quinta-feira, 31 de março de 2016
quinta-feira, 24 de março de 2016
FÁBULAS
FÁBULAS – O Sr. Deputado
Morreu na cama. Hotel de 5
estrelas, suite de luxo. Toda a comunicação social relatou o funesto acontecimento.
“Morreu o Deputado Rodoberto M. Albuquerque e Sá”. As televisões omitiram o
contexto. Na verdade, o coração do Sr. Deputado não resistiu ao peso-pluma de
uma “acompanhante” (belíssima, dizem as más-línguas) sobre o tórax. As redes
sociais encarregaram-se desta parte, com admiradores e adversários a
digladiarem-se com aquele calor espontâneo com que alguns austrolopitecos
comunicam entre si.
A vida do morto estava muito
acima de disputas caseiras. O seu funeral foi grandioso. Centenas de curiosos
aplaudiram a passagem solene do féretro. Ilustres personalidades públicas,
entrevistadas no local, foram unânimes na firme convicção de que os despojos
deveriam ser depositados no Panteão Nacional. A proposta iria ser discutida
“atempadamente” (sic) na Assembleia da República.
Rodoberto Maria Albuquerque e Sá
nascera num palacete setecentista no ano em que o general Franco invadiu a
Espanha. Descendia de fidalgos cuja origem se perdia na alcova adúltera de Dom
Sancho I. Oitavo filho, por ordem cronológica, bem cedo deu sinais de que a
escola não era a sua vocação, excepto o pátio do recreio, embora todos os filhos
do rico proprietário Afonso Maria Albuquerque e Sá gozassem dos favores
especiais dos mestres. O pai finou-se mal fizera cinco décadas, a herança foi
repartida pelos herdeiros, cabendo ao primogénito a maior fatia do bolo.
Rodoberto, vinte e um anos feitos, vendeu o seu quinhão e despachou-o em menos
de um fósforo em estadias faustosas no Palace Hotel de Mónaco e nos cabarés de
Paris.
A mãe foi firme: “O menino gozou?
Agora faça-se à vida!”. E Rodoberto fez a mala e rumou para Moçambique, onde um
tio era dono de uma infinita plantação de coqueiros. Durante uns tempos ajudou
na administração do território, dormindo a sesta com uma preta de cada lado da
rede, repousando das noitadas na cidade da Beira. O tio despachou-o sem mais
aquelas para Lourenço Marques repetindo as palavras da irmã: “Menino, faça-se à
vida!”. E Rodoberto fez-se homem na cidade que haveria de tornar-se uma das
mais belas do sul de África. Empregou-se num armazém que vendia a retalho os
vinhos de zurrapa que a Metrópole exportava. Apanhado em flagrante a roubar a
caixa foi trabalhar para uma pequena fábrica cervejeira. O produto era muito mais
cobiçado que o carrascão. Rodoberto demonstrou finalmente todos os seus dotes
de empresário, a fábrica converteu-se num empório, a tal ponto que o tio de
Nampula já o elogiava aos amigos terra tenentes “Temos homem!”. Especialista em
impingir a cerveja nas aldeias e colonatos, Rodoberto enriqueceu. Escolheu com
visão de contabilista uma senhora muito séria e excelente herdeira de uma
importante loja de fazendas, casou e fez dois filhos, um dos quais morreria ao
volante de um Maserati na estrada do Bilene, e o outro ingressou na Escola
Militar. O presidente da Câmara apresentou Rodoberto ao governador da colónia
que o nomeou assessor para os assuntos económicos. Na década de cinquenta com a
política de colonização acelerada de Salazar, Rodoberto alugou um navio mais
velho que Matusalém e protagonizou uma das façanhas gloriosas desse período
áureo: arregimentou milhares de emigrantes, fugidos da fome da metrópole, e
arremessou-os para os confins da selva, pintada em folhetos atractivos como o
novo El Dorado. Foi condecorado
várias vezes com pompa e circunstância pelo governador em pessoa, classificado
para todos os efeitos como “um homem leal ao Regime” e o chefe local da Pide
passou a tratá-lo com o respeito que a máfia só dedica aos seus. Influente na
política e nos negócios de monopólio, fluente na língua inglesa, depressa
encontrou nos governantes sul-africanos do apartheid protecção para um futuro que se adivinhava nebuloso. Foi por altura em que eu
estudava penosamente para os exames do 7º ano liceal no café Nicola que conheci
Rodoberto: um empregado de mesa negro veio comunicar-me, com servilismo fingido
que “O Senhor Rodoberto está a chamar!”. E estava. Fazia-me largos gestos da
mesa dos fundos. Perguntou-me pela minha mãe, quis saber como corriam os
estudos, prestou-se a ajudar-me se viesse a procurar emprego. Nunca mais o vi
em África. Viajei para a universidade do Porto um mês depois.
O filho militar, ascendera a
oficial superior e foi um dos artífices da arte de eliminar aldeias rebeldes do
mapa. Na cidade da Beira, onde tecia a teia com que mantinha capturadas as
boas-consciências que traficavam com o Maláui e a África do Sul, Rodoberto caiu
gravemente doente. Recomposto ao fim de um mês de internamento, assustado e
provisoriamente humilde, buscou a bênção salvífica do Bispo. Este escusou-se,
porém, pois que o conhecia de ginjeira, e reencaminhou-o para as mãos de um apagado
capelão militar. Quando a guerra se revelava perdida, ou pelo menos num
impasse, Rodoberto afastou-se ostensivamente das ligações perigosas com a Pide
e os sul-africanos e começou a rondar os negros que presumia serem, ou virem a
ser, quadros importantes da Frelimo. Aquando da independência Rodoberto foi,
portanto, apresentado num comício público como “um amigo dos africanos”. Na
realidade dispunha de conhecimentos inigualáveis na produção de um produto sem
cor política, embora a cerveja fosse loira.
Sucedida essa aurora luminosa que
foi o dia 25 de Abril, Rodoberto alinhou sem hesitações na corte de Spínola,
participou nas tentativas de golpe de estado do general, nos atentados
terroristas do MDLP, e aguardou bem protegido em Espanha o desenrolar dos acontecimentos
do 25 de Novembro. Regressou quando a tempestade passou e limpou o nome com uma
amnistia oportuna.
Tacteou com a ronha dos gatos o
poder que emergia do Partido Socialista e filiou-se sem dar muito nas vistas. A
discrição cautelosa passou-lhe depressa. Em eleições autárquicas candidata-se
pelo PS à vice-presidência da Câmara de uma importante cidade do Norte e dá um
contributo decisivo à vitória, prometendo empregos e habitação social aos mais
desfavorecidos. Quatro anos depois é acusado de peculato, porém um escritório
poderoso de advogados de Lisboa obtém-lhe a absolvição com facilidade. Aproxima-se
a mudança de turno: a Direita conquista o poder, Rodoberto bate com a porta na
cara dos seus confrades socialistas e alista-se nas hostes aguerridas de Cavaco
Silva. Entretanto, resolve subir mais um degrau: ingressa numa universidade
privada e alcança em ano e meio os graus de doutor e mestre. Escolhido de
imediato para a lista da capital ascende a deputado. No decurso de quinze anos
é sucessivamente eleito, sem que alguma vez houvesse discursado. Faltava
regularmente, viajava para o estrangeiro regularmente, jantava no Gambrinus
regularmente. Reencontrei Rodoberto num desses jantares. Apresentado como seu
parente, mostrou lembrar-se de mim perfeitamente, acolheu-me com aquela
simpatia irradiante que lhe permitia ter amigos em todos os quadrantes. Ou
quase. Convidou-me, entre dois uísques, a fazer parte do lóbi que chefiava no
parlamento; declinei, não por escrúpulos mas por via da profissão que eu abraçara
com gosto ou sem ele; arrependo-me hoje amargamente, pois gozaria de uma
reforma muito confortável, o que não é o caso vertente.
