sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Receita para um "jet-set" nacional - Mia Couto


.
.
Já vimos que, em Moçambique (em Angola é pior), não é preciso ser rico. O essencial é parecer rico. Entre parecer e ser vai menos que um passo, a diferença entre um tropeço e uma trapaça. No nosso caso, a aparência é que faz a essência.
Daí que a empresa comece pela fachada, o empresário de sucesso comece pelo sucesso da sua viatura, a felicidade do casamento se faça pela dimensão da festa (em Angola, para além de um convite “de luxo”, cada vez mais sofisticado, para um lugar cada vez mais “chique”, acrescenta-se uma lista obrigatória de lojas – as mais caras de preferência – com as prendas devidamente referenciadas). A ocasião, diz-se, é que faz o negócio. E é aqui que entra o cenário dos ricos e candidatos a ricos: a encenação do nosso "jet-set". O "jet-set" como todos sabem é algo que ninguém sabe o que é. Mas reúne a gente de luxo, a gente vazia que enche de vazio as colunas sociais (a revista ”Caras” é o nosso protótipo). O jet-set moçambicano está ainda no início. Aqui seguem umas dicas que, durante o próximo ano, ajudarão qualquer pelintra a candidatar-se a um jet-setista. Haja democracia! As sugestões são gratuitas e estão dispostas na forma de um pequeno manual por desordem alfabética:


Anéis - São imprescindíveis. Fazem parte da montra. O princípio é: quem tem boa aparência é bem aparentado. E quem tem bom parente está a meio caminho para passar dos anéis do senhor à categoria de Senhor dos Anéis. O jet-setista nacional deve assemelhar-se a um verdadeiro Saturno, tais os anéis que rodeiam os seus dedos. A ideia é que quem passe nunca confunda o jet-setista com um magaíça, um pobre, um coitado. Deve-se usar jóias do tipo matacão, ouros e pedras preciosas tão grandes que se poderiam chamar de penedos preciosos. A acompanhar a anelagem deve exibir-se um cordão de ouro, bem visível entre a camisa desabotoada.


Boas maneiras - Não se devem ter. Nem pensar. O bom estilo é agressivo, o arranhão, o grosseiro. Um tipo simpático, de modos afáveis e que se preocupa com os outros? Isso, só uma pessoa que necessita de aprovação da sociedade. O jet-setista nacional não precisa de aprovação de ninguém, já nasceu aprovado. Daí os seus ares de chefe, de gajo mandão, que olha o mundo inteiro com superioridade de patrão. Pára o carro no meio da estrada atrapalhando o trânsito, fura a bicha, passa à frente, pisa o cidadão anónimo. Onde os outros devem esperar, o jet-setista aproveita para exibir a sua condição de criatura especial. O jet-setista não espera: telefona. E manda. Quando não desmanda.


Cabelo - O nosso jet-setista anda a reboque das modas dos outros. O que vem dos americanos: isso é que é bom. Espreita a MTV e fica deleitado com uns moços cuja única tarefa na vida é fazer de conta que cantam. Os tipos são fantásticos, nesses video-clips: nunca se lhes viu ligação alguma com o trabalho, circulam com viaturas a abarrotar de miúdas descascadas. A vida é fácil para esses meninos. De onde lhes virá o sustento? Pois esses queridos fazem questão em rapar o cabelo à moda militar, para demonstrar a sua agressividade contra um mundo que os excluiu mas que, ao que parece, lhes abriu a porta para uns tantos luxos. E esses andam de cabelo rapado. Por enquanto.


Cerveja - A solidez do nosso matreco vem dos líquidos. O nosso candidato a jet-setista não simplesmente bebe. Ele tem de mostrar que bebe. Parece um reclame publicitário ambulante. Encontramos o nosso matreco de cerveja na mão em casa, na rua, no automóvel, na casa de banho. As obsessões do matreco nacional variam entre o copo e o corpo (os tipos ginasticam-se bem). Vazam copos e enchem os corpos (de musculaças). As garrafas ou latas vazias são deitadas para o meio da rua. Deitar a lata no depósito do lixo é uma coisa demasiado "educadinha". Boa educação é para os pobres. Bons modos são para quem trabalha. Porque a malta da pesada não precisa de maneiras. Precisa de gangs.
Respeito? Isso o dinheiro não compra. Antes vale que os outros tenham medo.


