sábado, 13 de julho de 2019

BUÑUEL


Buñuel
Sem Deus nem mestre
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Arrancou este mês, no Nimas, em Lisboa, um grande ciclo de filmes de Luis Buñuel que depois se prolonga, em várias cidades, em vagas a durar, pelo menos, até ao fim do ano. Visita ao maior cineasta ibérico do século XX, iconoclasta, anticlerical, surrealista e tudo
textos Jorge Leitão Ramos
Dezembro de 1960. Luis Buñuel, um dos mais célebres exilados artistas espanhóis, há uma década naturalizado cidadão mexicano, pede em Paris um visto para entrar em Espanha. Aquele que fora, em França, espião do Governo republicano nos anos da guerra civil, estaria disposto a pactuar com o regime ditatorial de Francisco Franco? Assim parecia e não poucos intelectuais de esquerda no exílio vituperaram a atitude de Buñuel, ainda mais quando souberam que ele iria fazer um filme no seu país natal. O caudillo estava tão interessado em bem acolher o cineasta que quando foi apresentado às autoridades o argumento de “Viridiana”, o mais que fizeram foi sugerir, respeitosamente, algumas alterações que Buñuel seguiu, em alguns casos fazendo piorar as leituras possíveis. Em traços gerais o filme era a história de uma postulante, prestes a tomar votos como freira, que vai por uma temporada para casa de um velho tio viúvo que dela se enamora e quer a todo o custo mantê-la perto e para ele. Desencadeada uma tragédia, a protagonista tenta a radical caridade como destino, acolhendo pobres e destituídos da sociedade, boa obra que não dará bons frutos. Concluído mesmo nas vésperas do Festival de Cannes de 1961, “Viridiana” será aí apresentado sob pavilhão espanhol, conquistando a Palma de Ouro que um feliz director-geral de Franco foi receber. Parece que não tinha visto o filme, Buñuel, retido em Paris, nem queria acreditar quando soube. Dois dias volvidos, o “L’Osservatore Romano”, órgão oficial do Vaticano, qualificava o filme como blasfemo e sacrílego, o que em Madrid caiu como um terramoto. Além da demissão sumária do alto funcionário governamental que deixara que um tal filme ostentasse a bandeira espanhola no certame francês, todas as cópias e o próprio negativo foram sequestrados e destruídos, o filme sumariamente proibido — tal como a sua exportação. Mas o produtor mexicano que tinha estado na base do financiamento, Gustavo Alatriste, um homem de negócios que gostava de atrizes, tivera a prudência de albergar em Paris um duplicado do negativo. O filme acabaria estreado um pouco por todo o mundo (em Portugal, nem pensar...), grangeando um considerável sucesso. “Viridiana” teve o condão de escancarar as portas dos produtores franceses ao cinema de Buñuel. O cineasta ainda faria mais dois filmes no México, sempre com Alatriste (e com a atriz Silvia Pinal, sua mulher que já protagonizara “Viridiana”), mas seria em França que basearia o resto da sua obra e o cume da sua fama nos últimos anos da sua carreira (com o Leão de Ouro de Veneza, em 1967, duas nomeações para os Óscares nos anos 70, como argumentista, e o galardão de Melhor Filme em Língua Estrangeira para “O Charme Discreto da Burguesia“). Todavia, sempre manteve residência na Cidade do México onde, aliás, viria a falecer em 1983.