Neste ano em que escrevo
Rodoberto estava há muito reformado da política parlamentar. Uma pensão gorda, direito a estadias gratuitas
nos melhores hotéis de Xangai e Luanda em recompensa pelos serviços prestados
nas privatizações, uma conta choruda na Suíça, quarto exclusivo no resort
Conrad Algarve, um filho no estado-maior da NATO, um neto assessor do
Primeiro-Ministro, uma jovem amante jornalista da televisão e outra jovem
intérprete no Parlamento Europeu, que lhe deviam inúmeros favores. Enviuvara há
trinta anos, o que lhe permitia usufruir da tolerância das elites lisbonenses.
O corpo do Sr. Deputado Rodoberto
Maria Albuquerque e Sá, descendente de um filho bastardo de Dom Sancho I, “Merece
o Panteão Nacional”, lê-se em título de caixa-alta num tablóide de referência. “
O país inteiro espera que se faça justiça a quem tão altos serviços prestou à
Pátria”. Cavaco Silva, entrevistado pela RTP1, não disse que sim nem que não:”
Cabe à Assembleia da República e aproveito para transmitir as minhas mais
sinceras condolências ao filho do ilustre português Rodoberto Maria Albuquerque
e Sá, que desempenha as mais elevadas responsabilidades na Aliança de que
Portugal faz orgulhosamente parte”.
P.S. Os nomes são fictícios pois
que o Sr. Deputado é meu parente por via do seu casamento com uma tia minha.
Pedimos desculpa aos vivos se acaso ferimos susceptibilidades sem que fosse
esse, de modo nenhum, o nosso propósito.
NOZES PIRES
quinta-feira, 10 de março de 2016
Ensaios- Crítica da Razão Consensual 1
A dialéctica da Natureza em discussão
O livro Dialéctica
da Natureza, de F. Engels, é constituído por um conjunto de textos escritos
para responder a situações políticas que exigiam a sua intervenção imediata.
Imperativos políticos. Após a morte do seu grande amigo, Marx, Engels fica
sozinho nesse combate de defender o movimento social-democrata alemão das
tergiversações. O marxismo é hegemónico, adotado com sua ideologia pela II
Internacional, o prestígio de Engels é enorme. Na realidade, porém, o marxismo
ainda não se completara com uma ideologia comunista. Circulavam teorias
heterogéneas no Movimento socialista, livros que pretendiam completar, corrigir
ou mesmo atacar a teoria de Marx, teorias medíocres apresentadas como a última
palavra sobre o socialismo. O Capital,
de Marx, entretanto em publicação, não supre as necessidades teóricas do
Movimento, pela dificuldade de leitura. Cientistas e outros menos divulgam
apreciações que colidem com as convicções filosóficas de Engels. O Anti-Dühring , de Engels, é uma peça
fundamental no seu combate contra o que entendeu serem teorias políticas
perigosas e erróneas nos planos filosófico e científico: o empirismo, o
naturalismo, o materialismo grosseiro. Teses que conduziam a desuniões e desviavam
o Movimento das suas finalidades revolucionárias.
Contra os “naturalismos” (expressão de Engels) é preciso
completar o edifício da filosofia marxiana. Com quê? Com uma filosofia da natureza. Na Dialética da Natureza Engels combate o método “metafísico”,
opondo-lhe o método dialético, o qual é comprovado pelas ciências, ele mesmo é o
método científico por excelência. A filosofia é se for metafísica ou simplesmente
desnecessária quando a ciência experimental é preferível. Da filosofia
guarda-se o que ela possui de mais valioso: o método dialético, aplicado a
todas as áreas do saber, método que reflete as propriedades objetivas do mundo
físico e social. O marxismo (expressão que Engels não utiliza), isto é o
materialismo histórico e dialético, não se circunscreve às ciências sociais, à
política, abrange as ciências da natureza. Trata-se, portanto, de demonstrar
que a dialéctica é também natural, é a natureza na sua totalidade, rege-se por
leis também dialéticas (Engels não
nega evidentemente que outras leis expliquem o movimento dos corpos). Recusa e
critica o uso do termo “forças”, é mais adequado falar-se em “energia”. Matéria
equivale a massa e energia. A essência da Matéria é o movimento ou Energia.
Esta manifesta-se de diversos modos. A Energia é indestrutível, 1ª Lei da
Termodinâmica.
A filosofia marxista é o materialismo dialético. O segundo
termo – dialética – faz toda a diferença com os filósofos e cientistas que são
materialistas, com mais ou menos consciência disso, porém recusam o socialismo.
A meu ver ser materialista não é raro no domínio das ciências, e menos raro
ainda quando não se filosofa sobre isso, uma espécie de materialismo espontâneo (G. Bachelard). Porque não
basta ser-se materialista para consequentemente se ficar de mal com o
capitalismo… Além disso, não é o próprio marxismo variegado?
Um outro problema: F. Engels abandonou a filosofia? Toma ou
não posições contraditórias, por um lado, na Dialética da Natureza e, por outro, em L. Feuerbach e o Fim da
Filosofia clássica alemã? Reserva para a filosofia apenas a lógica, isto é
a dialéctica, ficando tudo o mais a cargo das ciências “positivas”? Ou há nas
duas primeiras obras elementos para uma ontologia marxista? E se a filosofia se
confinar à lógica, como parece defender na Dialética
da Natureza, para quem fica a ética
e o direito que Engels, afinal, tão bem analisa no Anti-Dühring ?
São estas áreas tarefa que cabe à ciência? Todavia, a ética, estética,
política, não são ciências particulares…
Dialética da Natureza – Desde 1873 que Engels projetava
escrever uma obra sobre a dialética da natureza (conforme correspondência com
Marx), mas desde 1858 o seu interesse manifestava-se quanto a um estudo
aprofundado das ciências naturais. O propósito que o orientava era a crítica do
“método metafísico” e a exposição das categorias do método dialético. A
“dialética racional” do materialismo filosófico, “despojada de todo o
misticismo converte-se em uma necessidade absoluta para as ciências naturais
(manuscritos da Dialética da Natureza,
esboço com o título “Büchner”). Em 1873 projetava escrever, antes do Anti-Dühring , um “Anti-Büchner”,
materialista vulgar. Depois de publicar a 1ª edição do seu Anti-Dühring
(1878) Engels trabalha na Dialética da Natureza.
A morte de Marx em 1883, a imperiosa edição dos tomos segundo e terceiro de O Capital, as tarefas políticas na II
Internacional, impedem que ele organize os materiais. A sua morte em 1895,
impede de vez a publicação. Esquecidos os manuscritos, a obra só sai em Moscovo
em 1925, a versão alemã e russa. Nova edição, amplamente corrigida, em 1927, em
alemão. Demasiado tardia: a enorme projeção e prestígio de Engels desde o
desaparecimento de Marx (muito maior do que do próprio Marx) viria a esmorecer
desde 1914. A Dialética da Natureza
é, pois, uma coleção de manuscritos, alguns inacabados, versando variados
assuntos das ciências naturais: Formas de movimento da matéria; Classificação
das ciências; Matemáticas; Mecânica e Astronomia; Física; Química; Biologia, e
capítulos de grande importância sobre Dialética. Nada do que afirma sobre temas
das ciências (as marés, o calor, a eletricidade, etc.) perdeu interesse ou é
erróneo; apresenta-nos intuições penetrantes sobre as teorias mais avançadas;
defende o papel pioneiro dos filósofos na explicação da natureza, nomeadamente
Kant; desenvolve um estudo genial sobre o papel do trabalho que fez escola até
hoje (“ O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”), no qual G.
