resolve na ciência positiva da natureza e da história”.
Eis, pois, aqui, o motivo da intensa controvérsia que atravessou os marxismos do século passado.
A Introdução à Dialética da Natureza e o “Antigo Prefácio ao Anti-Dühring sobre a Dialética, são textos dos anos 75 a 78, Marx teve conhecimento deles e não se opôs; Engels fez disso referência em mais do que um texto (no Anti-Dühring e em carta a Marx; Em 24 de maio de 1876, Engels escreveu a Marx, dizendo que não havia motivos para iniciar uma campanha contra a propagação das ideias de Dühring. Marx respondeu no dia seguinte, dizendo que Dühring  deve ser muito criticado. Assim, Engels deixou de lado o seu trabalho sobre o que mais tarde se tornaria conhecido como o livro Dialética da Natureza . Em 28 de maio, ele delineou para Marx a estratégia geral que planejava tomar contra Dühring. Levaria mais de dois anos para ser concluído).. Nesta época em que Marx redigia O Capital estava em sintonia com Engels nesta e noutras matérias. O trabalho era explicar cientificamente o Capital e não “filosofar” sobre o capitalismo. O método que utilizou na investigação do Valor e da Mercadoria, foi o materialismo dialético (que havia extraído do sistema hegeliano com a devida inversão). Ora o materialismo dialético e histórico não era e não é uma filosofia como as outras: é científico. Se a natureza e o homem estiveram separados, agora estavam lançadas as condições para uma ciência unitária. Não foi outro, por conseguinte, o propósito de Engels. A filosofia de O Capital é o materialismo histórico e dialético. Tal como o é na Dialética da Natureza e no Anti-Duhring. A prova maior é esse estupendo ensaio “ Quota-parte do Trabalho na hominização do macaco”, que mostra bem o génio científico de F. Engels.
 Não existe contradição alguma entre a sua afirmação de que a filosofia da natureza pode, perante o novo papel insubstituível das ciências naturais e sociais (a começar pela ciência de O Capital), remeter-se a uma teoria científica do conhecimento, à Lógica dialéctica, às leis ou formas do pensamento, e a sua tese sobre a justeza de uma filosofia científica da natureza, isto é uma Teoria que conjugue os dados empíricos num Todo. Teoria Geral que inclua necessariamente o método dialético, na medida em que reflete as leis dialéticas desse Todo. A filosofia que ele rejeita é a especulação extra-científica e o método metafísico.
O problema levanta-se é com um outro texto: Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.
Diz neste ensaio: “A grande questão fundamental de toda a filosofia, especialmente da moderna, é a da relação de pensar e ser”. “A questão da relação do pensar com o ser, do espírito com a natureza – a questão suprema de toda a filosofia no seu conjunto -, tem, portanto, não menos que do que todas as religiões, a sua raiz nas representações tacanhas e ignorantes do estado de selvajaria”. “Conforme esta questão era respondida desta ou daquela maneira, os filósofos cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta criação é frequentemente entre os filósofos, por exemplo, em Hegel, ainda de longe mais complicada e mais impossível do que no cristianismo -, formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo”. Este é o significado que Engels utiliza, e não outro, para as expressões “idealismo” e “materialismo”. Esta questão possui um outro lado: “está o nosso pensar em condições de conhecer o mundo real(…)? É a questão “da identidade do pensar e ser”. Este ensaio foi escrito em 1886, portanto já depois de Marx ter falecido (1883).
Existe, então uma “grave” contradição, tão grave que provocou controvérsias e dissidências no século passado, entre o que se convencionou chamar “marxismo-leninismo” soviético ou estalinista ( o chamado Diamat) e “marxismo ocidental”?
