FÁBULAS – O Sr. Deputado
Morreu na cama. Hotel de 5
estrelas, suite de luxo. Toda a comunicação social relatou o funesto acontecimento.
“Morreu o Deputado Rodoberto M. Albuquerque e Sá”. As televisões omitiram o
contexto. Na verdade, o coração do Sr. Deputado não resistiu ao peso-pluma de
uma “acompanhante” (belíssima, dizem as más-línguas) sobre o tórax. As redes
sociais encarregaram-se desta parte, com admiradores e adversários a
digladiarem-se com aquele calor espontâneo com que alguns austrolopitecos
comunicam entre si.
A vida do morto estava muito
acima de disputas caseiras. O seu funeral foi grandioso. Centenas de curiosos
aplaudiram a passagem solene do féretro. Ilustres personalidades públicas,
entrevistadas no local, foram unânimes na firme convicção de que os despojos
deveriam ser depositados no Panteão Nacional. A proposta iria ser discutida
“atempadamente” (sic) na Assembleia da República.
Rodoberto Maria Albuquerque e Sá
nascera num palacete setecentista no ano em que o general Franco invadiu a
Espanha. Descendia de fidalgos cuja origem se perdia na alcova adúltera de Dom
Sancho I. Oitavo filho, por ordem cronológica, bem cedo deu sinais de que a
escola não era a sua vocação, excepto o pátio do recreio, embora todos os filhos
do rico proprietário Afonso Maria Albuquerque e Sá gozassem dos favores
especiais dos mestres. O pai finou-se mal fizera cinco décadas, a herança foi
repartida pelos herdeiros, cabendo ao primogénito a maior fatia do bolo.
Rodoberto, vinte e um anos feitos, vendeu o seu quinhão e despachou-o em menos
de um fósforo em estadias faustosas no Palace Hotel de Mónaco e nos cabarés de
Paris.
A mãe foi firme: “O menino gozou?
Agora faça-se à vida!”. E Rodoberto fez a mala e rumou para Moçambique, onde um
tio era dono de uma infinita plantação de coqueiros. Durante uns tempos ajudou
na administração do território, dormindo a sesta com uma preta de cada lado da
rede, repousando das noitadas na cidade da Beira. O tio despachou-o sem mais
aquelas para Lourenço Marques repetindo as palavras da irmã: “Menino, faça-se à
vida!”. E Rodoberto fez-se homem na cidade que haveria de tornar-se uma das
mais belas do sul de África. Empregou-se num armazém que vendia a retalho os
vinhos de zurrapa que a Metrópole exportava. Apanhado em flagrante a roubar a
caixa foi trabalhar para uma pequena fábrica cervejeira. O produto era muito mais
cobiçado que o carrascão. Rodoberto demonstrou finalmente todos os seus dotes
de empresário, a fábrica converteu-se num empório, a tal ponto que o tio de
Nampula já o elogiava aos amigos terra tenentes “Temos homem!”. Especialista em
impingir a cerveja nas aldeias e colonatos, Rodoberto enriqueceu. Escolheu com
visão de contabilista uma senhora muito séria e excelente herdeira de uma
importante loja de fazendas, casou e fez dois filhos, um dos quais morreria ao
volante de um Maserati na estrada do Bilene, e o outro ingressou na Escola
Militar. O presidente da Câmara apresentou Rodoberto ao governador da colónia
que o nomeou assessor para os assuntos económicos. Na década de cinquenta com a
política de colonização acelerada de Salazar, Rodoberto alugou um navio mais
velho que Matusalém e protagonizou uma das façanhas gloriosas desse período
áureo: arregimentou milhares de emigrantes, fugidos da fome da metrópole, e
arremessou-os para os confins da selva, pintada em folhetos atractivos como o
novo El Dorado. Foi condecorado
várias vezes com pompa e circunstância pelo governador em pessoa, classificado
para todos os efeitos como “um homem leal ao Regime” e o chefe local da Pide
passou a tratá-lo com o respeito que a máfia só dedica aos seus. Influente na
política e nos negócios de monopólio, fluente na língua inglesa, depressa
encontrou nos governantes sul-africanos do apartheid protecção para um futuro que se adivinhava nebuloso. Foi por altura em que eu
estudava penosamente para os exames do 7º ano liceal no café Nicola que conheci
Rodoberto: um empregado de mesa negro veio comunicar-me, com servilismo fingido
que “O Senhor Rodoberto está a chamar!”. E estava. Fazia-me largos gestos da
mesa dos fundos. Perguntou-me pela minha mãe, quis saber como corriam os
estudos, prestou-se a ajudar-me se viesse a procurar emprego. Nunca mais o vi
em África. Viajei para a universidade do Porto um mês depois.