Lukács se inspirou para o seu último trabalho “Para uma ontologia do ser
social” (1971), pese embora o facto de sempre haver preterido a Dialética da Natureza... Embora não
possamos tratar aqui de toda a produção de Engels, é mister dizer que o seu
enorme génio revela-se no carácter pioneiro das suas obras: A origem da família, da propriedade privada
e do Estado, para citar só esta. O Anti-Dühring
é outra obra notabilíssima, com varias edições ainda em vida de Engels. Na
Primeira Parte trata da filosofia da natureza; da moral e do direito (Liberdade,
igualdade e necessidade); da dialética. Nas duas restantes trata da teoria da
violência; das descobertas de Marx (Teoria do valor, capital e mais-valia,
etc.); do socialismo (produção, distribuição, Estado, família, educação). A sua
leitura acompanhada é uma tarefa saudável, sobretudo para os mais novos.
No “Prefácio” à 2ª edição do Anti-Dühring e no chamado “Velho Prefácio” coligido para a Dialética da Natureza (título com que
foi editado pela primeira vez em russo) Engels estende as leis da dialética à
natureza, com o propósito de não deixar nada de fora do materialismo histórico.
Uma filosofia geral, uma ontologia para todos os efeitos. No capítulo
“Dialética”, (manuscrito da Dialética da
Natureza), expõe três leis gerais: lei da mudança da quantidade em
qualidade, e vice-versa; lei da penetração dos contrários; lei da negação da
negação. Refere que as três leis haviam sido desenvolvidas por Hegel, “à sua
maneira idealista, como simples leis do pensamento”. Estaline não incluiu a
“lei da negação da negação” nas leis da dialética (O Materialismo Histórico e o Materialismo Dialéctico, Moscovo,
1951), mas cita largamente Engels no respeitante às “mudanças qualitativas” que
“não são graduais, mas rápidas, bruscas e se verificam por saltos” o que permite
conceber a natureza e a sociedade como “um desenvolvimento que vai do simples
ao complexo, do inferior ao superior”. Estaline clarifica posições no âmbito
das disputas marxistas que separam a filosofia soviética do chamado “Marxismo Ocidental”,
sobretudo na admissão, ou não, de uma filosofia da natureza. Ora, em Engels, a”
lei da negação da negação” (capitulo do Anti-Dühring)
é a principal lei do desenvolvimento, enquanto para Estaline era a da “mudança
da quantidade em qualidade”. Curiosamente o “marxismo ocidental” pensava aqui
como o seu arqui-inimigo…
V.I. Lenine defende teses concordantes com as de Engels na Dialética da Natureza, no seu livro Materialismo e Empiriocriticismo,
veja-se, por exemplo, o valor cimeiro que atribuem ambos à categoria de
Movimento (“auto-movimento, insiste Lenine). Ora, o livro de Lenine é de 1909,
não conheceu, portanto, a Dialética da
Natureza! No seu texto Karl Marx (publicado
pela primeira vez em 1915) cita Engels do Anti-Dühring
com comentários elucidativos: “A natureza é a comprovação da dialética, e
devemos dizer que as ciências modernas da natureza nos forneceram materiais
extremamente numerosos”( e isto foi escrito antes da descoberta do rádio, dos
eletrões, da transformação dos elementos, etc.!) “cujo volume aumenta dia a
dia, provando assim que, em última análise, na natureza as coisas se passam
dialeticamente, e não metafisicamente”.
A Dialética da
Natureza, sobretudo no capítulo que referi acima, provocou controvérsias
que ainda não encontraram consenso. É simples metafísica? Pura especulação abstrata
sobre as “leis do ser”? A minha posição já apresentei-a no início: não faz
sentido algum que categorias centrais como o desenvolvimento perpétuo e descontínuo
que exprime uma história de transformações umas vezes lentas e graduais,
outras, bruscas e profundas, apenas se aplique às sociedades e não à natureza,
o “movimento, no sentido geral da palavra, concebido como uma modalidade ou um
atributo da matéria, abarca todos e cada um das mudanças e processos que se
operam no universo, desde o simples deslocação de lugar até ao pensamento”( Dialética da Natureza, Formas
fundamentais do Movimento”). “A terra devêm, desenvolve-se e perece” (idem). A Matéria (Energia) é eterna.
“Pela mesma férrea necessidade com que um dia desaparecerá da face da terra a
sua floração mais elevada, o espírito pensante, voltará a brotar em outro lugar
e em outro tempo” (Introdução). Apenas
coloco sérias reservas à aplicação, por alguns marxistas, da fórmula redutora “tese-antítese-síntese”
como lei da natureza. Julgo ser mais adequada a expressão “negação da negação”,
pois não me suscita dúvidas e tenho-o como um facto teórico e empírico que a
natureza é atravessada por contradições (forças contrárias que ora se
equilibram, ora destroem); se a negatividade é uma categoria instante da
dialética é de admitir que a superação também se aplique. A Vida foi quase
exterminada várias vezes na terra; todavia, superou a catástrofe….O Homo sapiens é uma autêntica superação
das diversas etapas e espécies que o antecederam e se extinguiram. As estrelas
que pareceriam tudo destruir, forneceram, porém, os ingredientes necessários ao
surgimento de planetas habitáveis e da Vida. O que rejeito é a possibilidade de
contaminação dessa lei da dialética com a crença teleológica de que tudo se encaminha para uma finalidade
superlativa (e boa necessariamente). As catástrofes existiram e continuarão a
existir tanto nas sociedades como no universo. Sem muitas delas não
existiríamos. Substituiria também a fórmula “desenvolvimento do inferior para o
superior” pela expressão “do mais simples ao complexo”, quando falamos de Natureza,
pois que me parece que a ideia de “superioridade” é claramente antropomórfica.
Estão ultrapassadas as situações históricas que conduziram
às acusações mútuas do “marxismo ocidental” e do “marxismo estalinista”. Mas
não está resolvida a querela sim ou não a uma
filosofia da natureza. Se defendermos uma ontologia marxiana (com o
contributo inescapável de Engels com quem Marx trocou ideias e acordos) não
vejo razão para que essa ontologia não abarque a Natureza. Se o materialismo de
Marx- Engels é dialético, e é isso que o distingue de todos os materialismos
antigos ou modernos, havemos de admitir que a ontologia é centralmente dialéctica. Não apenas um método
construído pela mente, mas um processo de explicação cujas categorias refletem
as características dos mundos natural e social; por isso é que são certeiras. É
necessário que pensemos que as categorias que Marx e Engels usaram para a
construção de uma visão do mundo e da vida foram revolucionárias não apenas na
Economia, mas inclusivamente para a Natureza e anteciparam-se, no plano da
teoria, a importantes correções dos postulados científicos. É certo que
determinados avanços da Ciência ( a revolução operada por Einstein, a física
quântica, etc.) obrigariam Engels a corrigir alguns comentários sobre aspetos
específicos da Matéria. Não é isso que importa. Não surgiu nada, nem poderá
alguma vez surgir suponho, que desminta as afirmações de Engels (e de Lenine) :
a unidade material do mundo, o auto-movimento como propriedade essencial da
Matéria (Natureza e Vida), as possibilidades de criação do Novo, do mais
simples ao mais complexo. A compreensão de que tudo possui uma história, surge
e desenvolve-se cada coisa em conexão com outras, numa unidade que vai do mais
particular ao mais geral ( a que podemos chamar, aqui, de síntese, sem
reservas, união de contrários (Lenine), um processo de desenvolvimento e
transformação. Em que é que as ideias de Engels sobre a natureza (e muito
provavelmente de Marx) contrariaram a lei darwiniana da seleção natural das
espécies, se ele próprio enalteceu a revolução operada pelos livros de C.