Não ma parece que exista. A questão ontológica suprema já fora resolvida com a criação do materialismo histórico e dialético. A resposta à pergunta estava dada, a opção tomada definitivamente. A questão merece conservar-se? No plano da ciência, não tem mais razão de ser. Ou melhor: a questão pode pôr-se, mas a resposta estava dada. A questão era, de resto e no fundo, do interesse dos teólogos, fossem eles padres ou filósofos académicos ideólogos da burguesia. O materialismo dialético demonstrou, culminando a longa sucessão de grandes filósofos materialistas, que não existe Espírito algum fora da natureza e seu criador. No que respeita ao outro lado da “questão suprema, a identidade do ser e do pensar, leia-se o que Engels escreveu nesta obra e em todas outras coerentemente. Recordem-se as famosas e já muito estudadas Teses de Marx contra Feuerbach. A gnosiologia marxiana-engelsiana é claríssima. Lenine, que não conheceu algumas das obras de Marx e Engels, soube expô-las desenvolvidamente no incontornável livro de pura filosofia (Materialismo e Empiriocriticismo), que José Barata-Moura nos explicou no seu Sobre Lénine e a Filosofia. Entre a interpretação gnosiológica de Lenine e a gnosiologia de Marx e Engels não se topa nenhuma contradição. Lembremos apenas que o Trabalho, tão brilhantemente analisado por Engels conforme já referimos, é, entre outras práticas sociais, a principal mediação do homem com a natureza, relação fundamental no processo histórico do conhecimento. Existem conhecimentos verdadeiros? Os nossos atuais “pós-modernos”, ou alguns deles, torcem o nariz quando se fala na Verdade, bisnetos que são das teses reacionárias de Nietzsche nessa matéria. Evidentemente que existem conhecimentos verdadeiros. Engels expõe contra o tal Herr Dühring a questão no capítulo “A moral e o direito-verdades eternas”. “E, sem dúvida, há verdades tão bem fundadas, que a menor dúvida a respeito delas nos pareceria sinónimo de loucura: dois e dois são quatro, os três ângulos do triângulo valem dois retos”. Não existem, isso sim, verdades absolutas e eternas, “assim, por regra, nos trabalhos verdadeiramente científicos evitam-se as expressões dogmáticas e morais de erro e de verdade”.
  A meu ver o único problema que se poderá levantar relativamente ao papel que Engels reserva à Filosofia tem que ver com questões ou áreas que não são ciências particulares: a Ética, o Direito, a Estética, a Política. Contudo, a Dialética da Natureza não foi escrita para essa finalidade. A “Introdução à «Dialéctica da Natureza»”, foi escrita em 1875-1876; o “Antigo Prefácio ao «Anti-Dühring». Sobre a Dialéctica”, foi escrito 1878. Os manuscritos da Dialéctica da Natureza levaram vários anos a serem escritos. Não faz sentido que hajam aflorações “revisionistas” entre os dois escritos.
Ora, no Anti-Duhring Engels analisa a moral e o direito atacando questões como “verdades eternas”, A igualdade”, “Liberdade e necessidade”. Engels não afirma que as áreas que listámos acima constituem ou podem vir a constituir ciências particulares. A Moral não é uma ciência, nem a Política ou a Estética. Integram-se na Teoria geral de que falámos atrás. Sem o contributo das ciências (naturais e sociais) e do método dialético (isto é, sem o materialismo dialético e histórico), não poderemos compreender as origens e o desenvolvimento dessas práticas humanas. A Ética e o Direito serão porventura os terrenos preferidos da dominação de classe. A Política não é tratada com este título, desenvolve-se na “Segunda Parte”, capítulos “Teoria da violência” e na Terceira Parte “socialismo”. A Política, filosofia da Política se preferirmos, julgo que é precisamente a consequência final e coerente de uma boa ontologia. No Prefácio II do Anti-Dühring Engels esclarece-nos quaisquer dúvidas que tivéssemos relativamente à coerência das teses com o pensamento de Marx: “Como a filosofia que exponho neste livro foi, na sua maior