segunda-feira, 22 de maio de 2023

 

Contos do antigamente

RONHA, O BURRO

Esta é a história de um burro que conheci. Na história cabem quatro personagens : o jumento que se chamava Ronha (já explico porquê), a Gabriela, o Marco e eu. A região onde se passou a história é Foz Côa e arrabaldes. Foi há muitos, muitos anos. O Marco era o mais velho, com os seus quinze anos bem espigados : de estatura que não prometia grandes alturas, um buço sobre o lábio que anunciava um bigodaço bem vulgar naquelas terras e tempos, rapagão de trabalho de lavoura, quarta classe mal tirada, excelente criatura. A Gabriela era da minha idade : nove anos, olhos azuis mais aguados que celestes, cabelo encrespado, de um castanho muito claro, que não esvoaçava ao vento, um narizito empinado, um riso que me deixava tonto de devoção. É verdade! Eu, um garotinho de olhos escuros que ascendia à nação judaica, senti pela minha amiguinha uma autêntica devoção. Tudo que ela dizia estava bem, tudo que ela fazia bem estava. Ora a minha pessoa que nunca foi, desde menino, propensa a ser domesticada, deixava-me então por ela cair em doce enlevo.
Mais algumas notas : o Marco era um dos muitos filhos de um abastado lavrador, a Gabriela menina querida de pais que se esfalfavam a trabalhar para não cair na pobreza.
Conhecemo-nos nas férias grandes. Os meus pais e irmãos eram oriundos da região de Foz Côa, menos eu que nasci num dos lugares para onde a profissão do meu pai nos deslocava. Nas férias grandes, porém, mandavam-me para a terra natal deles, onde ambos tinham os respetivos familiares.
E o burro, como é que aparece nesta história? Já lá vamos.
Desses dois verões maravilhosos lembro-me de muitos acontecimentos porque era tudo uma novidade para mim. Recordo a matança de um porco a que assisti arrepiado. Naqueles tempos, no campo, as coisas não eram como agora são: os putos assistiam a tudo e os adultos, absortos na responsabilidade dos seus afazeres, não nos ligavam nenhuma. Queriam lá saber se eu e a Gabriela ficávamos traumatizados como hoje em dia é vulgar dizer-se e temer-se? Eu vi o tremendo espetáculo da agonia de um enorme porco (a Gabriela só depois abriu os olhos)! Em seguida chamuscaram o pêlo, depois esquartejaram-no (uma parte para o matador ou magarefe, outras partes para os donos do animal, gordas fêveras assadas logo ali no pátio da casa grande do Marco. Foi nessa ocasião que a pequena Gabriela me pegou na mão, apertou-a com força com o susto da gritaria do bicho. E eu apaixonei-me por ela imediatamente, como se tivesse havido um relâmpago que me caísse na cabeça. A partir desse fausto (nefasto para o porco!) acontecimento adormecia com ela no pensamento e logo que acordava e me faziam comer um lauto pequeno almoço de papas, corria acelerado para a quinta do Marco com a esperança dele estar numa folga que me levasse a buscar a Gabriela. O Marco começava o trabalho da lavoura mal o sol nascia - era o começo da sua narrativa preferida: o relato da sua vida quando eu partia para longe no termo das férias. Nesse tempo de intermédio entre dois verões ele mal via a menina e a família dela.
Contudo, quando se abria uma folga logo aquela alma boa me levava a buscar a Gabriela à sua casita (era airosa com graciosas roseiras a emoldurar a frontaria). E ela à espera, é claro.
O Marco, adolescente, homem feito na pressa do trabalho duro, acompanhava-nos mas deixava para nós as nossas infantis brincadeiras. Frequentemente dava-nos as mãos e lá íamos os três a correr pelas veredas bordejadas de amendoeiras carregadas de frutos, e dos pessegueiros, das figueiras, dos vinhedos fartos. Estancava o passo aqui e acolá, para surripiar grossos figos maduros, a pingar mel, trepando aos muros de ardósia. Havia então um lugar que eu amava (e acho que a Gabriela sentia o mesmo) : uma larga e maternal figueira cuja ramagem tocava o solo! Ao pé dela, um poço, o chão húmido das águas entornadas por quem lá ia encher o balde. Nada melhor naqueles dias quase tórridos de verão (Foz Côa é muito quente no verão e muito fria nos invernos)! A sombra de uma figueira, um solo fresco atapetado de erva verdinha, a chuparmos os bagos de cachos de uvas pretas que havíamos larapiado. Os meus olhos judios procuravam o azul aguado e todo eu embandeirava em sorrisos...Que amor tão infantil e tão puro!