Darwin, apontando-lhe,contudo, com clarividência a “falta” deste no que
respeitava às “causas”? As ideias de desenvolvimento e evolução ( que souberam recolher
da filosofia de Hegel), que Marx e Engels formularam para as sociedades com
muita antecedência sobre os que se lhe seguiram, constituem um grandioso
património da cultura e da ciência. Engels estendeu-as à Natureza (com o acordo
de Marx), apoiado na obra de Darwin e nas descobertas da física, química, da
antropologia e da geologia. Mas soube contrariar o darwinismo com o conceito de
trabalho entre os macacos e os seres
humanos (Dialética da Natureza)
importantíssima correção às ideias que se divulgavam sobre a evolução (o
evolucionismo). É preciso que a ciência
prática se torne uma ciência humana, sem separação entre a vida e a ciência.
(Marx, Manuscritos económico e filosóficos).As práticas científicas não
estão acima dos interesses da humanidade, do concreto viver humano, da sua
emancipação, nem acima dos valores nem da luta de classes. Embora elas sejam
autónomas em certo sentido e o cientista teórico não tenha que ser apenas um
técnico ao serviço das multinacionais. Em Engels não encontramos é claro uma
defesa da ecologia, mas não encontramos a defesa da manipulação destrutiva da
natureza, encontramos um vivo interesse pelas teorias da ciência, pelas
matemáticas e física, sem lhes impor como único objetivo o da produção, ainda
que ele seja fundamental. Todas as
ideias podem ser corrigidas, é mesmo isso o que tem de bom a ciência (ao
contrário das metafísicas dogmáticas e das religiões). O darwinismo, por
exemplo, não permanece como verdade intocável, nem outro tanto podia suceder
com as teses formuladas por Engels.
É o materialismo dialético uma filosofia? Para os jovens
Marx e Engels foi com certeza, como se comprova largamente em A Sagrada Família, A Ideologia Alemã, Os manuscritos
económico-filosóficos, etc. A questão
poe-se na maturidade: deve continuar a ser uma filosofia ou uma ciência, na
altura da elaboração final e publicação do 1º tomo de O Capital( obra da ciencia) e dos estudos das ciências naturais por
Engels. No Prefácio à segunda edição
do Anti-Duhring e no chamado Velho Prefácio da Dialética da Natureza, tece considerações que vamos citar:
“ A investigação moderna da Natureza, a única que levou a um
desenvolvimento científico, sistemático, omnilateral” em permanente
desenvolvimento desde o Renascimento não impediu, porém, que uma “visão
antiquada “, isto é “determinista”, “mecanicista”, dominasse a visão até à
primeira metade do século dezanove “e ainda hoje, quanto ao principal é
ensinada nas escolas” (Introdução à Dialéctica
da Natureza). Falta uma “visão geral” para o qual a filosofia alemã
colaborou ( Kant). Falta, embora existam por todo o lado elementos que apontam
para a unidade das ciências, união que corresponda, afinal, à unidade da
natureza, do mundo e da vida. Faz falta uma teoria que permita unir as ciências
na sua complementaridade, fazem falta despectivas teóricas, pois “Se os
teóricos são semi-sábios no domínio da ciência da Natureza, os naturalistas
modernos são-no, efetivamente, outro tanto no domínio da teoria, no domínio
daquilo que até aqui era designado por filosofia”. “A investigação empírica da
Natureza acumulou uma tão enorme massa de matéria positiva de conhecimento que
a necessidade de a ordenar sistematicamente e segundo a sua conexão interna se
tornou pura e simplesmente irrecusável. Do mesmo modo irrecusável se tornou
trazer os domínios singulares do conhecimento à sua correta conexão entre si.
Mas, para isso, a ciência da Natureza transporta-se para o domínio teórico e
aqui os métodos da experiência ( Empirie)
fracassam; aqui, só o pensar teórico pode ajudar.”
É neste passo que alguma dúvida surge.
É o materialismo dialético uma filosofia ou uma ciência?
Abandona-se a filosofia da Natureza a favor de uma Teoria geral das ciências (a
criação de conceitos específicos e gerais que devem ir mais além dos puros
dados empíricos) cujo centro é a sua compreensão dialética? Sobra para a
filosofia apenas o método dialético, isto é, “as leis do pensamento”?
O empirismo desdenha da teoria, o método metafísico congela
os conceitos para sempre e não vê como tudo muda : “O pensar teórico de cada
época – portanto, também o da nossa – é um produto histórico”. A ciência do
pensar é, portanto, tal como qualquer outra, uma ciência histórica. É,
portanto, uma ciência, “a ciência do desenvolvimento histórico do pensar humano”,
isto é a dialética. A dialética é “para a ciência da Natureza hodierna, a forma
de pensar mais importante, porque só ela fornece o análogo e, por isso, o
método de explicação para os processos de desenvolvimento que ocorrem na
Natureza, para as conexões em geral, para as transições de um domínio de
investigação a outro” (Velho Prefácio).
“O caráter dialético dos processos da Natureza”. É necessário “chegar do
entendimento do singular ao entendimento do todo, à penetração da conexão
universal”, entender a Natureza como os filósofos gregos a intuíram: “como
todo”.
Parece-me lógica a afirmação Engels: sendo a natureza um
todo, em conexão universal, por essa razão as ciências se devem unir e admitir
o que é inevitável: o método dialético que, afinal, exprime ou reflete a
dialeticidade de todos os fenómenos. Somente desde modo se constrói e assume
uma Teoria geral (Teoria da conexão dialética universal), para além das teorias
específicas a cada ciência em particular. Ora, visto que o método dialético é
científico, essa Teoria Geral é necessariamente científica.
Essa Teoria não é um sistema filosófico, porque “Um sistema
da natureza e da história que abarca tudo e contém tudo, está em contradição
com as leis fundamentais do pensamento dialético” ( Anti-Dühring, Capítulo
“Noções gerais”), diz Engels para classificar o sistema hegeliano como “um
aborto colossal, o último do género”, sistema que pretendia ser a expressão de
uma verdade absoluta. “o conhecimento sistemático do conjunto do mundo
exterior” não significa impor um mundivisão fechada, a verdade absoluta, o fim
da história.
O materialismo dialético “não implica nenhuma filosofia
sobreposta às outras ciências” (idem).
E eis que avança com a afirmação mais controversa: “Desde o
momento em que se pede a cada ciência que dê conta da sua posição no conjunto
total das coisas e do conhecimento das coisas, torna-se supérflua uma ciência
especial do conjunto: o que subsiste de toda a antiga filosofia e conserva uma
existência própria é a teoria do pensamento e suas leis – a lógica formal e a
dialética. – Todo o resto se resolve na ciência positiva da natureza e da
história”.
Eis, pois, aqui, o motivo da intensa controvérsia que
atravessou os marxismos do século passado.
A Introdução à Dialética da Natureza e o “Antigo Prefácio ao
Anti-Dühring sobre a Dialética, são textos dos anos 75 a 78, Marx teve
conhecimento deles e não se opôs; Engels fez disso referência em mais do que um
texto (no Anti-Dühring e em carta a Marx;
Em 24 de maio de 1876, Engels escreveu a Marx,
dizendo que não havia motivos para iniciar uma campanha contra a propagação das
ideias de Dühring. Marx respondeu no dia seguinte, dizendo que
Dühring deve ser muito criticado. Assim,
Engels deixou de lado o seu trabalho sobre o que mais tarde se tornaria
conhecido como o livro Dialética da Natureza . Em
28 de maio, ele delineou para Marx a estratégia geral que planejava tomar
contra Dühring. Levaria mais de
dois anos para ser concluído).. Nesta época em que Marx redigia O Capital estava em sintonia com Engels nesta e noutras matérias. O
trabalho era explicar cientificamente o Capital e não “filosofar” sobre o
capitalismo. O método que utilizou na investigação do Valor e da Mercadoria,
foi o materialismo dialético (que havia extraído do sistema hegeliano com a
devida inversão). Ora o materialismo dialético e histórico não era e não é uma
filosofia como as outras: é científico.