parte, fundada e desenvolvida por Marx, e em menor parte por mim, era muito natural que não escrevesse esta exposição sem o seu conhecimento. Antes da impressão li-lhe todo o manuscrito e, no que respeita ao décimo capítulo da segunda parte, dedicado à economia política (Sobre a História crítica), foi o próprio Marx quem o escreveu (…) De resto, tivemos sempre por costume ajudarmo-nos um ao outro nos assuntos relativos à ciência”. Separar e opor Engels a Marx, ou vice-versa, é, portanto, um ato de má-fé. De resto, em O Capital lemos enunciados suficientes sobre a moral e o direito e a política está logo no subtítulo: Crítica da Economia Política. A Filosofia em O Capital é outra obra estupenda de José Barata-Moura. “ No domínio da economia política a investigação científica livre não encontra o mesmo inimigo que em todos os outros domínios. A natureza peculiar da matéria que manuseia chama ao campo da luta contra ela as paixões mais violentas, mais mesquinhas e mais odiosas do peito humano, as Fúrias do interesse privado” ( O Capital, Prefácio à primeira edição, 1867)
Engels não se serve do método metafísico para analisar as raízes da moral, do direito e da política, como fazem aqueles filósofos que “explicam” essas e outras atividades humanas na pura esfera das ideias. Grandiosos conceitos da Moral e da Política: Liberdade, Igualdade, etc. somente se podem compreender no contexto histórico, nas lutas sociais, nas reivindicações das classes e dos estratos sociais, nas conquistas e nas derrotas, nos interesses económicos, culturais, políticos, que se entrelaçam no todo de uma determinada organização rasgada por contradições. Engels maneja com mestria a Dialética a propósito do choque das burguesias, cujo interesse maior era a “livre concorrência”, com os entraves corporativos e os privilégios, “a situação económica exigia a liberdade e a igualdade de direitos”.
A “Teoria” de que nos fala Engels não é, portanto, uma filosofia separada soberanamente dos métodos empíricos das ciências naturais e sociais ( e isto aplica-se também à Moral, Direito, Política, Estética); não é, sobretudo, a aplicação de um método “metafísico”, mas, sim, dialético. Personalidades influentes no partido social-democrata, como Bernstein e outros, que depressa abandonaram o marxismo, acusaram Engels de “positivista”, “economicista” e outros epítomes. A mais do que tardia publicação de obras de Engels, como referimos acima, é em grande parte da responsabilidade dele e seus compadres. O perfil “positivista” de Engels foi glosado vezes sem fim pelo século vinte em diante por muitos que não o leram (doença que ataca também os filósofos), ou leram-no “demasiado” bem, isto é não lhes convindo de todo uma Dialéctica que conduz à necessidade de um revolucionamento das relações sociais, na base das quais estão as relações de produção. A abordagem engelsiana das questões da moral, do direito, da violência na História, dos efeitos do trabalho e outras práticas sociais nas conceções religiosas, políticas, etc., patente nas duas obras que temos vindo a citar, demonstra claramente, sem equívocos, que ele rejeita quaisquer “determinismos” (expressão que ele aplica à ciência e aos materialismos do século XVIII). Engels e Marx mais do que uma vez afirmaram que as ideologias, as lutas de ideias e crenças, desempenharam nos acontecimentos que eles próprios referem (as guerras religiosas, por exemplo) um papel de relevo., ou seja: de retroação.
Não se compreenderia que Engels lançasse a filosofia borda fora. Se assim fosse o materialismo dialético desistiria do combate contra as posições idealistas que brotam espontaneamente ou propositadamente no seio dos próprios movimentos progressistas. Se assim fosse Engels não teria combatido o Sr. Dühring. Esta obra, publicada em vida com várias edições, é um exemplo genial da luta ideológica, ou, se preferirmos, dos combates da filosofia no seu mais acutilante recorte.