<span class="arranque">Auge</span> Luis Buñuel em 1954, durante o seu período mexicano
Auge Luis Buñuel em 1954, durante o seu período mexicano
UM CINEASTA MEXICANO
Buñuel estabelecera-se no México em 1945 depois de um atribulado périplo americano onde chegara, em 1939, como delegado da República Espanhola para ser conselheiro em filmes que Hollywood fazia sobre Espanha, tarefa que nunca cumpriu deveras já que a entrada de Franco em Madrid ditou o termo da Guerra Civil e condenou o cineasta ao exílio. Entre Los Angeles e Nova Iorque teve vários empregos, passou dificuldades, tentou a sua sorte em projetos que nunca se concretizariam. Conotado com a esquerda, provavelmente criptocomunista, embora o próprio sempre afirmasse que nunca se filiara no partido, nem em Madrid nem em Paris, acabaria olhado de soslaio, para dizer o mínimo, quando um livro de Dalí o denunciou publicamente como marxista. Buñuel não filmava desde 1932, desde um documentário em forma de grito (“Las Hurdes”), embora, em 1935/36, tivesse trabalhado como produtor de filmes comerciais em Espanha e há quem diga e jure que também (pelo menos) colaborado na sua realização, embora com o nome nunca creditado nos genéricos. O cineasta, cuja nomeada continuava a assentar nos parisienses dois rasgos polémicos e surrealistas (“Un Chien Andalou”, 1929; “L’Âge d’Or”, 1930) precisava de fazer cinema com urgência, viver da boa vontade e dos empréstimos dos amigos não era sustentável. O país para onde se deslocara, por seu lado, tinha uma bem estruturada indústria cinematográfica, com um grande mercado interno e de exportação e o apoio do forte vizinho norte-americano. Tinha estúdios, tinha grande técnicos (como o diretor de fotografia Gabriel Figueroa), tinha vedetas de impacto internacional (como Maria Félix ou Cantinflas). Buñuel não podia esperar hipóteses vanguardistas e estava disposto a enfileirar na indústria, a fazer filmes comerciais, a ganhar a vida, desde que, como declarou nas suas memórias, não filmasse nada que fosse contrário às suas convicções, à sua moral pessoal. Assim aconteceu, num labor que se tornou continuado, nas condições que havia. As filmagens seriam sempre em prazos espartanos — entre dezoito e vinte e quatro dias — e, nas suas próprias palavras, ter-lhe-á acontecido “aceitar temas que não tinha escolhido e trabalhado com atores muito mal ajustados aos papéis”. Mas serão esses vinte filmes que fez no México que viriam a constituir o carne e o coração da sua obra, na época em geral quase desconhecidos internacionalmente, mas que foram circulando e sendo reavaliados, às vezes com espanto do próprio realizador que pouco considerava a maior parte deles. Fez de tudo um pouco, mas, sobretudo, melodramas que cumpriam os cânones do comércio e onde inoculou muitos dos seus fantasmas e obsessões, o ciúme, a morte, a podolatria, o machismo, pinceladas oníricas, o sexo como coisa secreta, implícita, não mais que sussurrada, uma conturbado relação com o catolicismo que oscilava entre um respeito fundo pelo seu quadro ético e um radical anticlericalismo que nunca o largaria. E também uma contraditória posição sobre a diferenciação de classes: implacável em relação aos possidentes e às injustiças com que acederam ou se mantêm nesse lugar, o olhar de Buñuel nem por isso se irmanaria com o lado de baixo da humanidade, com a sua brutalidade simples que os filmes retratam sem qualquer espécie de complacência. Veja-se a crueldade dos miseráveis de “Los Olvidados” ou a desgovernada violência “El Bruto”. No cinema de Luis Buñuel a luta de classes nunca é uma coisa épica, é sempre maculada pela sordidez. E, todavia, o lado ‘sujo’ da realidade é, a um tempo, escancarado e refreado. Os filmes mexicanos de Buñuel transpiram desejo por todos os lados, não recuam perante nenhuma insinuação, e, todavia, no que a imagem explicitamente mostra, são reprimidos, disciplinados, como o pode ser quem esteve dez anos sob a educação de padres jesuítas, sob a regra de Santo Inácio de Loyola.
