segunda-feira, 3 de março de 2025

 

Imediatidade e autoficção: a literatura sob o capitalismo de plataforma

Um comentário ao livro de Anna Kornbluh, "Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism", que será publicado ainda este ano pela Boitempo.

A escritora Annie Ernaux (Wikimedia Commons).

Por Bruna Della Torre

“O dever da literatura é lutar contra a ficção.”
Karl Ove Knausgaard, em entrevista à New Yorker

“Chamarei o tipo de escrita de Knausgaard de itemização. Na pós-modernidade, renunciamos à tentativa de ‘estranhar nossa vida cotidiana e vê-la de formas novas, poéticas ou aterrorizantes; desistimos de analisá-la em termos da forma-mercadoria, em uma situação em que tudo agora é mercadoria; abandonamos a busca por novas linguagens para descrever o fluxo do sempre idêntico ou pôr novas psicologias para diagnosticar suas reações e eventos psíquicos desconcertantemente pouco originais. Tudo o que resta é itemizar esses elementos, enumerar os itens que passam por nós.”
— “Itemised”, Fredric Jameson (London Review of Books)

Em seu provocativo comentário sobre o sexto livro da série de autoficção do escritor norueguês Karl Ove Knausgaard, publicado na London Review of Books em 2018,  Fredric Jameson confessa que não acha “a perspectiva de uma utopia em que todos estão diligentemente escrevendo sobre suas experiências – diárias ou ao longo da vida – particularmente atraente”. Em primeiro lugar, porque se todos estivermos empenhados nesse tipo de projeto, não restaria tempo para a vida, para a Experiência com “E” maiúsculo. Segundo, porque, quando se trata de literatura, não é apenas a substância que está em jogo, mas também a forma. Conforme escreveu Júlio Cortázar em Valise de Cronópio, a quem conhecidos não se cansavam de ofertar histórias e causos reais inacreditáveis que poderiam virar um conto, na literatura, o conteúdo de uma história é tão ou menos importante do que o modo como ela é contada.

O boom da chamada literatura de autoficção contemporânea tem sido, nesse sentido, intrigante. Conforme já escrevi aqui no Blog da Boitempo, a tetralogia napolitana de Elena Ferrante me parece um experimento interessante, mas apenas se lida como romance e não como autoficção – o que não é possível fazer com qualquer livro que sustenta esse tipo de escrita. Mas, aparentemente, tudo o que não leve essa marca se torna menos atraente. Isso explicaria, por exemplo, por que Ferrante conta em entrevistas uma história sobre sua mãe costureira e sua infância pobre que – se sua identidade é mesmo essa que foi descoberta há alguns anos (Anita Raja) – não é exatamente verdadeira, ou seja, por que ela se sente de alguma forma impelida a dizer que a história que conta em seus romances é a sua própria história, uma história real.

A autoficção invade não só as prateleiras de best-sellers mundo afora, como ressignifica a própria história da literatura, reivindicando herança daquilo que ficou conhecido como “alto modernismo”. A sombra retroativa desse subgênero – se é que podemos chamá-lo assim – alcança também Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (que se tornou uma de suas principais referências), A montanha mágica, de Thomas Mann, Ulisses, de James Joyce, vários dos romances de Virginia Woolf, como Ao farol e Orlando, entre muitos outros. Livros que até pouco tempo atrás ainda eram tomados – apesar da transfiguração da experiência de seus autores neles contida – como literatura de ficção. Até mesmo Franz Kafka, que havia inicialmente escrito O castelo em primeira pessoa e depois mudou o foco narrativo para a terceira, a fim de obter distância do que era narrado, é visto hoje como um representante da tendência.

Como a crítica cultural hoje ou é puramente conservadora e reacionária ou assume cada vez mais um caráter celebratório, cansativo e monótono – muitas vezes apenas polindo o brilhantismo daquilo que o algoritmo já “viralizou” – pouca gente à esquerda tem se ocupado de responder de onde vem o fascínio com esse novo subgênero que data da década de 1970, ou ao menos atende por esse nome desde então. Esse é um dos assuntos (talvez o melhor deles) do livro Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism [“Imediatidade, ou o estilo do capitalismo demasiadamente tardio”], de Anna Kornbluh.