Existem diferenças de exposição entre o Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã e a Dialética da Natureza, sobretudo entre o primeiro texto e as frases que citámos do Anti-Dühring (Noções gerais), “o que subsiste de toda antiga filosofia e conserva uma existência própria é a teoria do pensamento e suas leis – a lógica formal e a dialética. – Todo o resto se resolve na ciência positiva da natureza e da história”? Certamente. Numa exposição explana-se o problema ontológico, a filosofia materialista dialética, nesta última não o faz tal e qual. Contudo, é uma contradição real, uma alteração profunda de posições? Não creio de modo algum. Repare-se na afirmação que antecede e conduz à conclusão de que “torna-se supérflua, etc.”: “ o materialismo sintetiza os progressos recentes das ciências naturais”, tal materialismo é essencialmente dialético e, portanto, não “implica nenhuma filosofia sobreposta às outras ciências ”, “Desde o momento em que se pede a cada ciência que dê conta da sua posição no conjunto total das coisas e do conhecimento das coisas, torna-se supérflua uma ciência especial do conjunto”. É isto que ele afirma. A filosofia materialista histórica e dialética não veio para se sobrepor às ciências naturais, a sua ontologia fundamental, pelo contrário, solicita, por um lado, o concurso da Ciência para expor e demonstrar a tese do primado da Matéria sobre o Espírito e, por outro, exige que a Ciência tome consciência de que a dialética está lá, nos fenómenos, quer os cientistas queiram ou não. Por exemplo: já não era útil uma “filosofia da História” à maneira hegeliana (idealista), quando a História se estava a constituir como uma área de estudo que compreende necessariamente, se quiser ser objetiva, requisitos científicos. Por requisitos científicos, Engels entende, sobretudo mas não só, o materialismo histórico e dialético. Uma História que explique os acontecimentos sem recorrer fundamentalmente às relações económicas, não vai à raiz. Paira no céu nebuloso das puras ideias políticas acima das tempestades das crises económicas e das lutas de classe.
Engels, insisto, abandona a atividade crítica filosófica? Não vejo como nem quando: Na Dialética da Natureza, capítulo “ciências naturais e filosofia”, destroçando as teses do materialismo grosseiro de Büchner, Vogt, Molesschott, porque estes, isso sim, pretendiam suprir a falta de ciência com um materialismo pseudo-científico dogmático e grosseiro, defende a filosofia dos ataques de que estava a ser alvo. “Quem mais insulta a filosofia são escravos precisamente dos piores resíduos vulgarizados da pior das filosofias” (sublinhado por mim, N.P.). “ Do que se trata de saber é se querem (os naturalistas) deixar-se influenciar por uma filosofia má na moda ou por uma forma de pensamento teórico baseado no conhecimento da história do pensamento e das suas conquistas”. “Os naturalistas concedem à filosofia uma vida aparente, ao contentarem-se com os despojos da velha metafísica. Somente quando a ciência da natureza e da história hajam assimilado a dialética, sobrará e desaparecerá, absorvida pela ciência positiva toda a quinquilharia filosófica, com a exceção da pura teoria do pensamento”.
O materialismo histórico (que demonstrou a historicidade de todos os fenómenos sociais), o materialismo dialético (que reflete a contraditoriedade de tudo, o “trabalho do negativo” para a mudança), é, portanto, a boa filosofia…A filosofia em lugar de morrer, reanimou-se. Os combates da filosofia dialética contra o seu contrário, a metafísica, contra a filosofia burguesa que é a sua ideologia, ganham fôlego e urgência. Engels exemplifica: urge combater as filosofias “naturalistas” que querem aplicar às sociedades as teorias darwinianas. Sabemos nós bem como esta ideologia, já em voga ao tempo de Engels, promoveu a justificação das desigualdades sociais, dos racismos, dos genocídios. O liberalismo do século dezanove, essa filosofia, ou seja, essa ideologia burguesa, cobria com o manto diáfano dos direitos e liberdades os crimes horrendos do colonialismo. A vida e obra de Marx e Engels constituem a prova provada de que a ideologia burguesa não passou impune. Produziram o mais eficiente instrumento de guerra contra os opressores. Produziram ciência, mas denunciaram implacavelmente os erros dos cientistas e pseudo-cientistas, e, sobretudo, a instrumentalização da ciência pelo capitalismo. Tal como a filosofia, a ciência pode ser boa ou má…
Outro problema foi o chamado “humanismo”.