UM SEÑORITO ARAGONÊS
Buñuel não nasceu rebelde, nem herético, nem, evidentemente, surrealista. Nasceu rico, primogénito de sete irmãos, em Calanda, pequena povoação a uma centena de quilómetros de Saragoça, no mesmo ano em que nasceu o século XX. O pai fizera fortuna em Cuba e, de regresso a Aragão, casara-se com a filha de um proprietário rural que era a mulher mais bonita da terra. Na casa da sua adolescência havia cinco criados e, quando ia para as aulas de violino, um deles levava a caixa com o instrumento do jovem Luis. John Baxter, biógrafo de Buñuel, afirma que o mais que o pai podia carregar em público seria uma lata de caviar. E uma arma de fogo, paixão que o filho havia de herdar. Para tudo o resto, havia criados. Entre os sete e os dezasseis anos Buñuel estudou no jesuíta Colégio del Salvador. Saiu de lá “ateu, graças a Deus”. Mas o catolicismo seria, para sempre, uma das traves da sua personalidade e, mais tarde, do seu cinema.
Era um homem ciumento, autoritário, controlava o dinheiro e as decisões importantes dentro de casa
Foi a música a primeira inclinação do futuro cineasta; depois anunciou ao pai que queria estudar entomologia. Acabou por ir cursar Agronomia, em Madrid, depois Engenharia, acabou diplomando-se em Filosofia. Mas o mais importante que lhe aconteceu na velha e então muito provinciana capital de Espanha foi o contacto com uma brilhante geração de intelectuais, tornou-se amigo de Albertí, de Lorca, de Dalí, de Manuel de Falla. Ir para Paris, centro do mundo nos anos 20, foi quase uma evolução natural. É aí que decide que quer ser cineasta, fascinado por “A Morte Cansada”, de Fritz Lang. O pai, entretanto, morrera, e é a mãe que fica a gerir a herança e a financiar o jovem Buñuel, com uma fixa mensalidade que lhe permite viver em Paris. Do teatro ao cinema, da escrita à encenação, faz um caminho que, no fim da década, desembocará num filme surrealista, engendrado em parceria com Dalí, financiado pela mãe: “Un Chien Andalou”. Um sucesso instantâneo — oito meses em cartaz afirma o cineasta nas suas memórias — e o aplauso ditirâmbico dos parceiros parisienses. André Breton, o papa do Movimento Surrealista, diria do filme que era “belo como o encontro dum guarda-chuva e de um cão numa mesa de autópsia”. Famoso de um dia para o outro, as portas abriram-se para a produção do filme seguinte, “L’Âge d’Or”. A fama continuou a favorecer Buñuel, mas o sucesso não. Proibido pelas autoridades, na sequência do escândalo público que foi a sua estreia, o filme só viria a ter distribuição comercial meio século depois — e cimentou, para sempre, a aura de Buñuel como absolutamente iconoclasta. Todavia, o provocador que o mundo veria nele, o homem que tão bem figurou as impotências na vida, as vontades que não se cumprem, como orgasmos continuamente adiados numa tensão que não amaina, era um homem bastante pacato, quase monacal. Deitava-se cedo, casou-se uma única vez, viveu com essa mulher durante quase cinquenta anos — e, defendem os amigos íntimos, foi-lhe fiel. Bebia cinco dry-martinis por dia, a horas certas, e algum vinho e se dedica um capítulo inteiro das suas memórias aos “prazeres daqui de baixo” (com uma pormenorizada receita para preparar o seu cocktail preferido), em que o tabaco aparecia como central, nele se confessa um tímido no que respeita às mulheres e, como membro de uma geração de castelhanos a quem o catolicismo moldara, dotada de um desejo sexual que era talvez o mais forte do mundo. Todavia, escritas as memórias já em idade avançada, admite ter assistido ao “desaparecimento progressivo e, por fim, total do [seu] instinto sexual, mesmo em sonho”. E remata: “Estou muito satisfeito por tal facto. É como se finalmente me tivesse visto livre de um tirano.” Era um homem ciumento, autoritário no interior da sua família, não gostava de lisonjas, controlava o dinheiro e as decisões importantes dentro de casa, talvez não muito diferente dos señoritos castelhanos de “Tristana” ou de “Viridiana” ou do paranoico de “Él”. Tinha, todavia, sobre eles, uma ínclita vantagem, um humor sem medida. O humor com que se despede de nós nas suas memórias, imaginando a própria morte e um desejo para depois que não resisto a citar.