E o burro? Porque tinha esse nome desgraçado? Fora naturalmente o pai do Marco que lho dera. E porquê? Pois, porque o burrito era esperto suficientemente para não ser burro. Isto é: manhoso, fazia ronha sempre que não estava para aquelas. Fincava as patas no solo e ninguém conseguia arredá-lo dali, ora porque estava pacificamente à sombra naquelas tardes estivais, ora porque o haviam deixado a retouçar nas ervas. Por isso fazia ronha. E eu adorava aquele animal astuto. Sempre pronto para sair dos espaços da quinta e trotar pelos caminhos de pedra e lama seca.
Foi com ele e nele que fomos ao rio Côa. Só uma vez, porque a caminhada era longa e íngreme, sempre a descer e, no regresso, evidentemente a subir com alguma dificuldade. O Marco preparou um lanche à maneira dele : um chouriço, pão e uma garrafa de vinho da safra da quinta (olhando para trás, calculo que levava pelo menos meio litro!). A mãe da Gabriela pôs numa cestazinha pão de centeio que ela mesma fabricava - ainda hoje salivo quando lembro aquele pão! - e que ela untou com mel. E muita fruta é claro. O meu lanche foi um panado gigante de porco, que eu me apressei a dividir com o Marco em troca de uns pedaços de chouriço apimentado.
Eram oito da manhã. Tínhamos que partir cedo, a viagem era rija e o sol prometia vir a ser implacável com os miúdos. O Marco alabardou o jerico, os lanches nas mochilas, fomos buscar a pequena Gabriela e ala, que se faz tarde! A Gabriela subiu sem ajuda para cima do animal, era enérgica e atrevida ; eu ficaria humilhado se alguém me ajudasse e, portanto, zás! Num pulo ajeitei-me na albarda à frente da amiga. Pela descida abaixo não passou muito tempo até a menina entrelaçar as mãos na minha barriga e eu, enfunado de virilidade, tentei a muito custo manter-me de costas direitas. Quando o rio apareceu à nossa frente, quieto e lustroso, o Ronha acelerou o passo, trotou, as pedras eram soltas e lisas, eu escorreguei para diante, a Gabriela entre o riso e o susto agarrou-se à minha camisa e lá se foi a dita : rasgou-se! O jumento estancou de repente mas não pelos berros do dono, sim pela água que lhe chegou às patas. Ainda hoje penso que poderíamos ter sido lançados borda fora. Não fez mal : logo descemos da albarda com a ajuda do Marco, descalçámo-nos apressadamente e entrámos pelo rio adentro. É claro que o Marco não permitiu que a água nos ultrapassasse, a mim e à Gabriela, as barriguitas. O Marco conhecia bem o sítio. Era pouco profundo, a margem defendida por um extenso juncal. Pensar hoje que ali mesmo estavam à espera de serem descobertas as famosas gravuras do Côa! Talvez estivessem ao ar livre na outra margem, ou mais longe onde o rio atravessava terras sem vivalma. Naquele antigamente tudo era pobreza, abandono e, por isso, era forte e bela a natureza. Naquele sítio havia um fio de água que corria das rochas milenares. Nunca bebi depois água tão saborosa! Muitos anos depois fui internado num hospital com uma fratura muito grave em resultado de um acidente de viação. Pois era aquela água fresca e puríssima que lembrei sob o sofrimento da pós anestesia!
Tudo lá em baixo correu às mil maravilhas. O problema surgiu no regresso. O burro fez jus ao nome : manhoso, não queria sair da sombra de um salgueiro e da erva húmida que retouçava avidamente! Foi uma cena que se tornou muito complicada para o Marco. A tarde já ameaçava acabar, a subida ia levar-nos mais de hora e meia, senão duas, como convencer o burro? Não havia cenouras...Alto aí! A Gabriela, ladina, saca da sua cestinha uma colossal maçã! Com aquelas cores combinadas que faziam das maçãs da nossa infância um dos frutos mais irresistíveis! E quase que a mete na bocarra do Ronha, para logo a retirar! Ora o que fez ele? Naturalmente que a visão, o cheiro e o sabor de tal iguaria era demasiado e quedou-se vencido. Trepámos imediatamente para cima da albarda enquanto o dono o conduzia para cima do carreiro e lá foi ele a mastigar o doce fruto com que a menina o enganou. De nós os três ela era a mais inteligente.
Que nostalgia! Sei, Gabriela, que anos passados, casaste com o Marco e tiveram uma roda de filhos, Tu, professora primária, ele, herdeiro da quinta grande. Nunca mais vos vi.
Nunca mais voltei a esse verões da nossa infância. Que a tua família não se zangue - e porque se havia de zangar! - mas tu, menina querida, foste o meu primeiro amor e o meu primeiro beijo.