A partir da década de 1920 o cisma com o processo revolucionário em curso na Rússia transitou também, evidentemente, para a filosofia. Os primeiros teóricos foram G. Lukács e Korsch. Os escritos de juventude de Marx surgiram nessa altura e serviram de ponta-de-lança. Não se tinha na mira no início a Dialética da Natureza pois não era conhecida, mas, sobretudo o Anti-Duhring, a introdução de Marx aos designados Grundriss:
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me
de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente,
assim: na produção social da própria existência, os homens
entram em relações determinadas, necessárias, independentes
de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um
grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas
materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva
uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção
da vida material condiciona o processo de vida social, política e
intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu
ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.”, e, julgo eu, o livro de Lenine “Materialismo e Empiriocriticismo”. Veio acrescentar-se, como gasolina sobre o fogo, as pimeiras edições da Dialética da Natureza…
A crítica ao materialismo histórico e dialético centrava-se na ausência ou pelo menos desvalorização do “indivíduo”, isto é do “sujeito” e da “subjectividade” que imputavam ao “revisionismo” de Engels sobretudo. Ontologia natural ou ontologia social? Filosofia ou ciência? A crítica à ciência (ao pensamento científico) emrgia com a devida influ~encia dos escritos de Heidegger…Posições que chegaram ao radicalismo de se considerar a ciência como burguesa toda ela. O livro de Sartre “O Ser e o Nada” subiu à ribalta. O período pós-guerra agravou o cisma, período áureo do chamado “Humanismo”. Nos marxistas críticos a ontologia continha um problema: a realidade , que é a que conhecemos, não existe independentemente do conhecimento que vamos produzindo sobre ela; por conseguinte, parte dela é a mente que a constitui. Posição idealista por excelência.
Contra uma filosofia da natureza (teoria natural), contra a substituição da filosofia (A ética e a estética que tanto interessou Lukács), contra a Teoria que unificará as ciências naturais e sociais. O “humanismo” entrou em crise com o estruturalismo, nomeadamente com as criticas de L. Althusser, Teve a sua época. O contexto histórico ajuda a compreender esse atractivo. Não foram poucos os filósofos burgueses que o apoiaram conforme as suas conveniências na “Guerra Fria”. As obras e teses de Engels revelaram-se, a meu ver, mais marxistas do que o “marxismo humanista”. O seu idealismo “ético” é bem uma ilustração das reservas que o jovem Marx alimentava contra o idealismo (=ideologismo) que persegue a Filosofia como um destino.
É fácil acusar Marx e Engels de “revisionismo” nas obras de maturidade, o difícil é prová-lo. Houve evidentemente correções e acertos, porventura alguma ambiguidade que não pôde ser esclarecida, contudo revela-se uma caminhada progressiva, mas coerente, dos primeiros escritos para se produzir, por fim, essas obras magistrais que são O Capital e o Anti-Dühring. A Dialética da natureza é uma obra de época? Não me custa admiti-lo, no sentido em que a ciência estava a dar passos gigantescos e rápidos desde Faraday, Maxwell e Darwin, com aplicações revolucionárias nos meios de produção e descoberta da historicidade das manifestações da Matéria viva. Nesta época em que escrevo, conhecidos os progressos fantásticos cento e tal anos após, só posso repetir o pensamento de Engels e de Marx: a ciência será tanto mais e melhor revolucionária quanto se libertar do controlo e finalidades do Capital e servir a emancipação dos trabalhadores. Poder-se-á dizer o mesmo sobre a ideologia (idealismo) da Ética e do Direito de que tanto gostam de pregar os nossos filósofos mediáticos. Não são ciências particulares, são filosofias e doutrinas. Os seus progressos, quando aplicados efetivamente, exprimem as conquistas das massas populares, dos movimentos reivindicativos da opinião pública mundial, constituem o plano supraestrutural das lutas de classe. A filosofia é o plano teórico privilegiado desses confrontos. Jamais Engels poderia abandonar a filosofia encarada neste ponto de vista. Engels e Marx “economicistas”? A resposta dele já fora dada em diversas cartas (leia-se a carta a Conrad Schmidt, de 27 de Outubro de 1890, talvez a mais esclarecedora de todas, onde se fala do disputado termo reflexo, e do Estado e do Direito).