Preferido “Él”, a história de um ciumento paranoico, era o filme que Buñuel mais amava
“Próximo do meu último suspiro, imagino bastantes vezes uma última partida. Convoco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu. Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos, confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro.
Mas será que encontraremos ainda força para gracejar nesse momento?
Um desgosto: não saber o que se vai passar, abandonar o mundo em pleno movimento, como no meio dum folhetim. Acho que esta curiosidade do pós-morte não existia noutros tempos, ou existia menos, num mundo que quase não mudava. Uma confissão: apesar de todo o meu ódio pela informação, gostaria de me poder levantar entre os mortos, de dez em dez anos, ir até a um quiosque e comprar alguns jornais. Não pediria mais nada. Com eles debaixo do braço, pálido, roçando as paredes, voltaria ao cemitério e leria os desastres do mundo, antes de voltar a adormecer satisfeito, abrigado tranquilamente pelo túmulo.”
Sequências “Un Chien Andalou” e “Belle de Jour”: o alfa e o ómega do cinema de Buñuel
IMAGENS MATRICIAIS
Há duas sequências que assombram/iluminam todo o cinema de Luis Buñuel. A primeira é a inaugural abertura do seu primeiro filme, ainda mudo, o vanguardista “Un Chien Andalou”, de 1929. Um homem — o próprio Buñuel — afia uma navalha. Uma mulher, à varanda, contempla a noite. O homem aproxima-se dela, por trás, segura a arca orbital do olho esquerdo com dois dedos, expondo o globo ocular. No céu há uma lua, muito branca, atravessada pela faixa negra de uma nuvem. A navalha corta um olho. É, talvez, a mais terrífica imagem em toda a História do Cinema, cem vezes vista, nunca o impacto diminui. Não importa que saibamos que se trata de um olho de vaca, evidentemente morta. É sempre o nosso olho que a lâmina de Buñuel decepa. Posso assegurar, por experiência própria.
A segunda sequência matricial da obra buñueliana pertence a um filme muito posterior, “Belle de Jour”, de 1967. A cena decorre no bordel de Madame Anaïs onde Séverine, uma senhora casada da alta burguesia, se prostitui, às tardes, talvez para experimentar rêveries de submissão que a sua situação conjugal não cultiva. Um dia apresenta-se um cliente oriental, possante, a falar uma língua tão ininteligível quanto inidentificável. Para explicar o que quer traz uma caixinha com incrustações que abre e de onde sai um zumbido. Uma primeira rapariga recusa, horripilada. Séverine acede. Não vemos o que se passa, ficamos de fora da porta fechada do quarto. No fim da função, o cliente sai, uma velha criada entra no quarto em grande desalinho, há mesmo um candeeiro de cabeceira tombado na refrega. Séverine está deitada na cama, de barriga para baixo, o rosto afundado nos lençóis, a cabeça na nossa direção. A criada começa a arrumar e comenta, comísera: “Às vezes, deve ser muito penoso.” Séverine ergue a cabeça e murmura: “O que é que tu sabes disso?” E sorri, entre o saciado e o irónico: é um raio que se despenha sobre o espectador. E não nos deixa dúvidas; e deixa-nos as dúvidas todas.
Crueldade, absurdo, desejo, sexo — e tudo moldado por alusões, por fetiches, por imagens a que havemos de querer atribuir significados, estimulando o que de mais secreto, às vezes inconfessável, nos habita. E, todavia, sempre com a consciência de que não conseguiremos esgotar os significados, conhecer a verdade, porque, no fundo de nós, sabemos que tal coisa não existe. O cinema de Buñuel é obra aberta a todas as incursões e mesmo às profanações do nosso olhar e do nosso entendimento. / J.L.R.

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