E foi esta a história onde se meteu o Ronha, o burro mais esperto que muita gente que conheci depois.
-------Nozes Pires----20/05/2923

  

  

sábado, 20 de maio de 2023

 A Terra é Redonda

O regicídio e a arte moderna – II

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Por LUIZ RENATO MARTINS*

A pincelada afiada e sintética de Édouard Manet destituiu a luz do seu poder simbólico

Direito natural das cores

Dentre todos os atentados que a pintura de Édouard Manet cometeu – de acordo com o “princípio da oposição violenta”, de Pierre Francastel – contra o dogma da unidade e da harmonia pictóricas, um dos mais fecundos (enquanto gerador de novas possibilidades sintáticas e que logo exercerá também papel decisivo como fator de transição da pintura para outro regime) consistiu no ataque à unidade da luz em favor da irrupção independente das cores.

A pincelada afiada e sintética de Édouard Manet destituiu a luz do seu poder simbólico. Nenhum sinal de algo congênere ao remorso e à nostalgia que tingiram com um verniz de melancolia e religiosidade a arte de Delacroix (1798-1863). Assim, Édouard Manet reduziu a luminosidade pictórica, ao pulverizá-la, à condição de matéria ou coisa similar a um resto de insumo ou resíduo físico, como porção de tinta não formalizada – que resta na tela e chama a atenção ainda hoje. De modo análogo, as cores deixaram de aparecer como representações unitárias da luz e por conseguinte da espiritualidade, para se apresentarem cruamente apenas em termos materiais. Fizeram-se opacas e distintas. Passaram a aderir estritamente à área ocupada da tela, impermeáveis umas às outras.[i]

Ceticismo físico

Desse modo a ideia da cor, conversível em signo e grau da unidade da luz – por sua vez, símbolo da unidade de tudo –, foi substituída pela noção de cor como fragmento – logo, matéria irredutível e sem outro valor que o de uso, ou seja, ancorada à situação. Assim, a opção tão ao gosto de Manet de avizinhar cores claras de claras e escuras de escuras, dispôs-se como estratégia armada especialmente para demarcar a guinada econômica em curso na Paris de Haussmann, como se configurasse um espaço loteado ou fragmentado segundo interesses privados. Ao remeter cada cor à individuação empírica e material dentro dos limites próprios a cada uma, tal manobra converteu-as em porções de uma nova visão de mundo, derivada antes da percepção separadora e da hostilidade inerente à concorrência e oposição dos interesses, do que do sentimento unificador.

Por isso, apesar de incontida, a indignação de Victor de Jankovitz, um crítico da época, fez-se à sua moda aguda e precisa no medir a novidade radical representada pela pintura antirromântica e anti-idealista de Olympia em termos de cor, luminosidade e visão geral.