O filho militar, ascendera a
oficial superior e foi um dos artífices da arte de eliminar aldeias rebeldes do
mapa. Na cidade da Beira, onde tecia a teia com que mantinha capturadas as
boas-consciências que traficavam com o Maláui e a África do Sul, Rodoberto caiu
gravemente doente. Recomposto ao fim de um mês de internamento, assustado e
provisoriamente humilde, buscou a bênção salvífica do Bispo. Este escusou-se,
porém, pois que o conhecia de ginjeira, e reencaminhou-o para as mãos de um apagado
capelão militar. Quando a guerra se revelava perdida, ou pelo menos num
impasse, Rodoberto afastou-se ostensivamente das ligações perigosas com a Pide
e os sul-africanos e começou a rondar os negros que presumia serem, ou virem a
ser, quadros importantes da Frelimo. Aquando da independência Rodoberto foi,
portanto, apresentado num comício público como “um amigo dos africanos”. Na
realidade dispunha de conhecimentos inigualáveis na produção de um produto sem
cor política, embora a cerveja fosse loira.
Sucedida essa aurora luminosa que
foi o dia 25 de Abril, Rodoberto alinhou sem hesitações na corte de Spínola,
participou nas tentativas de golpe de estado do general, nos atentados
terroristas do MDLP, e aguardou bem protegido em Espanha o desenrolar dos acontecimentos
do 25 de Novembro. Regressou quando a tempestade passou e limpou o nome com uma
amnistia oportuna.
Tacteou com a ronha dos gatos o
poder que emergia do Partido Socialista e filiou-se sem dar muito nas vistas. A
discrição cautelosa passou-lhe depressa. Em eleições autárquicas candidata-se
pelo PS à vice-presidência da Câmara de uma importante cidade do Norte e dá um
contributo decisivo à vitória, prometendo empregos e habitação social aos mais
desfavorecidos. Quatro anos depois é acusado de peculato, porém um escritório
poderoso de advogados de Lisboa obtém-lhe a absolvição com facilidade. Aproxima-se
a mudança de turno: a Direita conquista o poder, Rodoberto bate com a porta na
cara dos seus confrades socialistas e alista-se nas hostes aguerridas de Cavaco
Silva. Entretanto, resolve subir mais um degrau: ingressa numa universidade
privada e alcança em ano e meio os graus de doutor e mestre. Escolhido de
imediato para a lista da capital ascende a deputado. No decurso de quinze anos
é sucessivamente eleito, sem que alguma vez houvesse discursado. Faltava
regularmente, viajava para o estrangeiro regularmente, jantava no Gambrinus
regularmente. Reencontrei Rodoberto num desses jantares. Apresentado como seu
parente, mostrou lembrar-se de mim perfeitamente, acolheu-me com aquela
simpatia irradiante que lhe permitia ter amigos em todos os quadrantes. Ou
quase. Convidou-me, entre dois uísques, a fazer parte do lóbi que chefiava no
parlamento; declinei, não por escrúpulos mas por via da profissão que eu abraçara
com gosto ou sem ele; arrependo-me hoje amargamente, pois gozaria de uma
reforma muito confortável, o que não é o caso vertente.
Neste ano em que escrevo
Rodoberto estava há muito reformado da política parlamentar. Uma pensão gorda, direito a estadias gratuitas
nos melhores hotéis de Xangai e Luanda em recompensa pelos serviços prestados
nas privatizações, uma conta choruda na Suíça, quarto exclusivo no resort
Conrad Algarve, um filho no estado-maior da NATO, um neto assessor do
Primeiro-Ministro, uma jovem amante jornalista da televisão e outra jovem
intérprete no Parlamento Europeu, que lhe deviam inúmeros favores. Enviuvara há
trinta anos, o que lhe permitia usufruir da tolerância das elites lisbonenses.
O corpo do Sr. Deputado Rodoberto
Maria Albuquerque e Sá, descendente de um filho bastardo de Dom Sancho I, “Merece
o Panteão Nacional”, lê-se em título de caixa-alta num tablóide de referência. “
O país inteiro espera que se faça justiça a quem tão altos serviços prestou à
Pátria”. Cavaco Silva, entrevistado pela RTP1, não disse que sim nem que não:”
Cabe à Assembleia da República e aproveito para transmitir as minhas mais
sinceras condolências ao filho do ilustre português Rodoberto Maria Albuquerque
e Sá, que desempenha as mais elevadas responsabilidades na Aliança de que
Portugal faz orgulhosamente parte”.
P.S. Os nomes são fictícios pois
que o Sr. Deputado é meu parente por via do seu casamento com uma tia minha.
Pedimos desculpa aos vivos se acaso ferimos susceptibilidades sem que fosse
esse, de modo nenhum, o nosso propósito.
NOZES PIRES
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