Se a natureza e o homem estiveram separados, agora estavam lançadas as condições
para uma ciência unitária. Não foi outro, por conseguinte, o propósito de
Engels. A filosofia de O Capital é o
materialismo histórico e dialético. Tal como o é na Dialética da Natureza e no Anti-Duhring.
A prova maior é esse estupendo ensaio “ Quota-parte do Trabalho na hominização
do macaco”, que mostra bem o génio científico de F. Engels.
Não existe
contradição alguma entre a sua afirmação de que a filosofia da natureza pode,
perante o novo papel insubstituível das ciências naturais e sociais (a começar
pela ciência de O Capital), remeter-se a uma teoria científica
do conhecimento, à Lógica dialéctica, às leis ou formas do pensamento, e a sua
tese sobre a justeza de uma filosofia científica da natureza, isto é uma Teoria
que conjugue os dados empíricos num Todo.
Teoria Geral que inclua necessariamente o método dialético, na medida em que
reflete as leis dialéticas desse Todo. A filosofia que ele rejeita é a
especulação extra-científica e o método metafísico.
O problema levanta-se é com um outro texto: Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã.
Diz neste ensaio: “A grande questão fundamental de toda a
filosofia, especialmente da moderna, é a da relação de pensar e ser”. “A
questão da relação do pensar com o ser, do espírito com a natureza – a questão
suprema de toda a filosofia no seu conjunto -, tem, portanto, não menos que do
que todas as religiões, a sua raiz nas representações tacanhas e ignorantes do
estado de selvajaria”. “Conforme esta questão era respondida desta ou daquela
maneira, os filósofos cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam
a originariedade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última
instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta criação
é frequentemente entre os filósofos, por exemplo, em Hegel, ainda de longe mais
complicada e mais impossível do que no cristianismo -, formavam o campo do
idealismo. Os outros, que viam a natureza como o originário, pertencem às
diversas escolas do materialismo”. Este é o significado que Engels utiliza, e
não outro, para as expressões “idealismo” e “materialismo”. Esta questão possui
um outro lado: “está o nosso pensar em condições de conhecer o mundo real(…)? É
a questão “da identidade do pensar e ser”. Este ensaio foi escrito em 1886,
portanto já depois de Marx ter falecido (1883).
Existe, então uma “grave” contradição, tão grave que
provocou controvérsias e dissidências no século passado, entre o que se convencionou
chamar “marxismo-leninismo” soviético ou estalinista ( o chamado Diamat) e “marxismo ocidental”?
Não ma parece que exista. A questão ontológica suprema já
fora resolvida com a criação do materialismo histórico e dialético. A resposta
à pergunta estava dada, a opção tomada definitivamente. A questão merece
conservar-se? No plano da ciência, não tem mais razão de ser. Ou melhor: a
questão pode pôr-se, mas a resposta estava dada. A questão era, de resto e no
fundo, do interesse dos teólogos, fossem eles padres ou filósofos académicos
ideólogos da burguesia. O materialismo dialético demonstrou, culminando a longa
sucessão de grandes filósofos materialistas, que não existe Espírito algum fora
da natureza e seu criador. No que respeita ao outro lado da “questão suprema”, a identidade
do ser e do pensar, leia-se o que Engels escreveu nesta obra e em todas
outras coerentemente. Recordem-se as
famosas e já muito estudadas Teses de Marx contra Feuerbach. A gnosiologia
marxiana-engelsiana é claríssima. Lenine, que não conheceu algumas das obras de
Marx e Engels, soube expô-las desenvolvidamente no incontornável livro de pura filosofia (Materialismo e Empiriocriticismo),
que José Barata-Moura nos explicou no seu Sobre Lénine e a Filosofia. Entre a interpretação gnosiológica de
Lenine e a gnosiologia de Marx e Engels não se topa nenhuma contradição.
Lembremos apenas que o Trabalho, tão brilhantemente analisado por Engels
conforme já referimos, é, entre outras práticas sociais, a principal mediação
do homem com a natureza, relação fundamental no processo histórico do
conhecimento. Existem conhecimentos verdadeiros? Os nossos atuais
“pós-modernos”, ou alguns deles, torcem o nariz quando se fala na Verdade, bisnetos que são das teses
reacionárias de Nietzsche nessa matéria. Evidentemente que existem
conhecimentos verdadeiros. Engels expõe contra o tal Herr Dühring a questão no
capítulo “A moral e o direito-verdades eternas”. “E, sem dúvida, há verdades
tão bem fundadas, que a menor dúvida a respeito delas nos pareceria sinónimo de
loucura: dois e dois são quatro, os três ângulos do triângulo valem dois retos”.
Não existem, isso sim, verdades absolutas e eternas, “assim, por regra, nos
trabalhos verdadeiramente científicos evitam-se as expressões dogmáticas e
morais de erro e de verdade”.
A meu ver o único
problema que se poderá levantar relativamente ao papel que Engels reserva à
Filosofia tem que ver com questões ou áreas que não são ciências particulares:
a Ética, o Direito, a Estética, a Política. Contudo, a Dialética da Natureza não foi escrita para essa finalidade. A
“Introdução à «Dialéctica da Natureza»”, foi escrita em 1875-1876; o “Antigo
Prefácio ao «Anti-Dühring». Sobre a Dialéctica”, foi escrito 1878. Os
manuscritos da Dialéctica da Natureza
levaram vários anos a serem escritos. Não faz sentido que hajam aflorações
“revisionistas” entre os dois escritos.
Ora, no Anti-Duhring
Engels analisa a moral e o direito atacando questões como “verdades eternas”, A
igualdade”, “Liberdade e necessidade”. Engels não afirma que as áreas que
listámos acima constituem ou podem vir a constituir ciências particulares. A
Moral não é uma ciência, nem a Política ou a Estética. Integram-se na Teoria
geral de que falámos atrás. Sem o contributo das ciências (naturais e sociais)
e do método dialético (isto é, sem o materialismo dialético e histórico), não
poderemos compreender as origens e o desenvolvimento dessas práticas humanas. A
Ética e o Direito serão porventura os terrenos preferidos da dominação de
classe. A Política não é tratada com este título, desenvolve-se na “Segunda
Parte”, capítulos “Teoria da violência” e na Terceira Parte “socialismo”. A
Política, filosofia da Política se preferirmos, julgo que é precisamente a
consequência final e coerente de uma boa ontologia. No Prefácio II do Anti-Dühring
Engels esclarece-nos quaisquer dúvidas que tivéssemos relativamente à coerência
das teses com o pensamento de Marx: “Como a filosofia que exponho neste livro foi,
na sua maior parte, fundada e desenvolvida por Marx, e em menor parte por mim,
era muito natural que não escrevesse esta exposição sem o seu conhecimento.
Antes da impressão li-lhe todo o manuscrito e, no que respeita ao décimo
capítulo da segunda parte, dedicado à economia política (Sobre a História crítica), foi o próprio Marx quem o escreveu (…)
De resto, tivemos sempre por costume ajudarmo-nos um ao outro nos assuntos
relativos à ciência”. Separar e opor Engels a Marx, ou vice-versa, é, portanto,
um ato de má-fé. De resto, em O Capital
lemos enunciados suficientes sobre a moral e o direito e a política está logo
no subtítulo: Crítica da Economia
Política. A Filosofia em O Capital
é outra obra estupenda de José Barata-Moura. “ No domínio da economia política
a investigação científica livre não encontra o mesmo inimigo que em todos os
outros domínios. A natureza peculiar da matéria que manuseia chama ao campo da
luta contra ela as paixões mais violentas, mais mesquinhas e mais odiosas do
peito humano, as Fúrias do interesse privado” ( O Capital, Prefácio à primeira edição, 1867)
Engels não se serve do método metafísico para analisar as
raízes da moral, do direito e da política, como fazem aqueles filósofos que
“explicam” essas e outras atividades humanas na pura esfera das ideias.