Chapéu - É fundamental. Mas o verdadeiro jet-setista não usa chapéu quando todos os outros usam: ao sol. Eis a criatividade do matreco nacional: chapéu ele usa na sombra, no interior das viaturas e sob o tecto das casas. Deve ser um chapéu que dê nas vistas. Muito aconselhável é o chapéu de cowboy, àla Texana. Para mostrar a familiaridade do nosso matreco com a rudeza dos domadores de cavalos. Com os que põe o planeta na ordem. Na sua ordem.(Aqui até pegou na classe dirigente do país…)


Cultura - O jet-setista não lê, não vai ao teatro. A única coisa que ele lê são os rótulos de uísque. A única música que escuta são umas "rapadas e hip-hopadas" que ele generosamente emite da aparelhagem do automóvel para toda a cidade. Os tipos da cultura são, no entender do matreco nacional, uns desgraçados que nunca ficarão ricos.
O segredo é o seguinte: o jet-setista nem precisa de estudar. Nem de ter Curriculum Vitae. Para quê? Ele não vai concorrer, os concursos é que vão ter com ele. E para abrir portas basta-lhe o nome. O nome da família, entenda-se. (E quando finge estudar, não esconde os seus dotes de “cabulador” ou de “corruptor”, que lhe permitem terminar o curso e apresentar um pomposo cartão de visita de “Mestre, Doutor, Professor João das Garotas”).


Carros - O matreco nacional fica maluquinho com viaturas de luxo. É quase uma tara sexual, uma espécie de droga legalmente autorizada. O carro não é para o nosso jet-setista um instrumento, um objecto. É uma divindade, um meio de afirmação. Se pudesse o matreco levava o automóvel para a cama. E, de facto, o sonho mais erótico do nosso jet-setista não é com uma Mercedes. É, com um Mercedes.
Fatos - Têm de ser de Itália. Para não correr o risco do investimento ser em vão, aconselha-se a usar o casaco com os rótulos de fora, não vá a origem da roupa passar despercebida. Um lencinho pode espreitar do bolso, a sugerir que outras coisas podem de lá sair.


Óculos escuros - Essenciais, haja ou não haja claridade. O style - ou em português, o estilo - assim o exige. Devem ser usados em casa, no cinema, enfim, em tudo o que não bate o sol directo. O matreco deve dar a entender que há uma luz especial que lhe vem de dentro da cabeça. Essa a razão do chapéu, mesmo na maior obscuridade.


Simplicidade - A simplicidade é um pecado mortal para a nossa matrecagem. Sobretudo, se se é filho de gente grande. Nesse caso, deve-se gastar à larga e mostrar que isso de país pobre é para os outros. Porque eles (os meninos de boas famílias) exibem mais ostentação que os filhos dos verdadeiros ricos dos países verdadeiramente ricos. Afinal, ficamos independentes para quê?


Telemóvel - Ui, ui, ui! O celular ou telemóvel já faz parte do braço do matreco, é a sua mais superior extremidade inferior. A marca, o modelo, as luzinhas que acendem, os brilhantes, tudo isso conta. Mas importa, sobretudo, que o toque do celular seja audível a mais de 200 metros . Quem disse que o jet-setista não tem relação com a música clássica? Volume no máximo, pelo aparelho passam os mais cultos trechos: Fur Elise de Beethoven, a Rapsódia Húngara de Franz Liszt, o Danúbio Azul de Strauss.
No entanto, a melodia mais adequada para as condições higiénicas de Maputo é o Voo do Moscardo. Última sugestão : nunca desligue o telemóvel! O que em outro lugar é uma prova de boa educação pode, em Moçambique, ser interpretado como um sinal de fraqueza. Em Conselho de Ministros, na confissão da Igreja, no funeral do avô: mostre que nada é mais importante que as suas inadiáveis comunicações. Você é que é o centro do universo!


Mia Couto
.
.
.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Esta é a saudade...





Esta é a saudade: viver no afecto
E não ter morada no tempo
Estes são os desejos: conversa silenciosa
Horas diárias com a eternidade.

Esta é a vida. Até que de um ontem
suba a mais solitária de todas as horas
Tão sorridente, diferente das irmãs
que se calam eternamente.