Inspirada no livro de Jameson sobre o pós-modernismo, a obra de Kornbluh discute a imediatidade como o novo estilo cultural do nosso capitalismo demasiadamente tardio, uma espécie de nova dominante cultural ligada a uma fenomenologia da imersão, ao presenteísmo, à ojeriza pela representação e pela forma. Para a autora, não viveríamos mais numa era pós-moderna (marcada pelo pastiche, pela ironia, pela Theory, que ainda exigiriam alguma mediação do público), mas sim numa pós-pós, ainda mais unidimensional e achatada do que os anos de pós-modernidade e produzida pelo que a autora chama, de maneira um pouco problemática, de “economia da circulação” – ou o neoliberalismo digital financeirizado de plataforma. Nas palavras de Kornbluh,

“Circulação fluida, suave e rápida, seja de petróleo ou de informação, alimenta a radicalização contemporânea do pretexto eterno sistemático do capitalismo: as coisas são produzidas com o propósito de serem trocadas; o dinheiro supera seu papel de mediador da troca para se tornar seu ponto final; os meios de circulação tornam-se o fim da circulação. Como observa o geógrafo econômico David Harvey, ‘quando a circulação para, o valor desaparece e todo o sistema desmorona.’ O preço dessa velocidade no presente é uma destruição exorbitante: vazamentos de oleodutos, carbonização atmosférica, incêndios planetários. E, por sua vez, essas calamidades elementares moldam a imediatidade como estilo cultural. O fluxo como valor essencial para essa estética decorre do fluxo como valor essencial para a economia do século XXI” (Kornbluh, 2024: 25).

Não se trata apenas de um imediatismo vindo do chamado “estado de emergência” do capitalismo das últimas décadas. O livro investiga como a flexibilização do trabalho via plataformas e redes sociais (que impele a maior parte da sociedade a estar sempre on), o regime de circulação imediata de mercadorias da Amazon (“compre agora, receba ainda hoje” ou “compre com um clique” – dispositivo que serve para romper com qualquer possibilidade de reflexão sobre o ato de compra antes presente na mediação dessa compra pela loja física e do caminho da casa ou do trabalho até ela), o desaparecimento do local de trabalho para uma parcela importante da população, todos esses fatores fazem com que a velocidade, o fluxo e a expressão direta passem a dominar todas as esferas da vida. Nada pode impedir o fluxo e que o trabalho e o entretenimento se reúnam numa mesma massa amorfa 24 horas por dia, sete dias por semana. Um movimento intenso que produz estática, uma velocidade tão alta que apaga a temporalidade. Em outras palavras, Kornbluh discute como o capitalismo digital produziu uma mudança não só no fluxo de troca de mercadorias e acumulação de capital, mas uma transformação epistemológica e sensível radical. Tudo passa a obedecer ao imperativo da imediatidade. Assim como o grande feito das plataformas (de trabalho ou entretenimento) foi cortar mediações (jurídicas, estatais, laborais), o estilo cultural que ela gera também passa a operar sob a mesma lógica, cortando intermediários e, mais do que isso, a própria mediação. Kornbluh faz a pergunta que a crítica cultural contemporânea, imersa no aparato da indústria cultural, se recusa a fazer: qual é o impacto da última transformação das forças produtivas capitalistas na arte e na cultura?

O livro tem uma estrutura parecida com o de Jameson (e também é uma versão marxista do estilo de crítica feita atualmente por Byung-Chul Han, que não aparece citado na obra). Kornbluh analisa esse capitalismo demasiadamente tardio a partir dos capítulos “Circulação”, “Imaginário”, “Escrita”, “Vídeo”, “Antiteoria”. A obra tem o mérito de ser um dos esforços recentes mais importantes de relacionar as manifestações estéticas e culturais recentes às formas sociais e econômicas do capitalismo contemporâneo, bem no espírito da teoria crítica, assim como de mostrar como esse regime de circulação faz com que a antipolítica recuse a mediação da organização, a antiteoria recuse a mediação da teoria, a arte recuse a mediação da representação e, por fim, a crítica cultural recuse a mediação da interpretação. Ou seja, o debate gira em torno das consequências estéticas, literárias, políticas e filosóficas do capitalismo de plataforma.

O capítulo mais interessante é sobre a “Escrita”. Trata-se, na verdade, de uma reflexão sobre esse novo gênero de memórias, autoficção e ensaio pessoal que marca a literatura do século XXI. Um subgênero cuja venda – só na primeira década deste século – foi, segundo o New York Times, 400 vezes maior que a média do século XX, compondo cerca de 80% de suas listas de best-sellers. Uma escrita marcada pela “memorização”, na qual predomina:

“a narração em primeira pessoa, mas também a marca do imperativo ‘escreva o que você sabe’; a elevação da experiência vivida do sujeito individual ao tratamento literário; a desconfiança da autoridade desvinculada da experiência; o filtro das dinâmicas sociais e históricas através de lentes subjetivas (ou a desqualificação ativa de lentes objetivas); a promoção da fenomenologia como horizonte-limite para o conhecimento; o empreendimento do confessionalismo; a preocupação com a domesticidade (seja a infância ou o casamento); uma torção da fascinação do romance por órfãos em uma obsessão por culpar os pais; a superação heroica do indivíduo diante das circunstâncias; a narrativa terapêutica dos desafios políticos, sociais e corporais; a centralização do presente histórico; a solicitação solene de reconhecimento, identificação e empatia por parte do leitor; um populismo das massas em oposição ao suposto elitismo dos literatos” (Kornbluh, 2024: 96).

