segunda-feira, 22 de maio de 2023

 

Contos do antigamente

RONHA, O BURRO

Esta é a história de um burro que conheci. Na história cabem quatro personagens : o jumento que se chamava Ronha (já explico porquê), a Gabriela, o Marco e eu. A região onde se passou a história é Foz Côa e arrabaldes. Foi há muitos, muitos anos. O Marco era o mais velho, com os seus quinze anos bem espigados : de estatura que não prometia grandes alturas, um buço sobre o lábio que anunciava um bigodaço bem vulgar naquelas terras e tempos, rapagão de trabalho de lavoura, quarta classe mal tirada, excelente criatura. A Gabriela era da minha idade : nove anos, olhos azuis mais aguados que celestes, cabelo encrespado, de um castanho muito claro, que não esvoaçava ao vento, um narizito empinado, um riso que me deixava tonto de devoção. É verdade! Eu, um garotinho de olhos escuros que ascendia à nação judaica, senti pela minha amiguinha uma autêntica devoção. Tudo que ela dizia estava bem, tudo que ela fazia bem estava. Ora a minha pessoa que nunca foi, desde menino, propensa a ser domesticada, deixava-me então por ela cair em doce enlevo.
Mais algumas notas : o Marco era um dos muitos filhos de um abastado lavrador, a Gabriela menina querida de pais que se esfalfavam a trabalhar para não cair na pobreza.
Conhecemo-nos nas férias grandes. Os meus pais e irmãos eram oriundos da região de Foz Côa, menos eu que nasci num dos lugares para onde a profissão do meu pai nos deslocava. Nas férias grandes, porém, mandavam-me para a terra natal deles, onde ambos tinham os respetivos familiares.
E o burro, como é que aparece nesta história? Já lá vamos.
Desses dois verões maravilhosos lembro-me de muitos acontecimentos porque era tudo uma novidade para mim. Recordo a matança de um porco a que assisti arrepiado. Naqueles tempos, no campo, as coisas não eram como agora são: os putos assistiam a tudo e os adultos, absortos na responsabilidade dos seus afazeres, não nos ligavam nenhuma. Queriam lá saber se eu e a Gabriela ficávamos traumatizados como hoje em dia é vulgar dizer-se e temer-se? Eu vi o tremendo espetáculo da agonia de um enorme porco (a Gabriela só depois abriu os olhos)! Em seguida chamuscaram o pêlo, depois esquartejaram-no (uma parte para o matador ou magarefe, outras partes para os donos do animal, gordas fêveras assadas logo ali no pátio da casa grande do Marco. Foi nessa ocasião que a pequena Gabriela me pegou na mão, apertou-a com força com o susto da gritaria do bicho. E eu apaixonei-me por ela imediatamente, como se tivesse havido um relâmpago que me caísse na cabeça. A partir desse fausto (nefasto para o porco!) acontecimento adormecia com ela no pensamento e logo que acordava e me faziam comer um lauto pequeno almoço de papas, corria acelerado para a quinta do Marco com a esperança dele estar numa folga que me levasse a buscar a Gabriela. O Marco começava o trabalho da lavoura mal o sol nascia - era o começo da sua narrativa preferida: o relato da sua vida quando eu partia para longe no termo das férias. Nesse tempo de intermédio entre dois verões ele mal via a menina e a família dela.
Contudo, quando se abria uma folga logo aquela alma boa me levava a buscar a Gabriela à sua casita (era airosa com graciosas roseiras a emoldurar a frontaria). E ela à espera, é claro.
O Marco, adolescente, homem feito na pressa do trabalho duro, acompanhava-nos mas deixava para nós as nossas infantis brincadeiras. Frequentemente dava-nos as mãos e lá íamos os três a correr pelas veredas bordejadas de amendoeiras carregadas de frutos, e dos pessegueiros, das figueiras, dos vinhedos fartos. Estancava o passo aqui e acolá, para surripiar grossos figos maduros, a pingar mel, trepando aos muros de ardósia. Havia então um lugar que eu amava (e acho que a Gabriela sentia o mesmo) : uma larga e maternal figueira cuja ramagem tocava o solo! Ao pé dela, um poço, o chão húmido das águas entornadas por quem lá ia encher o balde. Nada melhor naqueles dias quase tórridos de verão (Foz Côa é muito quente no verão e muito fria nos invernos)! A sombra de uma figueira, um solo fresco atapetado de erva verdinha, a chuparmos os bagos de cachos de uvas pretas que havíamos larapiado. Os meus olhos judios procuravam o azul aguado e todo eu embandeirava em sorrisos...Que amor tão infantil e tão puro!