Vale a pena voltar aos termos da exasperação de Victor de Jankovitz, que curiosamente perde o alcance da reflexão sem perder a capacidade de distinguir, a começar pela filiação realista do experimento pictórico em questão: “O autor nos representa, sob o nome de Olympia, uma jovem deitada sobre um leito, tendo por toda veste um laço de fita nos cabelos, e a mão, por folha de parreira. A expressão do rosto é aquela de um ser prematuro e dado ao vício; o corpo de uma cor apodrecida, recorda o horror do Necrotério (…) Ao lado dos erros de todos os gêneros e das incorreções audaciosas, encontra-se neste quadro um erro considerável, tornado impressionante nas obras dos realistas. Com efeito, se a maioria dos seus quadros afligem tanto à natureza e aos nossos olhos, é que a parte harmônica, que se liga à irradiação da luz e à atmosfera, é, por assim dizer, completamente sacrificada. De tanto eliminar o sentimento da alma, ou o espírito da coisa, na interpretação da natureza, as sensações dos olhos não lhes dão senão a cor local, como aos chineses, sem nenhuma combinação com o ar e a luz. Dir-se-ia que se trata de um ceticismo físico”.[ii]

Motim das sensações

Descartando-se o juízo de valor redondamente equivocado e algo cômico, o crítico notou e chamou de “ceticismo físico” a valorização cognitiva inédita da sensação e da fisiologia, de par com o esvaziamento do sentimento de unidade, outrora garantido pela premissa suprassensível do sujeito transcendental kantiano e reproduzido pela subjetividade romântica.

Implantou-se assim com a pintura de Édouard Manet um realismo cru e desalmado, que priorizava a sensação. Apareceram a diversidade das coisas e o conflito dos interesses. O desencantamento da luz, ao comportar a individuação e a materialização de cada cor, corresponde à experiência estética no mundo descontínuo; mundo sem unidade apriorística e, enquanto convertido em objeto de cálculo, passível apenas de unificação abstrata.

Conclui-se que o realismo republicano de Édouard Manet veio para instalar contra o unitarismo criacionista e contra o ilusionismo do “ancien régime” cromático o primado de uma disputa ou concorrência das cores. Se o branco e o preto reduzidos à sua inscrição como quantidades deixavam de simbolizar o espírito e as trevas, estabelecia-se o regime do livre-mercado das cores, francamente dissonantes como termos análogos de sensações distintas.

Para o entendimento do alcance histórico e político de tal passo, permitam-me insistir e até repisar que a unidade da luz constituíra uma verdadeira pedra angular para a tradição europeia dos dois séculos anteriores. Recordemos que o discurso pictórico do “luminismo” estabelecido ao longo do arco histórico iniciado por Caravaggio (1571-1610) e desenvolvido por Rembrandt (1606-69) e sucedâneos, e que se estendia pelo menos até a pintura romântica do “sublime”, ligava-se organicamente à ideia cartesiana de alma como substância ou natureza pensante e constituía, pois, o duplo ou o equivalente do ponto de vista judicativo do sujeito da razão.

A substituição na economia simbólica de tal dispositivo por outro – no qual o modelo monárquico e monocular da luz veio dar lugar ao choque das cores entre si, isto é, à impossibilidade da visão transitar suavemente de uma cor para outra – tem paralelo com mudanças radicais nas ordens econômica e social. Desse modo, a passagem difícil e abrupta de uma cor clara para outra, por exemplo, entre o branco, o creme e o rosa em Olympia, significava o fim do protocolo das conciliações tonais. Noutros termos, essa passagem escancarava a queda do olhar, precipitado das alturas em que prevalecia o “direito divino da infinitude e da transcendência” – integrando e unificando todas as cores –, para cair na sensibilidade crua da cartografia materialística dos interesses rivais – encarnados nas particularidades cromáticas.

Mas, em síntese, apesar da prevalência do princípio de oposição violenta sugerir uma situação conflituosa na qual se avivavam as diferenças como ruptura e caos, não se tratava ainda da fundação de um novo sistema visual. No caso, a cena assinalava antes desagregação generalizada e crise da ordem pictórica conturbada pela competição desenfreada das cores entre si. 