Grandiosos conceitos da Moral e da Política: Liberdade, Igualdade, etc. somente
se podem compreender no contexto histórico, nas lutas sociais, nas
reivindicações das classes e dos estratos sociais, nas conquistas e nas
derrotas, nos interesses económicos, culturais, políticos, que se entrelaçam no
todo de uma determinada organização rasgada por contradições. Engels maneja com
mestria a Dialética a propósito do choque das burguesias, cujo interesse maior
era a “livre concorrência”, com os entraves corporativos e os privilégios, “a
situação económica exigia a liberdade e a igualdade de direitos”.
A “Teoria” de que nos fala Engels não é, portanto, uma
filosofia separada soberanamente dos métodos empíricos das ciências naturais e
sociais ( e isto aplica-se também à Moral, Direito, Política, Estética); não é,
sobretudo, a aplicação de um método “metafísico”, mas, sim, dialético. Personalidades
influentes no partido social-democrata, como Bernstein e outros, que depressa
abandonaram o marxismo, acusaram Engels de “positivista”, “economicista” e
outros epítomes. A mais do que tardia publicação de obras de Engels, como
referimos acima, é em grande parte da responsabilidade dele e seus compadres. O
perfil “positivista” de Engels foi glosado vezes sem fim pelo século vinte em
diante por muitos que não o leram (doença que ataca também os filósofos), ou
leram-no “demasiado” bem, isto é não lhes convindo de todo uma Dialéctica que
conduz à necessidade de um revolucionamento das relações sociais, na base das
quais estão as relações de produção. A abordagem engelsiana das questões da
moral, do direito, da violência na História, dos efeitos do trabalho e outras
práticas sociais nas conceções religiosas, políticas, etc., patente nas duas
obras que temos vindo a citar, demonstra claramente, sem equívocos, que ele rejeita
quaisquer “determinismos” (expressão que ele aplica à ciência e aos
materialismos do século XVIII). Engels e Marx mais do que uma vez afirmaram que
as ideologias, as lutas de ideias e crenças, desempenharam nos acontecimentos
que eles próprios referem (as guerras religiosas, por exemplo) um papel de
relevo., ou seja: de retroação.
Não se compreenderia que Engels lançasse a filosofia borda
fora. Se assim fosse o materialismo dialético desistiria do combate contra as
posições idealistas que brotam espontaneamente ou propositadamente no seio dos próprios
movimentos progressistas. Se assim fosse Engels não teria combatido o Sr. Dühring.
Esta obra, publicada em vida com várias edições, é um exemplo genial da luta
ideológica, ou, se preferirmos, dos combates da filosofia no seu mais
acutilante recorte.
Existem diferenças de exposição entre o Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã e a Dialética da Natureza, sobretudo entre o
primeiro texto e as frases que citámos do Anti-Dühring (Noções gerais), “o que
subsiste de toda antiga filosofia e conserva uma existência própria é a teoria
do pensamento e suas leis – a lógica formal e a dialética. – Todo o resto se
resolve na ciência positiva da natureza e da história”? Certamente. Numa
exposição explana-se o problema ontológico, a filosofia materialista dialética,
nesta última não o faz tal e qual. Contudo, é uma contradição real, uma
alteração profunda de posições? Não creio de modo algum. Repare-se na afirmação
que antecede e conduz à conclusão de que “torna-se supérflua, etc.”: “ o
materialismo sintetiza os progressos recentes das ciências naturais”, tal
materialismo é essencialmente dialético e, portanto, não “implica nenhuma
filosofia sobreposta às outras ciências ”, “Desde o momento em que se pede a
cada ciência que dê conta da sua posição no conjunto total das coisas e do conhecimento
das coisas, torna-se supérflua uma ciência especial do conjunto”. É isto que
ele afirma. A filosofia materialista histórica e dialética não veio para se sobrepor
às ciências naturais, a sua ontologia fundamental, pelo contrário, solicita,
por um lado, o concurso da Ciência para expor e demonstrar a tese do primado da
Matéria sobre o Espírito e, por outro, exige que a Ciência tome consciência de
que a dialética está lá, nos fenómenos, quer os cientistas queiram ou não. Por
exemplo: já não era útil uma “filosofia da História” à maneira hegeliana
(idealista), quando a História se estava a constituir como uma área de estudo
que compreende necessariamente, se quiser ser objetiva, requisitos científicos.
Por requisitos científicos, Engels entende, sobretudo mas não só, o
materialismo histórico e dialético. Uma História que explique os acontecimentos
sem recorrer fundamentalmente às relações económicas, não vai à raiz. Paira no
céu nebuloso das puras ideias políticas acima das tempestades das crises económicas
e das lutas de classe.
Engels, insisto, abandona a atividade crítica filosófica?
Não vejo como nem quando: Na Dialética da
Natureza, capítulo “ciências naturais e filosofia”, destroçando as teses do
materialismo grosseiro de Büchner, Vogt, Molesschott, porque estes, isso sim,
pretendiam suprir a falta de ciência com um materialismo pseudo-científico
dogmático e grosseiro, defende a filosofia dos ataques de que estava a ser
alvo. “Quem mais insulta a filosofia são escravos precisamente dos piores
resíduos vulgarizados da pior das filosofias” (sublinhado por mim, N.P.). “
Do que se trata de saber é se querem (os naturalistas) deixar-se influenciar
por uma filosofia má na moda ou por uma forma de pensamento teórico baseado no
conhecimento da história do pensamento e das suas conquistas”. “Os naturalistas
concedem à filosofia uma vida aparente, ao contentarem-se com os despojos da
velha metafísica. Somente quando a ciência da natureza e da história hajam
assimilado a dialética, sobrará e desaparecerá, absorvida pela ciência positiva
toda a quinquilharia filosófica, com a exceção da pura teoria do pensamento”.
O materialismo histórico (que demonstrou a historicidade de
todos os fenómenos sociais), o materialismo dialético (que reflete a
contraditoriedade de tudo, o “trabalho do negativo” para a mudança), é,
portanto, a boa filosofia…A filosofia em lugar de morrer, reanimou-se. Os combates
da filosofia dialética contra o seu contrário, a metafísica, contra a filosofia
burguesa que é a sua ideologia, ganham fôlego e urgência. Engels exemplifica:
urge combater as filosofias “naturalistas” que querem aplicar às sociedades as
teorias darwinianas. Sabemos nós bem como esta ideologia, já em voga ao tempo
de Engels, promoveu a justificação das desigualdades sociais, dos racismos, dos
genocídios. O liberalismo do século dezanove, essa filosofia, ou seja, essa
ideologia burguesa, cobria com o manto diáfano dos direitos e liberdades os
crimes horrendos do colonialismo. A vida e obra de Marx e Engels constituem a
prova provada de que a ideologia burguesa não passou impune. Produziram o mais
eficiente instrumento de guerra contra os opressores. Produziram ciência, mas
denunciaram implacavelmente os erros dos cientistas e pseudo-cientistas, e,
sobretudo, a instrumentalização da ciência pelo capitalismo. Tal como a
filosofia, a ciência pode ser boa ou má…
Outro problema foi o chamado “humanismo”.
A partir da década de
1920 o cisma com o processo revolucionário em curso na Rússia transitou também,
evidentemente, para a filosofia. Os primeiros teóricos foram G. Lukács e Korsch.