Marx e Engels demonstraram desde a juventude profundas reservas relativamente à Filosofia, na medida em que cada filósofo se arrogava haver descoberto verdades eternas sobre o mundo e a vida, numa operação exclusivamente intelectual desligada da práxis ( o mundo independente das ideias). Uma das enfermidades a que a Filosofia não está imune advém do facto da divisão social do trabalho, do divórcio entre o trabalho manual e intelectual. Também estes fundamentos da teoria de Marx e Engels haveriam de servir tanto para condenar os intelectuais ao pecado original, como para condenar o marxismo pelo seu putativo “cientificismo positivista” que desprezava a filosofia.  A estes últimos bastar-lhes-ia ser honestos e ler com atenção o que Engels escreve sobre filosofia (e ontologia!) no Antigo Prefácio ao « Anti-Düring».
A atualidade das obras de maturidade de Engels é, a meu ver, flagrante, também neste ponto crucial: as críticas que determinados usos da tecno-ciência suscitam, as contradições entre revolucionárias descobertas (instrumentos de trabalho e produção, de alimentos, de que fala Engels no capítulo “O Trabalho no processo de transformação”, Dialética da Natureza) e os seus resultados: mais opressão, miséria e alienação.
E como é mais do que tempo para terminar, encerro com um comentário infelizmente breve e acaso superficial que regressa à ontologia com que iniciei este texto. Existe entre os filósofos que explicam a pós-modernidade “às crianças”, aquela parte maior de ideólogos reaccionários, um fastio pelas categorias filosóficas de totalidade, verdade, universalidade (valores universais), fundamento, aparência/essência, e aí fora. Desprezando a Dialética e ostentando um ceticismo arrogante, mergulham nos lameiros de novos irracionalismos disfarçados de particularismos e relativismos, enviam com soberano desprezo para o caixote do lixo as filosofias e doutrinas que impulsionaram os grandes progressos (embora contraditórios) da Modernidade, classificados de meras “narrativas”, isto é “ficções” e “discursos retóricos”. Na realidade o que os incomoda é o marxismo, não é seguramente o liberalismo de que eles são efetivamente fervorosos adeptos nesta versão terrorista do neo-liberalismo. Para os contrariar é necessário demonstrar que a Modernidade é um longo período com progressos e conquistas do capitalismo que eles próprios defendem, mas também de revoluções e revoltas populares para maior emancipação (esses pós-modernos classificam de “narrativa” ultrapassada) de direitos que ora nos querem sonegar, também e sobretudo do surgimento do proletariado e, com ele, das doutrinas socialistas que viriam a culminar na Revolução Russa de 1917 e no Estado Social da segunda metade do século vinte. Reconhecem-se sem dificuldade importantes mudanças a partir das últimas décadas do século passado (técnicas, sociais, culturais), destacando-se o colapso dos regimes socialistas do Leste e, aproveitando-se disso, o triunfo do capitalismo neo-liberal. O eminente cientista David Harvey faz uma descrição desses fenómenos na sua obra “A Condição Pós-Moderna” que é correta na minha opinião. Nesse sentido não me custa aceitar que transitámos para um novo ciclo que poder-se-á designar de “pós-modernidade”. Também me oponho a “verdades absolutas”, a crenças num Progresso linear e teleológico, a um racionalismo produtivista, à ideologia burguesa da “livre iniciativa” (ao liberalismo em suma), ao domínio absoluto de uma única “narrativa”. 