Totemismo das cores

Antes de chegarmos à colagem – que pareceu à primeira vista constituir uma revolução na pintura –, passemos por outro momento de sua preparação no reino das sensações. Van Gogh (1853-90) e Gauguin (1848-1903) potenciaram mediante novos usos e técnicas cromáticas a tendência elaborada antes por Manet, de constituição de entes cromáticos que se repeliam.

Desse modo, dissociaram o uso da cor da gramática do plano, vale dizer, da lógica da profundidade e da unidade, esvaziando criticamente a possibilidade ou a credibilidade do dispositivo da chamada “cor local”, ou seja, da cor subordinada à função de índice natural ou de autenticidade do objeto, independentemente da espontaneidade do sujeito da percepção. Assim, Van Gogh introduziu uma nova concepção da cor e dessa operação crítica titânica nasceram os muitos céus de sua pintura, vazados em cores e traços táteis, de proximidade e tons nunca vistos antes na pintura europeia.

Desse modo, depurada e potenciada analiticamente a ponto de absorver as funções legisladoras do desenho, a cor tornou-se o novo fundamento da representação espacial. Com efeito, ao ganhar com Van Gogh a espessura e o estatuto de matéria, a cor viabilizou um novo modo de representação espacial dos volumes e da distância entre as coisas. As relações de massa e distância passaram a se traduzir em correntes de energia evidenciadas pela cor e pelos vestígios materiais das pinceladas – estas, não mais signos, mas índices físicos, sinais tal um rastro de um evento material sobre uma superfície.

A substituição da linha pela cor como novo padrão de medida do espaço não deve ser subestimada: a obra madura de Cézanne (1839-1906) nasceu entre outros fatores também dessa espécie de luta das cores, esboçada na estadia de Van Gogh na Provença, destronando – tal uma horda primitiva que trucida o pai – o império do desenho (como duplo do entendimento e da razão) sobre as demais faculdades plásticas. No caso a cor passou a valer como o “fio de Ariadne”. Conduziu Van Gogh e Cézanne ao triunfo contra o labirinto das aparências. Permitiu-lhes – tal como outros meios analíticos também permitiram a Marx (1818-83) e a Freud (1856-1939) – ir além de uma ordem espiritualizada de representações sobre o homem e a vida social e assentar os pilares de uma nova economia e sintaxe pictórica em bases materiais.

Por isso talvez se possa falar na elaboração de novos princípios e nova regulação para a pintura a partir do direito natural de seus insumos (suportes, cores, pinceladas etc.). Assim, quando doravante o espaço aparecer implicado, será não mais como forma mental apriorística, mas antes como instância de teor afetivo-corporal – por exemplo, os fluxos de energia evidenciados por Van Gogh –, espaço, pois, resultante da determinação recíproca entre sujeito e objeto.

Foi a partir desse novo patamar tanto quanto de uma releitura dos vitrais pelo pintor e escritor simbolista Émile Bernard (1868-1941), que Gauguin se lançou, para reconceber a ordem pictórica em termos de campos de cor independentes e descontínuos, ditos “cloisonnés“. Hoje também podemos distingui-los como uma protocolagem. Dessa colagem primeva nasceu uma nova espécie de luz objetivada no quadro. Tal operação constituiu o vetor principal do discurso de Matisse (1869-1954). Liberto do tabu que o enobrecia, o desenho também renasceu, mas doravante não mais como reflexo do entendimento, e sim filho de extração plebeia da tatilidade – mas esta é outra história, a da garatuja como linha-lúmpen, que nos levaria por outras vias.

Em conclusão, a questão da representação da luz ou da produção do valor pictórico, inerente à tradição religiosa e metafísica da pintura ocidental, foi superada neste novo patamar histórico pela de sua fabricação segundo relações exclusivamente cromáticas e de choque – ou seja, relações estabelecidas somente a partir do trabalho vivo das cores e da sua articulação ao modo de colagem, como porções descontínuas. Desse modo, na economia do novo regime cromático materialista, passou-se à produção da luz gerada da própria pintura, e não a partir da representação ou da alusão a um fenômeno extra-pictórico e altamente simbólico, senão até abertamente metafísico. Em duas palavras, passou-se a contar desde então com uma luminosidade direta nascida, não alhures, mas fabricada do próprio contraste, ou seja, do atrito recíproco das cores na tela.

