quinta-feira, 24 de março de 2016

FÁBULAS



FÁBULAS – O Sr. Deputado

Morreu na cama. Hotel de 5 estrelas, suite de luxo. Toda a comunicação social relatou o funesto acontecimento. “Morreu o Deputado Rodoberto M. Albuquerque e Sá”. As televisões omitiram o contexto. Na verdade, o coração do Sr. Deputado não resistiu ao peso-pluma de uma “acompanhante” (belíssima, dizem as más-línguas) sobre o tórax. As redes sociais encarregaram-se desta parte, com admiradores e adversários a digladiarem-se com aquele calor espontâneo com que alguns austrolopitecos comunicam entre si.
A vida do morto estava muito acima de disputas caseiras. O seu funeral foi grandioso. Centenas de curiosos aplaudiram a passagem solene do féretro. Ilustres personalidades públicas, entrevistadas no local, foram unânimes na firme convicção de que os despojos deveriam ser depositados no Panteão Nacional. A proposta iria ser discutida “atempadamente” (sic) na Assembleia da República.
Rodoberto Maria Albuquerque e Sá nascera num palacete setecentista no ano em que o general Franco invadiu a Espanha. Descendia de fidalgos cuja origem se perdia na alcova adúltera de Dom Sancho I. Oitavo filho, por ordem cronológica, bem cedo deu sinais de que a escola não era a sua vocação, excepto o pátio do recreio, embora todos os filhos do rico proprietário Afonso Maria Albuquerque e Sá gozassem dos favores especiais dos mestres. O pai finou-se mal fizera cinco décadas, a herança foi repartida pelos herdeiros, cabendo ao primogénito a maior fatia do bolo. Rodoberto, vinte e um anos feitos, vendeu o seu quinhão e despachou-o em menos de um fósforo em estadias faustosas no Palace Hotel de Mónaco e nos cabarés de Paris.
A mãe foi firme: “O menino gozou? Agora faça-se à vida!”. E Rodoberto fez a mala e rumou para Moçambique, onde um tio era dono de uma infinita plantação de coqueiros. Durante uns tempos ajudou na administração do território, dormindo a sesta com uma preta de cada lado da rede, repousando das noitadas na cidade da Beira. O tio despachou-o sem mais aquelas para Lourenço Marques repetindo as palavras da irmã: “Menino, faça-se à vida!”. E Rodoberto fez-se homem na cidade que haveria de tornar-se uma das mais belas do sul de África. Empregou-se num armazém que vendia a retalho os vinhos de zurrapa que a Metrópole exportava. Apanhado em flagrante a roubar a caixa foi trabalhar para uma pequena fábrica cervejeira. O produto era muito mais cobiçado que o carrascão. Rodoberto demonstrou finalmente todos os seus dotes de empresário, a fábrica converteu-se num empório, a tal ponto que o tio de Nampula já o elogiava aos amigos terra tenentes “Temos homem!”. Especialista em impingir a cerveja nas aldeias e colonatos, Rodoberto enriqueceu. Escolheu com visão de contabilista uma senhora muito séria e excelente herdeira de uma importante loja de fazendas, casou e fez dois filhos, um dos quais morreria ao volante de um Maserati na estrada do Bilene, e o outro ingressou na Escola Militar. O presidente da Câmara apresentou Rodoberto ao governador da colónia que o nomeou assessor para os assuntos económicos. Na década de cinquenta com a política de colonização acelerada de Salazar, Rodoberto alugou um navio mais velho que Matusalém e protagonizou uma das façanhas gloriosas desse período áureo: arregimentou milhares de emigrantes, fugidos da fome da metrópole, e arremessou-os para os confins da selva, pintada em folhetos atractivos como o novo El Dorado. Foi condecorado várias vezes com pompa e circunstância pelo governador em pessoa, classificado para todos os efeitos como “um homem leal ao Regime” e o chefe local da Pide passou a tratá-lo com o respeito que a máfia só dedica aos seus. Influente na política e nos negócios de monopólio, fluente na língua inglesa, depressa encontrou nos governantes sul-africanos do apartheid protecção para um futuro que se adivinhava nebuloso. Foi por altura em que eu estudava penosamente para os exames do 7º ano liceal no café Nicola que conheci Rodoberto: um empregado de mesa negro veio comunicar-me, com servilismo fingido que “O Senhor Rodoberto está a chamar!”. E estava. Fazia-me largos gestos da mesa dos fundos. Perguntou-me pela minha mãe, quis saber como corriam os estudos, prestou-se a ajudar-me se viesse a procurar emprego. Nunca mais o vi em África. Viajei para a universidade do Porto um mês depois.
