sexta-feira, 19 de maio de 2023

in jornal PÚBLICO

A aldeia é um mundo

Esta gente que nasceu e viveu no campo já não tem nenhuma inteligência dos ecossistemas porque estes se alteraram radicalmente. Que sabem os alentejanos de um olival e de um amendoal intensivos?

“Mutação antropológica” é o grande tema das Cartas Luteranas, de Pasolini. Às vezes, usa uma variante – “degeneração antropológica” – para designar esse fenómeno que ele caracteriza como uma generalizada homologação cultural, de comportamentos, de estilos de vida. Hoje, este diagnóstico pasoliniano pode ser lido como uma das suas análises e posições políticas que seguem uma orientação aparentemente incompatível com o Pasolini revolucionário, escandaloso, “corsário”.

No entanto, depois de o termos lido, é muito provável que o conceito de “mutação antropológica” venha ao nosso encontro e sejamos assaltados pelo que nele permanece actual. Vou servir-me de uma experiência pessoal como ilustração: na aldeia alentejana onde resido parcialmente, assisti nos últimos dias a um princípio de sublevação popular porque a câmara municipal do concelho a que pertence esta freguesia decidiu colocar uma placa de estacionamento proibido na rua principal que não tem passeios, tem trânsito nos dois sentidos, e é uma via por onde circulam muitos camiões. Esta rua tem um pequeno supermercado que serve o consumo básico das pessoas da aldeia e arredores, o que faz com que ao longo da rua haja sempre automóveis estacionados, obrigando assim os peões a caminhar no meio da estrada.

Entretanto, a contestação defendendo a prioridade dos automóveis em relação aos peões e a manutenção de todos os poderes de expropriação do espaço público pelas carrocerias metálicas já produziu os efeitos desejados: os serviços da câmara que tinham colocado o sinal já o retiraram. Convém dizer que se pode estacionar nalgumas ruas adjacentes e que, mesmo nas horas de maior afluência, o cidadão que se abastece naquele supermercado só precisaria de andar a pé entre 50 a 100 metros.

Seria de esperar que os peões reclamassem por serem expulsos pelos carros para o meio da estrada, por não poderem caminhar à sombra, monopolizada pelos automóveis estacionados. Nem pensar. Não se forma um comité ad hoc de peões com a mesma facilidade com que se constitui um partido de automobilistas, mal surgem constrangimentos rodoviários que põem os automóveis tristes.

Peões, aqui, não significa nada: quem tem carro é sempre automobilista, mesmo quando atravessa a aldeia a pé; quem não tem carro pertence a uma classe desclassificada. O ideal-tipo, nestas paragens, não deve aparecer em público com nenhuma geringonça motorizada abaixo de um BMW, quando interpelado de maneira crítica tende a responder ao seu interlocutor com um “sabe quem eu sou?”, e deve sobretudo honrar o antigo arquétipo que uma personagem de Aparição, do Vergílio Ferreira, descrevia assim: “Não se podia ter mais do que a 4ª classe nem menos de 300 porcos”.

Nada disto é exclusivo desta aldeia, nem da região, nem sequer do país. E se o meu ponto de partida são os idiomatismos de uma aldeia, é à “mutação antropológica” que quero chegar. Pasolini observou logo nos anos 70 que “já não há povo” e que “o espírito popular desapareceu”, tanto nas grandes cidades como nos campos. O “definhamento cultural” produz este efeito: as pessoas da aldeia que acham que têm o direito de estacionar o carro à porta da mercearia enquanto compram o pão e o azeite não são do campo nem da cidade, não são do centro nem da periferia: são mutantes, do ponto de vista de uma antropologia cultural. Já não pertencem ao mundo da sua origem (porque este também desapareceu), mas também não coincidem com os modelos que mimetizam: são uma versão simétrica de um tipo (também ele um mutante) que na gíria regional se chama “agrobeto”.

Esta gente que nasceu e viveu no campo já não tem nenhuma inteligência dos meios, dos ecossistemas, porque estes se alteraram radicalmente. Que sabem os alentejanos de um olival e de um amendoal intensivos que agora fazem parte da sua paisagem e que reclamam pouco trabalho humano, realizado por imigrantes? Sabem muito pouco e, por isso, não se peça que tenham uma consciência ecológica, que percebam devidamente os signos, a linguagem, as informações que os outros seres não-humanos, prolixos e poderosos emissores e receptores, transmitem dolorosamente e até com acento trágico; não se peça que sejam competentes numa bio-semiótica que os novos tempos exigem.

De certo modo, eles vivem uma separação. O que dantes fazia parte de uma experiência que se sedimentava num saber transmissível, é agora só paisagem. Há quase um século, um lúcido intérprete da nossa modernidade chamou a isto “pobreza da experiência”.



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