E o burro? Porque tinha esse nome desgraçado? Fora naturalmente o pai do Marco que lho dera. E porquê? Pois, porque o burrito era esperto suficientemente para não ser burro. Isto é: manhoso, fazia ronha sempre que não estava para aquelas. Fincava as patas no solo e ninguém conseguia arredá-lo dali, ora porque estava pacificamente à sombra naquelas tardes estivais, ora porque o haviam deixado a retouçar nas ervas. Por isso fazia ronha. E eu adorava aquele animal astuto. Sempre pronto para sair dos espaços da quinta e trotar pelos caminhos de pedra e lama seca.
Foi com ele e nele que fomos ao rio Côa. Só uma vez, porque a caminhada era longa e íngreme, sempre a descer e, no regresso, evidentemente a subir com alguma dificuldade. O Marco preparou um lanche à maneira dele : um chouriço, pão e uma garrafa de vinho da safra da quinta (olhando para trás, calculo que levava pelo menos meio litro!). A mãe da Gabriela pôs numa cestazinha pão de centeio que ela mesma fabricava - ainda hoje salivo quando lembro aquele pão! - e que ela untou com mel. E muita fruta é claro. O meu lanche foi um panado gigante de porco, que eu me apressei a dividir com o Marco em troca de uns pedaços de chouriço apimentado.
Eram oito da manhã. Tínhamos que partir cedo, a viagem era rija e o sol prometia vir a ser implacável com os miúdos. O Marco alabardou o jerico, os lanches nas mochilas, fomos buscar a pequena Gabriela e ala, que se faz tarde! A Gabriela subiu sem ajuda para cima do animal, era enérgica e atrevida ; eu ficaria humilhado se alguém me ajudasse e, portanto, zás! Num pulo ajeitei-me na albarda à frente da amiga. Pela descida abaixo não passou muito tempo até a menina entrelaçar as mãos na minha barriga e eu, enfunado de virilidade, tentei a muito custo manter-me de costas direitas. Quando o rio apareceu à nossa frente, quieto e lustroso, o Ronha acelerou o passo, trotou, as pedras eram soltas e lisas, eu escorreguei para diante, a Gabriela entre o riso e o susto agarrou-se à minha camisa e lá se foi a dita : rasgou-se! O jumento estancou de repente mas não pelos berros do dono, sim pela água que lhe chegou às patas. Ainda hoje penso que poderíamos ter sido lançados borda fora. Não fez mal : logo descemos da albarda com a ajuda do Marco, descalçámo-nos apressadamente e entrámos pelo rio adentro. É claro que o Marco não permitiu que a água nos ultrapassasse, a mim e à Gabriela, as barriguitas. O Marco conhecia bem o sítio. Era pouco profundo, a margem defendida por um extenso juncal. Pensar hoje que ali mesmo estavam à espera de serem descobertas as famosas gravuras do Côa! Talvez estivessem ao ar livre na outra margem, ou mais longe onde o rio atravessava terras sem vivalma. Naquele antigamente tudo era pobreza, abandono e, por isso, era forte e bela a natureza. Naquele sítio havia um fio de água que corria das rochas milenares. Nunca bebi depois água tão saborosa! Muitos anos depois fui internado num hospital com uma fratura muito grave em resultado de um acidente de viação. Pois era aquela água fresca e puríssima que lembrei sob o sofrimento da pós anestesia!
Tudo lá em baixo correu às mil maravilhas. O problema surgiu no regresso. O burro fez jus ao nome : manhoso, não queria sair da sombra de um salgueiro e da erva húmida que retouçava avidamente! Foi uma cena que se tornou muito complicada para o Marco. A tarde já ameaçava acabar, a subida ia levar-nos mais de hora e meia, senão duas, como convencer o burro? Não havia cenouras...Alto aí! A Gabriela, ladina, saca da sua cestinha uma colossal maçã! Com aquelas cores combinadas que faziam das maçãs da nossa infância um dos frutos mais irresistíveis! E quase que a mete na bocarra do Ronha, para logo a retirar! Ora o que fez ele? Naturalmente que a visão, o cheiro e o sabor de tal iguaria era demasiado e quedou-se vencido. Trepámos imediatamente para cima da albarda enquanto o dono o conduzia para cima do carreiro e lá foi ele a mastigar o doce fruto com que a menina o enganou. De nós os três ela era a mais inteligente.
Que nostalgia! Sei, Gabriela, que anos passados, casaste com o Marco e tiveram uma roda de filhos, Tu, professora primária, ele, herdeiro da quinta grande. Nunca mais vos vi.
Nunca mais voltei a esse verões da nossa infância. Que a tua família não se zangue - e porque se havia de zangar! - mas tu, menina querida, foste o meu primeiro amor e o meu primeiro beijo.

E foi esta a história onde se meteu o Ronha, o burro mais esperto que muita gente que conheci depois.
-------Nozes Pires----20/05/2923

  

  

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