Conforme mostra Kornbluh, a palavra “autoficção” aparece em inglês pela primeira vez no New York Times, sob a pena de Paul West em 1972, mas é atribuída a Serge Doubrovsky (autor de Fils), que escreveu em 1977: “Se eu escrevo minha autobiografia no carro, ela será minha AUTOficção”; uma piada que cede lugar à sua construção como primeiro autor do gênero, que desde então se consagrou como uma escrita sobretudo francesa (que culmina no prêmio Nobel recebido recentemente por Annie Ernaux e no sucesso mundial de Didier Eribon e Édouard Louis). Kornbluh demonstra (inclusive recorrendo a estudos quantitativos) que essa escrita começa a surgir na década de 1970 – com alguma presença importante no feminismo e na literatura queer (como um refúgio para vozes excluídas do cânone) – mas alcança outra estatura (e função) no século XXI.

A autora observa um aspecto específico da autoficção contemporânea: a rejeição da ficcionalidade como tema próprio a essa literatura. Partindo de uma análise do que essa escrita diz sobre o próprio fazer literário – que é um de seus principais motivos – o que essa investigação revela é uma revolta contra a forma e a própria narrativa. Representar passa a ser sinônimo de mentir ou de violentar, e narrar passa a ser sinônimo de falsear. Kornbluh comenta a abordagem da ficção nas obras de vários autores contemporâneos, como Knausgaard, Tao Lin, Maggie Nelson, Rachel Cusk, entre muitos outros.

Um dos principais apelos dessa escrita, afirma Kornbluh, é sua promessa de um acesso imediato à realidade: a pessoa real deve tomar o lugar tanto do narrador quanto da personagem, a narração em terceira pessoa ou discurso indireto livre dá lugar a uma voz, uma voz que diz a “verdade”. Conforme escreveu Cusk, “A ideia de inventar John e Jane e fazê-los fazer coisas parece totalmente ridícula”. Nessa chave, Lin também afirma: “eu quero que a escrita seja útil para mim. Quando estou inventando coisas, parece que estou me confundindo, acrescentando coisas à minha memória que nunca aconteceram” (apud Kornbluh, 2024: 70). Knaausgard fala sobre uma crise da ficção, de sua falta de valor literário:

“A própria ideia de ficção, a simples ideia de um personagem fabricado em uma trama fabricada, me deixava com náusea, eu reagia de forma física… Nos últimos anos, eu tinha perdido cada vez mais a fé na literatura. Eu lia e pensava: isso é algo que alguém inventou… pessoas inventadas em um mundo inventado, embora realista… Era uma crise… Eu não conseguia escrever assim, não funcionava, cada frase era recebida com o pensamento: mas você está apenas inventando isso. Isso não tem valor. A escrita ficcional não tem valor… Os únicos gêneros nos quais eu via valor, que ainda conferiam significado, eram diários e ensaios, os tipos de literatura que não lidavam com narrativa, que não eram sobre nada, mas consistiam apenas em uma voz, a voz de sua própria personalidade… A arte não pode ser experimentada coletivamente, nada pode” (Karl Ove Knausgaard, My Struggle apud Kornbluh, 2024: 65).

Mas o que teria acontecido para que a ficção entrasse em crise? Kornbluh não usa exatamente esses termos, mas tudo se passa como se o problema não fosse mais a posição do narrador no romance contemporâneo, ou seja, o que sua perspectiva pode ou não alcançar e o que ela deixa de fora, como queria Theodor W. Adorno, mas o próprio ato de narrar e a forma romance são postos em xeque. Há a percepção de um esgotamento generalizado de ambos e a tendência de aprofundamento do elemento lírico do romance modernista, observada por Adorno em seu famoso ensaio, dá lugar ao fim da dialética entre objetividade e subjetividade que acompanhou o romance até aqui. O que Kornbluh faz é tentar compreender de onde isso vem. E se pergunta: “se há uma transformação na história do romance no século XXI, a que essa transformação corresponde?” (Kornbluh, 2024: 80-81). Por que a ficcionalidade deve ser apagada e a forma e a invenção devem dar lugar à imediatidade como imperativo da escrita? Por que o narrador (em primeira ou terceira pessoa) dá lugar a um narrador personagem que é o mesmo que o autor ou autora em nome e circunstância? Por que, em vez de narratividade e enredo, essa escrita privilegia, em geral, um presente sem acontecimento, sem construção ficcional, duração e figuração?