Os escritos de juventude de Marx surgiram nessa altura e serviram de
ponta-de-lança. Não se tinha na mira no início a Dialética da Natureza pois não
era conhecida, mas, sobretudo o Anti-Duhring, a introdução de Marx aos designados Grundriss:
“O resultado geral a que
cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me
de guia para meus estudos,
pode ser formulado, resumidamente,
assim: na produção social da
própria existência, os homens
entram em relações
determinadas, necessárias, independentes
de sua vontade; essas
relações de produção correspondem a um
grau determinado de
desenvolvimento de suas forças produtivas
materiais. A totalidade
dessas relações de produção constitui a
estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva
uma superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem
formas sociais determinadas
de consciência. O modo de produção
da vida material condiciona o
processo de vida social, política e
intelectual. Não é a
consciência dos homens que determina o seu
ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua
consciência.”, e, julgo eu, o livro de Lenine “Materialismo e
Empiriocriticismo”. Veio acrescentar-se, como gasolina sobre o fogo, as
pimeiras edições da Dialética da Natureza…
A crítica ao materialismo histórico e dialético centrava-se na
ausência ou pelo menos desvalorização do “indivíduo”, isto é do “sujeito” e da
“subjectividade” que imputavam ao “revisionismo” de Engels sobretudo. Ontologia
natural ou ontologia social? Filosofia ou ciência? A crítica à ciência (ao
pensamento científico) emrgia com a devida influ~encia dos escritos de
Heidegger…Posições que chegaram ao radicalismo de se considerar a ciência como
burguesa toda ela. O livro de Sartre “O Ser e o Nada” subiu à ribalta. O
período pós-guerra agravou o cisma, período áureo do chamado “Humanismo”. Nos
marxistas críticos a ontologia continha um problema: a realidade , que é a que
conhecemos, não existe independentemente do conhecimento que vamos produzindo
sobre ela; por conseguinte, parte dela é a mente que a constitui. Posição
idealista por excelência.
Contra uma filosofia da natureza (teoria natural), contra a
substituição da filosofia (A ética e a estética que tanto interessou Lukács),
contra a Teoria que unificará as ciências naturais e sociais. O “humanismo” entrou
em crise com o estruturalismo, nomeadamente com as criticas de L. Althusser,
Teve a sua época. O contexto histórico ajuda a compreender esse atractivo. Não
foram poucos os filósofos burgueses que o apoiaram conforme as suas
conveniências na “Guerra Fria”. As obras e teses de Engels revelaram-se, a meu
ver, mais marxistas do que o “marxismo humanista”. O seu idealismo “ético” é
bem uma ilustração das reservas que o jovem Marx alimentava contra o idealismo
(=ideologismo) que persegue a Filosofia como um destino.
É fácil acusar Marx e Engels de “revisionismo” nas obras de
maturidade, o difícil é prová-lo. Houve evidentemente correções e acertos,
porventura alguma ambiguidade que não pôde ser esclarecida, contudo revela-se
uma caminhada progressiva, mas coerente, dos primeiros escritos para se
produzir, por fim, essas obras magistrais que são O Capital e o Anti-Dühring.
A Dialética da natureza é uma obra de
época? Não me custa admiti-lo, no sentido em que a ciência estava a dar passos
gigantescos e rápidos desde Faraday, Maxwell e Darwin, com aplicações
revolucionárias nos meios de produção e descoberta da historicidade das
manifestações da Matéria viva. Nesta época em que escrevo, conhecidos os
progressos fantásticos cento e tal anos após, só posso repetir o pensamento de
Engels e de Marx: a ciência será tanto mais e melhor revolucionária quanto se
libertar do controlo e finalidades do Capital e servir a emancipação dos
trabalhadores. Poder-se-á dizer o mesmo sobre a ideologia (idealismo) da Ética
e do Direito de que tanto gostam de pregar os nossos filósofos mediáticos. Não
são ciências particulares, são filosofias e doutrinas. Os seus progressos,
quando aplicados efetivamente, exprimem as conquistas das massas populares, dos
movimentos reivindicativos da opinião pública mundial, constituem o plano
supraestrutural das lutas de classe. A filosofia é o plano teórico privilegiado
desses confrontos. Jamais Engels poderia abandonar a filosofia encarada neste
ponto de vista. Engels e Marx “economicistas”? A resposta dele já fora dada em
diversas cartas (leia-se a carta a Conrad Schmidt, de 27 de Outubro de 1890,
talvez a mais esclarecedora de todas, onde se fala do disputado termo reflexo, e do Estado e do Direito).
Marx e Engels demonstraram desde a juventude profundas
reservas relativamente à Filosofia, na medida em que cada filósofo se arrogava
haver descoberto verdades eternas sobre o mundo e a vida, numa operação
exclusivamente intelectual desligada da práxis ( o mundo independente das
ideias). Uma das enfermidades a que a Filosofia não está imune advém do facto
da divisão social do trabalho, do divórcio entre o trabalho manual e
intelectual. Também estes fundamentos da teoria de Marx e Engels haveriam de
servir tanto para condenar os intelectuais ao pecado original, como para
condenar o marxismo pelo seu putativo “cientificismo positivista” que
desprezava a filosofia. A estes últimos
bastar-lhes-ia ser honestos e ler com atenção o que Engels escreve sobre
filosofia (e ontologia!) no Antigo
Prefácio ao « Anti-Düring».
A atualidade das obras de maturidade de Engels é, a meu ver,
flagrante, também neste ponto crucial: as críticas que determinados usos da
tecno-ciência suscitam, as contradições entre revolucionárias descobertas
(instrumentos de trabalho e produção, de alimentos, de que fala Engels no
capítulo “O Trabalho no processo de transformação”, Dialética da Natureza) e os seus resultados: mais opressão, miséria
e alienação.
E como é mais do que tempo para terminar, encerro com um
comentário infelizmente breve e acaso superficial que regressa à ontologia com
que iniciei este texto. Existe entre os filósofos que explicam a
pós-modernidade “às crianças”, aquela parte maior de ideólogos reaccionários,
um fastio pelas categorias filosóficas de totalidade, verdade, universalidade
(valores universais), fundamento, aparência/essência, e aí fora. Desprezando a
Dialética e ostentando um ceticismo arrogante, mergulham nos lameiros de novos
irracionalismos disfarçados de particularismos e relativismos, enviam com
soberano desprezo para o caixote do lixo as filosofias e doutrinas que
impulsionaram os grandes progressos (embora contraditórios) da Modernidade,
classificados de meras “narrativas”, isto é “ficções” e “discursos retóricos”.
Na realidade o que os incomoda é o marxismo, não é seguramente o liberalismo de
que eles são efetivamente fervorosos adeptos nesta versão terrorista do
neo-liberalismo. Para os contrariar é necessário demonstrar que a Modernidade é
um longo período com progressos e conquistas do capitalismo que eles próprios
defendem, mas também de revoluções e revoltas populares para maior emancipação
(esses pós-modernos classificam de “narrativa” ultrapassada) de direitos que
ora nos querem sonegar, também e sobretudo do surgimento do proletariado e, com
ele, das doutrinas socialistas que viriam a culminar na Revolução Russa de 1917
e no Estado Social da segunda metade do século vinte. Reconhecem-se sem
dificuldade importantes mudanças a partir das últimas décadas do século passado
(técnicas, sociais, culturais), destacando-se o colapso dos regimes socialistas
do Leste e, aproveitando-se disso, o triunfo do capitalismo neo-liberal. O eminente
cientista David Harvey faz uma descrição desses fenómenos na sua obra “A
Condição Pós-Moderna” que é correta na minha opinião. Nesse sentido não me
custa aceitar que transitámos para um novo ciclo que poder-se-á designar de
“pós-modernidade”. Também me oponho a “verdades absolutas”, a crenças num
Progresso linear e teleológico, a um racionalismo produtivista, à ideologia
burguesa da “livre iniciativa” (ao liberalismo em suma), ao domínio absoluto de
uma única “narrativa”.
tomas também de um
determinado irracionalismo que percorre as teses cépticas de muitos
pós-modernos (com as raras excepções de Perry Anderson e F. Jameson). Movimento
pós-moderno que rejeita trabalhar com totalidades, valores universais, Verdade
e conhecimento objectivo, as grandes doutrinas filosóficas a que chamam
“Grandes narrativas” (ficções, discursos) que significa rejeitarem a ideologia,
sobretudo, ou quase só, o marxismo. Rejeita postular o “fundamento” para poder
rejeitar os fundamentos materiais do ser social. Rejeita, em suma, as teorias
de emancipação humana, isto é, a própria possibilidade de emancipação-
alternativa ao capitalismo.