Com Matisse, deixou de haver verossimilhança na evocação de qualquer unidade prévia, seja aquela da luz metafísica que supunha o tonalismo, seja aquela da fluência orgânica e própria do tempo do fazer artesanal. As composições de Matisse apareceram como constituídas de superfícies evidentemente apartadas e heterogêneas. Só que essas partes interagiam provocativamente constituindo uma colagem ou uma nova síntese entre partes distintas, e que permaneciam enquanto tal – daí talvez a felicidade erótica ou a utopia materialista que as obras de Matisse prometiam.

Entretanto quero sublinhar que uso nesta breve suma da história da pintura moderna tempos verbais do pretérito, porque o efeito de todas essas telas na era atual do totalitarismo neoliberal, e também do dito “fim da história”, é bem outro do que a narrativa da irrupção materialista que acabo de lhes fazer. Mas a liquidação das condições de possibilidade da experiência estética é também outra história, que ora não cabe abordar. Falei-lhes até agora de um mundo e de uma sensibilidade que desapareceram.

*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). É autor, entre outros livros, de The Conspiracy of Modern Art (Haymarket/ HMBS).

Para ler o primeiro artigo da série clique em https://aterraeredonda.com.br/o-regicidio-e-a-arte-moderna/

Extrato da versão original (em português) do cap. 11, “De um almoço na relva às pontes de Petrogrado (notas de um seminário em Madrid): regicídio e história dialética da arte moderna”, do livro La Conspiration de l’Art Moderne et Autres Essais, édition et introduction par François Albera, traduction par Baptiste Grasset, Paris, éditions Amsterdam (2024, prim. semestre, proc. FAPESP 18/ 26469-9).

Notas


[i] Uma das manobras características de Manet, nesse sentido, consistia em explicitar o teor fabricado da representação da luz, mediante o contraste de cores foscas com brilhantes; por exemplo, em Street Singer (ca. 1862, Boston, Museum of Fine Arts) e em Un Moine en Prières (Monk in Prayer, 1865, Boston, Museum of Fine Arts).

[ii] «L’auteur nous représente, sous le nom d’Olympia, une jeune fille couchée sur un lit, ayant pour tout vêtement,  un noeud de ruban dans les cheveux, et la main pour feuille de vigne. L’expression du visage est celle d’un être prématuré et vicieux; le corps d’une couleur faisandée, rapelle l’horreur de la Morgue (…)

/ A côté d’erreurs de tous genres et d’audacieuses incorrections, on trouve dans ce tableau un défaut considérable, devenu frappant dans les oeuvres des réalistes. En effet, si la plupart de leurs tableaux affligent tant la nature et nos yeux, c’est que la partie harmonique qui tient aux rayonnements de la lumière et à l’atmosphère est pour ainsi dire complètement sacrifiée. A force d’éliminer le sentiment de l’âme, ou l’esprit de la chose, dans l’interprétation de la nature, les sensations des yeux ne leur donnent, comme aux Chinois, que la couleur locale nullement combinée avec l’air et le jour. On dirait du septicisme physique.” Apud T. J. CLARK, The Painting of Modern Life – Paris in the Art of Manet and His Followers, p. 96, n. 62 à p. 288, New Jersey, Princeton University Press, 1984.Olympia

sexta-feira, 19 de maio de 2023

in jornal PÚBLICO

A aldeia é um mundo

Esta gente que nasceu e viveu no campo já não tem nenhuma inteligência dos ecossistemas porque estes se alteraram radicalmente. Que sabem os alentejanos de um olival e de um amendoal intensivos?

“Mutação antropológica” é o grande tema das Cartas Luteranas, de Pasolini. Às vezes, usa uma variante – “degeneração antropológica” – para designar esse fenómeno que ele caracteriza como uma generalizada homologação cultural, de comportamentos, de estilos de vida. Hoje, este diagnóstico pasoliniano pode ser lido como uma das suas análises e posições políticas que seguem uma orientação aparentemente incompatível com o Pasolini revolucionário, escandaloso, “corsário”.