O filho militar, ascendera a oficial superior e foi um dos artífices da arte de eliminar aldeias rebeldes do mapa. Na cidade da Beira, onde tecia a teia com que mantinha capturadas as boas-consciências que traficavam com o Maláui e a África do Sul, Rodoberto caiu gravemente doente. Recomposto ao fim de um mês de internamento, assustado e provisoriamente humilde, buscou a bênção salvífica do Bispo. Este escusou-se, porém, pois que o conhecia de ginjeira, e reencaminhou-o para as mãos de um apagado capelão militar. Quando a guerra se revelava perdida, ou pelo menos num impasse, Rodoberto afastou-se ostensivamente das ligações perigosas com a Pide e os sul-africanos e começou a rondar os negros que presumia serem, ou virem a ser, quadros importantes da Frelimo. Aquando da independência Rodoberto foi, portanto, apresentado num comício público como “um amigo dos africanos”. Na realidade dispunha de conhecimentos inigualáveis na produção de um produto sem cor política, embora a cerveja fosse loira.
Sucedida essa aurora luminosa que foi o dia 25 de Abril, Rodoberto alinhou sem hesitações na corte de Spínola, participou nas tentativas de golpe de estado do general, nos atentados terroristas do MDLP, e aguardou bem protegido em Espanha o desenrolar dos acontecimentos do 25 de Novembro. Regressou quando a tempestade passou e limpou o nome com uma amnistia oportuna.
Tacteou com a ronha dos gatos o poder que emergia do Partido Socialista e filiou-se sem dar muito nas vistas. A discrição cautelosa passou-lhe depressa. Em eleições autárquicas candidata-se pelo PS à vice-presidência da Câmara de uma importante cidade do Norte e dá um contributo decisivo à vitória, prometendo empregos e habitação social aos mais desfavorecidos. Quatro anos depois é acusado de peculato, porém um escritório poderoso de advogados de Lisboa obtém-lhe a absolvição com facilidade. Aproxima-se a mudança de turno: a Direita conquista o poder, Rodoberto bate com a porta na cara dos seus confrades socialistas e alista-se nas hostes aguerridas de Cavaco Silva. Entretanto, resolve subir mais um degrau: ingressa numa universidade privada e alcança em ano e meio os graus de doutor e mestre. Escolhido de imediato para a lista da capital ascende a deputado. No decurso de quinze anos é sucessivamente eleito, sem que alguma vez houvesse discursado. Faltava regularmente, viajava para o estrangeiro regularmente, jantava no Gambrinus regularmente. Reencontrei Rodoberto num desses jantares. Apresentado como seu parente, mostrou lembrar-se de mim perfeitamente, acolheu-me com aquela simpatia irradiante que lhe permitia ter amigos em todos os quadrantes. Ou quase. Convidou-me, entre dois uísques, a fazer parte do lóbi que chefiava no parlamento; declinei, não por escrúpulos mas por via da profissão que eu abraçara com gosto ou sem ele; arrependo-me hoje amargamente, pois gozaria de uma reforma muito confortável, o que não é o caso vertente.
Neste ano em que escrevo Rodoberto estava há muito reformado da política parlamentar.  Uma pensão gorda, direito a estadias gratuitas nos melhores hotéis de Xangai e Luanda em recompensa pelos serviços prestados nas privatizações, uma conta choruda na Suíça, quarto exclusivo no resort Conrad Algarve, um filho no estado-maior da NATO, um neto assessor do Primeiro-Ministro, uma jovem amante jornalista da televisão e outra jovem intérprete no Parlamento Europeu, que lhe deviam inúmeros favores. Enviuvara há trinta anos, o que lhe permitia usufruir da tolerância das elites lisbonenses.
O corpo do Sr. Deputado Rodoberto Maria Albuquerque e Sá, descendente de um filho bastardo de Dom Sancho I, “Merece o Panteão Nacional”, lê-se em título de caixa-alta num tablóide de referência. “ O país inteiro espera que se faça justiça a quem tão altos serviços prestou à Pátria”. Cavaco Silva, entrevistado pela RTP1, não disse que sim nem que não:” Cabe à Assembleia da República e aproveito para transmitir as minhas mais sinceras condolências ao filho do ilustre português Rodoberto Maria Albuquerque e Sá, que desempenha as mais elevadas responsabilidades na Aliança de que Portugal faz orgulhosamente parte”.
P.S. Os nomes são fictícios pois que o Sr. Deputado é meu parente por via do seu casamento com uma tia minha. Pedimos desculpa aos vivos se acaso ferimos susceptibilidades sem que fosse esse, de modo nenhum, o nosso propósito.
NOZES PIRES


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