 tomas também de um determinado irracionalismo que percorre as teses cépticas de muitos pós-modernos (com as raras excepções de Perry Anderson e F. Jameson). Movimento pós-moderno que rejeita trabalhar com totalidades, valores universais, Verdade e conhecimento objectivo, as grandes doutrinas filosóficas a que chamam “Grandes narrativas” (ficções, discursos) que significa rejeitarem a ideologia, sobretudo, ou quase só, o marxismo. Rejeita postular o “fundamento” para poder rejeitar os fundamentos materiais do ser social. Rejeita, em suma, as teorias de emancipação humana, isto é, a própria possibilidade de emancipação- alternativa ao capitalismo.
Já tivemos a hegemonia do físico-quimismo e do biologismo darwinista e eugenista entre o termo do século XIX e as primeiras décadas do século XX, que atingiu todos: nazi-fascistas, liberais, marxistas sociais-democratas. Tivemos o positivismo imperial. A fé absoluta na tecno-ciência porque aos capitalistas trazia abundantes lucros. Essa fé no Progresso.
Foi nesse período que apreceram marxistas (?) a quererem completar” de fora, a teoria económica de Marx (com Mach), e contra o qual saíu a terreiro Lenine (;aterialismo e Empiriocriticismo), ou com Kant no plano ético…
A Modernidade – As correntes filosóficas “pós-modernas” consideram que as “grandes narrativas” de “emancipação humana” faliram. A Modernidade terminou os seus dias. Existem diferentes correntes nesse movimento, com posições polítcas muito diferenciadas, é necessário não confundi-las; vão desde as reacionárias, às neo-anarquistas (diferenciadas pelo seu lado) e às que se conservam no largo espectro dos marxismos. Adopto a posição de que os novos fenómenos sociais e as novas características do capitalismo são evidentes e suficientemente largas e profundas para ser impossível recusar aceitar-se novos conceitos para um novo quadro geral que podemos sem dificuldade de maior classificar como “pós-modernidade”. O que me obriga a colocar alguns problemas e reservas:
1.       As ideologias não morreram. A ideologia burguesa conserva-se. O capitalismo encontra-se na sua fase mais aguda e crítica do imperialismo. Apesar de algumas alterações no conteúdo e nas formas da ideologia burguesa, a burguesia continua a existir e a prosseguir as suas finalidades fundamentais.
2.       A doutrina liberal (filosofia burguesa) que foi o eixo principal da ideologia da Modernidade desde o século XVII, é agora o neo-liberalismo.
3.       O liberalismo não foi, porém, a única filosofia e ideologia da Modernidade. Já no século XVI O livro de Tomás More, “A Utopia”, marcou uma diferença com enorme influência posterior, sobretudo nos escritores utopistas do século XVIII (Morelly, Dom Deschamps, Mably, etc.),e em Rousseau, Diderot, para citar apenas os filósofos mais influentes. Durante a Revolução Francesa opuseram-se às ideias liberais as correntes da Esquerda, tanto no interior dos jacobinos como à sua esquerda. G. Babeuf e o Movimento dos Iguais lançaram o primeiro manifesto comunista, inspirando-se em Morelly. Rousseau veio a ser nesta Revolução o principal mentor, e ele não defendera o liberalismo. O socialismo tornou-se, desde Saint-Simon, Owen, e outros doutrinadores célebres, a oposição no interior da Modernidade. Esta, portanto, não foi homogénea, mas profundamente contraditória. Todo o século XIX foi de lutas pelo cumprimento das promessas que o liberalismo pregava (nas diversas revoluções que liderou), ou, mais radicalmente, a favor de doutrinas desejavam realizar efetivamente o que o liberalismo jamais poderia querer realizar enquanto filosofias e ideologias burguesas que o eram e sempre o foram apesar das grandes diferenças que o capitalismo foi sujeito durante séculos.