No entanto, depois de o termos lido, é muito provável que o conceito de “mutação antropológica” venha ao nosso encontro e sejamos assaltados pelo que nele permanece actual. Vou servir-me de uma experiência pessoal como ilustração: na aldeia alentejana onde resido parcialmente, assisti nos últimos dias a um princípio de sublevação popular porque a câmara municipal do concelho a que pertence esta freguesia decidiu colocar uma placa de estacionamento proibido na rua principal que não tem passeios, tem trânsito nos dois sentidos, e é uma via por onde circulam muitos camiões. Esta rua tem um pequeno supermercado que serve o consumo básico das pessoas da aldeia e arredores, o que faz com que ao longo da rua haja sempre automóveis estacionados, obrigando assim os peões a caminhar no meio da estrada.

Entretanto, a contestação defendendo a prioridade dos automóveis em relação aos peões e a manutenção de todos os poderes de expropriação do espaço público pelas carrocerias metálicas já produziu os efeitos desejados: os serviços da câmara que tinham colocado o sinal já o retiraram. Convém dizer que se pode estacionar nalgumas ruas adjacentes e que, mesmo nas horas de maior afluência, o cidadão que se abastece naquele supermercado só precisaria de andar a pé entre 50 a 100 metros.

Seria de esperar que os peões reclamassem por serem expulsos pelos carros para o meio da estrada, por não poderem caminhar à sombra, monopolizada pelos automóveis estacionados. Nem pensar. Não se forma um comité ad hoc de peões com a mesma facilidade com que se constitui um partido de automobilistas, mal surgem constrangimentos rodoviários que põem os automóveis tristes.

Peões, aqui, não significa nada: quem tem carro é sempre automobilista, mesmo quando atravessa a aldeia a pé; quem não tem carro pertence a uma classe desclassificada. O ideal-tipo, nestas paragens, não deve aparecer em público com nenhuma geringonça motorizada abaixo de um BMW, quando interpelado de maneira crítica tende a responder ao seu interlocutor com um “sabe quem eu sou?”, e deve sobretudo honrar o antigo arquétipo que uma personagem de Aparição, do Vergílio Ferreira, descrevia assim: “Não se podia ter mais do que a 4ª classe nem menos de 300 porcos”.

Nada disto é exclusivo desta aldeia, nem da região, nem sequer do país. E se o meu ponto de partida são os idiomatismos de uma aldeia, é à “mutação antropológica” que quero chegar. Pasolini observou logo nos anos 70 que “já não há povo” e que “o espírito popular desapareceu”, tanto nas grandes cidades como nos campos. O “definhamento cultural” produz este efeito: as pessoas da aldeia que acham que têm o direito de estacionar o carro à porta da mercearia enquanto compram o pão e o azeite não são do campo nem da cidade, não são do centro nem da periferia: são mutantes, do ponto de vista de uma antropologia cultural. Já não pertencem ao mundo da sua origem (porque este também desapareceu), mas também não coincidem com os modelos que mimetizam: são uma versão simétrica de um tipo (também ele um mutante) que na gíria regional se chama “agrobeto”.

Esta gente que nasceu e viveu no campo já não tem nenhuma inteligência dos meios, dos ecossistemas, porque estes se alteraram radicalmente. Que sabem os alentejanos de um olival e de um amendoal intensivos que agora fazem parte da sua paisagem e que reclamam pouco trabalho humano, realizado por imigrantes? Sabem muito pouco e, por isso, não se peça que tenham uma consciência ecológica, que percebam devidamente os signos, a linguagem, as informações que os outros seres não-humanos, prolixos e poderosos emissores e receptores, transmitem dolorosamente e até com acento trágico; não se peça que sejam competentes numa bio-semiótica que os novos tempos exigem.

De certo modo, eles vivem uma separação. O que dantes fazia parte de uma experiência que se sedimentava num saber transmissível, é agora só paisagem. Há quase um século, um lúcido intérprete da nossa modernidade chamou a isto “pobreza da experiência”.



Projecto de monumento de homenagem a Vasco Gonçalves, concebido pelo arq...