Rainer Maria Rilke

sábado, 21 de novembro de 2009

Mitos e Lendas

Adam deriva de «terra vermelha». Quando o homem pecou, Deus amaldiçoou a «terra vermelha», destruiu a harmonia dos elementos naturais, introduzindo a corrupção e a morte (os antigos mitos e o próprio Platão sublinham este aspecto negativo da matéria). O filósofo místico Jacob Bohme escreveu (1612) que foi Lucífer quem lançou fogo à Natureza ao despertar a ira de Deus com a sua arrogância,«o barro transformou-se num montão de pedras, numa casa de miséria». As doutrinas cabalísticas, e Paracelso e Bohme falam de uma unidade interior e original que foi quebrada, surgindo os opostos. Esta dualidade, oposição, contraditoriedade, caracteriza o pensamento dos primitivos indo-europeus e vai atravessar a filosofia grega antiga. Adão seria andrógino, raça pura, que se perdeu (Platão desenvolve o mito na sua tese sobre o Amor, no diálogo O Banquete, ou Simpósio Sobre o Amor: as duas metades separadas que se procuram). O feminino que era essencial a Adão, antes de ser separado dele enquanto dormia, era a sua esposa celestial Sophia (sabedoria). Adão, que era um ser celestial, foi arrancado do mundo «interior» para fora dele, para o mundo exterior, convertendo-se numa «larva» material. Perdeu Sophia e anda errante, fantasmagórico.
A serpente era interpretada frequentemente como um dragão (figura mitológica de diversas religiões e mitologias do oriente ao extremo oriente, simultaneamente benfazeja e malfazeja).
A palavra «diabo» vem do latim diabolus, que por sua vez vem do grego diabolos, formado a partir de ballein, «lançar». Diaballein significa pois, na sua origem, «lançar de través». Logo, o diabo é aquele que lança palavras ou objectos para fora do seu caminho próprio ou do seu local próprio. «Satã», o «oponente», em hebraico. Génio persa do mal, Ahriman. «Lucifer», «o portador da luz», em latim.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

INCERTO

Declina o dia.


A chuva, represa,

Solta-se, dura e fria.

Sinto-me vago e desassossegado.

Sem pressa de escolher a palavra certa

Que acerte com um mundo decepado.

De quantos ideais se faz um rumo?

De quantas crenças se faz a miragem?

Véus, labirintos, fumo..



Declino a esperança.

Quantas vezes te chamei pelo nome?

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Ainda Caim

O texto «Caim» é pura ironia. A ironia é um recurso retórico que remonta aos gregos e romanos. Aristóteles refere-se-lhe. A ironia, não sendo um mero sarcasmo, é para levar a sério. Quando é boa desmonta os argumentos falaciosos do adversário. A fórmula principal é »Se» (Se ele diz que, então...). Por conseguinte, se a Bíblia, Velho Testamento, diz isto e aquilo (segundo as melhores traduções dela), logo...Adão e Eva foram injustamente castigados brutalmente por desejarem-se e desejarem o Conhecimento do Bem e do Mal (Moral, Ética, Filosofia,etc.). Se Javé (Deus) castigou Sodoma e Gomorra, com inocentes lá dentro (crianças e outros) foi brutal e injusto. Se castigou os egípcios para que Moisés pudesse fugir com o seu povo, com sete horríveis pragas, foi brutal (sobretudo para os inocentes), etc. etc. São estas histórias que se ensinam e nhum padre disse, se atreveu a dizer, que eram falsas, excepto aqueles que castigados brutalmente porque o disseram. Não é para se tomarem no sentido literal? Argumento falacioso e muito modernaço (durante séculos nunca a Igreja o disse e admitiu). Na falta de argumentos, diz-se que é simbólico o sentido...Simboliza o quê?? Só pode simbolizar a brutalidade de Javé, a sua desmedida vontade de domínio. Mas simboliza, se se preferir, mais: que a história do dilúvio foi «roubada» aos babilónios (está publicada) e que outras histórias inspiram-se e misturam-se com as lendas e crenças desses tempos desde a Pérsia à Índia. Ou seja, o Velho Testamento representa a atmosfera mental de um tempo (de crendices), exemplifica as religiões antigas que hoje já não têm suporte e que foi coligido e revisto de modo a moldar-se aos interesses de um povo, os hebreus, corpo doutrinário que lhes servia (e serve) para se julgarem os eleitos do único Deus. A moral que pregam é a submissão inquestionada aos desígnios de Deus (isto é, aos livros escritos por homens e aos dogmas em que assenta o domínio das igrejas). Disse.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

CAIM

Se Adão e Eva tiveram apenas dois filhos, Caim e Abel; se Caim matou Abel, a humanidade que foi povoando a terra, descende de Caim; se Caim foi um assassino, descendemos todos de um assassino, um fraticida; portanto, trazemos conosco dois estigmas: do Mal que os nossos Pais praticaram no Éden, e do Mal cometido por Caim. Caim que era hermafrodita pois que fez filhos sem mulher. Deste modo não foi Paulo de Tarso, fundador da Igreja, ou Pedro, se se preferir, que inventaram o pecado original (os) e o estigma (contra o qual a Igreja nos salva), mas o Antigo Testamento; por consequência, o cristianismo, o judaísmo e o maometanismo são idênticos, pois que todos eles aceitam dogmaticamente o Antigo Testamento.
Ao recuperar Caim e o seu acto e culpar Deus, Saramago extirpa o estigma (na verdade, tanto o primeiro como o segundo). A estratégia principal da(s) Igreja(s) cai pela base.
Obrigado, José!