4.       Desde modo desde os inícios da Modernidade que existiram, e combateram-se, diferentes versões de liberalismo (Kant não era igual a outros liberais, nem Hegel) e doutrinas completamente contrárias. A ideia reducionista de que a Modernidade foi toda igual, sem contradições, é completamente errada. As lutas de classes sempre existiu (camponeses, pequena burguesia, grande burguesia, proletários), a consolidação do capitalismo fez-se à custa de guerras e outros violentos confrontos. As lutas ideológicas foram intensas. A ideia de Progresso não foi entendida da mesma maneira. A grande burguesia que conciliou diversas ocasiões com a aristocracia ou com as monarquias absolutas e os “despotismos iluminados” beneficiou sem dúvida das doutrinas filosóficas de grandes pensadores (Maquiavel, Boécio, Hobbes, Montesquieu, etc.), porém outros outro tanto grandes não exprimiram os seus interesses, ou iam mais além. Chamo “excedente” a esse mais-além, que se encontra em Espinosa, no próprio J. Locke, Rousseau, Diderot, Kant, Hegel. Em quase todos os grandes filósofos que defendiam a propriedade privada e os direitos políticos que convergiam com as reivindicações das classes e camadas burguesas, a emancipação humana não se restringia às reivindicações imediatas da grande burguesia comercial e, em seguida, manufactureira, iam muito além dessas camadas. Marx mostrou que a classe ascendente apresenta-se como representante do género humano, dos interesses e necessidades naturais (“direitos naturais”), da natureza humana; as suas reivindicações mistificam-se como direitos universais. Na verdade, muitos desses direitos são universais. Ao tempo as instituições políticas que se reivindicavam ou se constituíram (Inglaterra, Revoluções do século XVII) foram grandes avanços civilizacionais, às vezes classificadas como meras utopias. O “excedente” é um conjunto de concepções (propostas, soluções para os grandes problemas da Justiça, da Moral, do Direito, da Ciência) em que o filósofo acredita efectivamente e que julga trazerem a Paz perpétua (Kant). Não sendo uma utopia típica (romances de viagens a ilhas governadas pela melhor das repúblicas, como eram usuais) aproximam-se delas, contêm um elã, um impulso utópico. São produtos autónomos do pensamento, porque o pensamento goza de autonomia, não é um mero reflexo mecânico da economia ou das bandeiras político-partidárias.
A Modernidade é também a época da grande Revolução Russa de 1917 e das revoluções nacionalistas e independentistas. A Revolução Russa e a URSS inauguraram uma época nova que ainda não fechou, bem pelo contrário. A visão que temos do Modernismo é geralmente percebida como positivista, tecnocêntrica e racionalista, o modernismo universal tem sido identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padronização do conhecimento e da produção. O pós-modernismo, em contraste, privilegia a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural. A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos totalizantes são o marco do pensamento pós-moderno.
Segundo Eagleton (1987), o pós-modernismo assinala a morte das metanarrativas, cuja função terrorista secreta era fundamentar e legitimar a ilusão de uma história humana universal.  A ciência e a filosofia devem abandonar suas grandiosas reivindicações metafísicas e ver a si mesmas, mais modestamente, como um conjunto de narrativas.
5.      A idéia de Moderno teve suas bases no que Habermas chama de projeto da modernidade que surge durante o século XVIII. A idéia era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livremente e criativamente em busca da emancipação e do enriquecimento da vida diária. O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais.
6.      O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação de irracionalidades do mito, da religião, da superstição, libertação do uso arbitrário do poder...(HARVEY, 2004:23). 

NOZES PIRES