Já tivemos a hegemonia do físico-quimismo e do biologismo
darwinista e eugenista entre o termo do século XIX e as primeiras décadas do
século XX, que atingiu todos: nazi-fascistas, liberais, marxistas
sociais-democratas. Tivemos o positivismo imperial. A fé absoluta na
tecno-ciência porque aos capitalistas trazia abundantes lucros. Essa fé no
Progresso.
Foi nesse período que apreceram marxistas (?) a quererem
completar” de fora, a teoria económica de Marx (com Mach), e contra o qual saíu
a terreiro Lenine (;aterialismo e Empiriocriticismo), ou com Kant no plano
ético…
A Modernidade – As correntes filosóficas “pós-modernas”
consideram que as “grandes narrativas” de “emancipação humana” faliram. A
Modernidade terminou os seus dias. Existem diferentes correntes nesse
movimento, com posições polítcas muito diferenciadas, é necessário não confundi-las;
vão desde as reacionárias, às neo-anarquistas (diferenciadas pelo seu lado) e
às que se conservam no largo espectro dos marxismos. Adopto a posição de que os
novos fenómenos sociais e as novas características do capitalismo são evidentes
e suficientemente largas e profundas para ser impossível recusar aceitar-se
novos conceitos para um novo quadro geral que podemos sem dificuldade de maior
classificar como “pós-modernidade”. O que me obriga a colocar alguns problemas
e reservas:
1.
As ideologias não morreram. A ideologia burguesa
conserva-se. O capitalismo encontra-se na sua fase mais aguda e crítica do
imperialismo. Apesar de algumas alterações no conteúdo e nas formas da
ideologia burguesa, a burguesia continua a existir e a prosseguir as suas finalidades
fundamentais.
2.
A doutrina liberal (filosofia burguesa) que foi
o eixo principal da ideologia da Modernidade desde o século XVII, é agora o
neo-liberalismo.
3.
O liberalismo não foi, porém, a única filosofia
e ideologia da Modernidade. Já no século XVI O livro de Tomás More, “A Utopia”,
marcou uma diferença com enorme influência posterior, sobretudo nos escritores
utopistas do século XVIII (Morelly, Dom Deschamps, Mably, etc.),e em Rousseau,
Diderot, para citar apenas os filósofos mais influentes. Durante a Revolução
Francesa opuseram-se às ideias liberais as correntes da Esquerda, tanto no
interior dos jacobinos como à sua esquerda. G. Babeuf e o Movimento dos Iguais
lançaram o primeiro manifesto comunista, inspirando-se em Morelly. Rousseau
veio a ser nesta Revolução o principal mentor, e ele não defendera o
liberalismo. O socialismo tornou-se, desde Saint-Simon, Owen, e outros
doutrinadores célebres, a oposição no interior da Modernidade. Esta, portanto,
não foi homogénea, mas profundamente contraditória. Todo o século XIX foi de
lutas pelo cumprimento das promessas que o liberalismo pregava (nas diversas
revoluções que liderou), ou, mais radicalmente, a favor de doutrinas desejavam
realizar efetivamente o que o liberalismo jamais poderia querer realizar enquanto
filosofias e ideologias burguesas que o eram e sempre o foram apesar das
grandes diferenças que o capitalismo foi sujeito durante séculos.
4.
Desde modo desde os inícios da Modernidade que
existiram, e combateram-se, diferentes versões de liberalismo (Kant não era
igual a outros liberais, nem Hegel) e doutrinas completamente contrárias. A
ideia reducionista de que a Modernidade foi toda igual, sem contradições, é
completamente errada. As lutas de classes sempre existiu (camponeses, pequena
burguesia, grande burguesia, proletários), a consolidação do capitalismo fez-se
à custa de guerras e outros violentos confrontos. As lutas ideológicas foram
intensas. A ideia de Progresso não foi entendida da mesma maneira. A grande
burguesia que conciliou diversas ocasiões com a aristocracia ou com as
monarquias absolutas e os “despotismos iluminados” beneficiou sem dúvida das
doutrinas filosóficas de grandes pensadores (Maquiavel, Boécio, Hobbes,
Montesquieu, etc.), porém outros outro tanto grandes não exprimiram os seus
interesses, ou iam mais além. Chamo “excedente” a esse mais-além, que se
encontra em Espinosa, no próprio J. Locke, Rousseau, Diderot, Kant, Hegel. Em
quase todos os grandes filósofos que defendiam a propriedade privada e os
direitos políticos que convergiam com as reivindicações das classes e camadas
burguesas, a emancipação humana não se restringia às reivindicações imediatas
da grande burguesia comercial e, em seguida, manufactureira, iam muito além
dessas camadas. Marx mostrou que a classe ascendente apresenta-se como
representante do género humano, dos interesses e necessidades naturais
(“direitos naturais”), da natureza humana; as suas reivindicações mistificam-se
como direitos universais. Na verdade, muitos desses direitos são universais. Ao
tempo as instituições políticas que se reivindicavam ou se constituíram
(Inglaterra, Revoluções do século XVII) foram grandes avanços civilizacionais,
às vezes classificadas como meras utopias. O “excedente” é um conjunto de
concepções (propostas, soluções para os grandes problemas da Justiça, da Moral,
do Direito, da Ciência) em que o filósofo acredita efectivamente e que julga
trazerem a Paz perpétua (Kant). Não sendo uma utopia típica (romances de
viagens a ilhas governadas pela melhor das repúblicas, como eram usuais)
aproximam-se delas, contêm um elã, um impulso utópico. São produtos autónomos
do pensamento, porque o pensamento goza de autonomia, não é um mero reflexo
mecânico da economia ou das bandeiras político-partidárias.
A Modernidade é também a época da
grande Revolução Russa de 1917 e das revoluções nacionalistas e
independentistas. A Revolução Russa e a URSS inauguraram uma época nova que
ainda não fechou, bem pelo contrário. A visão que temos do Modernismo é geralmente percebida como
positivista, tecnocêntrica e racionalista, o modernismo universal tem sido
identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no
planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padronização do
conhecimento e da produção. O pós-modernismo, em contraste, privilegia a
heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do
discurso cultural. A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de
todos os discursos totalizantes são o marco do pensamento pós-moderno.
Segundo Eagleton (1987), o pós-modernismo assinala a morte das
metanarrativas, cuja função terrorista secreta era fundamentar e legitimar a
ilusão de uma história humana universal.
A ciência e a filosofia devem abandonar suas grandiosas reivindicações
metafísicas e ver a si mesmas, mais modestamente, como um conjunto de
narrativas.
5.
A idéia
de Moderno teve suas bases no que Habermas chama de projeto da modernidade que surge durante o século XVIII. A idéia
era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando
livremente e criativamente em busca da emancipação e do enriquecimento da vida
diária. O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da
necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais.
6.
O desenvolvimento de formas racionais de
organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação de
irracionalidades do mito, da religião, da superstição, libertação do uso
arbitrário do poder...(HARVEY, 2004:23).
NOZES PIRES
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