O grande apelo da autoficção, diz Kornbluh, seria justamente esse: o de entregar identidade, instantaneidade, a “coisa em si”: sem filtro. A literatura contemporânea, escreve a autora, “repudia a representação em si, decompõe narração, personagem, enredo, e a fumaça do mito a favor de manifestar coisas que afetam visceralmente” (Kornbluh, 2024: 7). Isso significaria, em termos baudelairianos, que a literatura deixa de se configurar como “promessa de felicidade”, para se configurar como promessa de realidade. Trata-se de um desejo renovado de realismo, diz Kornbluh, mas não aquele de Lukács (ou de Adorno, diria eu também), mas de um realismo no sentido imediato do termo – um acesso imaculado à experiência. A ironia, que em literatura foi por muito tempo um de seus principais meios de distanciamento, cede lugar à sinceridade e à personalização, que faz da narrativa em primeira pessoa a única possibilidade de uma narrativa “honesta” – o que, de fato, é uma ideologia, pois essa imediatidade é menos um fato do que uma construção, uma aparência socialmente necessária para esse subgênero. De qualquer forma, o que vale é que toda essa escrita se assenta no discurso de que apresenta a verdade sem mediações, invenções e meias palavras.

Os estudos quantitativos a que Kornbluh recorre apontam que o declínio da narração em primeira pessoa (em língua inglesa), que começou no século XVIII, sofre uma inversão de tendência e passa a ascender a partir dos anos de 1970. As consequências para a literatura são muitas, uma vez que:

“a terceira pessoa prova ser definidora para a forma do romance: uma construção extraordinária de um modo de pensamento inacessível para nós na experiência cotidiana vivida, em nossos próprios envelopes estúpidos. A terceira pessoa se estende para além da subjetividade fenomenal, em direção à objetividade especulativa. Ela realiza um tipo de pensamento indisponível em qualquer outro lugar — e essa é a mágica. […] O personalismo em primeira pessoa no romance é uma mutação abrangente, uma desestruturação da objetividade literária, um evento de proporções épicas que exige uma explicação séria. A rejeição explícita da ficcionalidade pela autoficção é, portanto, apenas a expressão mais autoconsciente de uma tendência representacional muito mais ampla que apaga o ponto de vista impessoal, antifenomênico e especulativo que definiu o romance ao longo de sua história. Poderíamos até dizer que, em sua expressividade anti-medium e angústia nauseante, a autoficção funciona como a teoria patente dessa mutação” (Kornbluh, 2024: 79-80).

Essas reflexões são obviamente generalistas, há exceções; é evidente que nem todo romance narrado em primeira pessoa é subjetivista (conforme lemos no “alto modernismo”) e nem todo romance narrado em terceira pessoa alcança a objetividade. Em todo caso, trata-se de uma tendência. Nesse sentido, a autoficção é expressão da imediatidade como estilo cultural que, segundo Kornbluh, não só abdica da representação (a mediadora da relação entre literatura e sociedade), como a rejeita com veemência. É certo que ao longo da história a desigualdade entre quem representa e quem é representado emulou as desigualdades da sociedade patriarcal, capitalista, heteronormativa e branca e o mesmo vale para a crítica literária (Adorno, por exemplo, não analisa a obra de nenhuma mulher em suas Notas de Literatura). No entanto, a pergunta interessante que o estudo de Kornbluh suscita é: por que, ao invés de equilibrar a balança e trazer para a literatura o que (e quem) estava fora dela, recusar a representação por si mesma?

Essa escrita almeja (e atinge) uma aparência de sinceridade e autenticidade, de não construção, para a qual os valores são, segundo Kornbluh, os afetos, vulnerabilidades (um conceito problemático cada vez mais utilizado pelo feminismo) e verdades pessoais. Conforme descreve Jameson no trecho citado acima, ela envolve uma imanentização da experiência, um aprisionamento na descrição e a ideia de que todo conhecimento só pode ser pessoal. Ou, nas palavras de Kornbluh (2024: 66), “ao invés de um romance como uma teoria do mundo ou dos mundos possíveis, só há micrologia”, ou um novo sociologismo – o que, vale ressaltar, a diferencia do que ficou conhecido como literatura de testemunho, para a qual história e memória são fundamentais (uma diferença que Kornbluh também não explora).

Como escrevi acima (e Kornbluh também reconhece), embora essa literatura tenha sido importante no sentido de apresentar outras vozes que não apareciam no cânone literário até então, ela, nos dias de hoje, não só encontra apoio, mas também sustenta a ideologia de que falar a verdade sobre si é por si mesmo transgressivo (não é à toa que lutar contra a vergonha de se expor é um de seus motes) – uma ideia que é cada vez mais cara à economia da Big Tech, cujos lucros advém de nosso desejo de nos mostrar. Isto é, ela acompanha a explosão da privacidade não como sua superação revolucionária e pós-burguesa, mas como um modo de vida ligado ao capitalismo de plataforma (cujo modelo de negócio é baseado na exposição cotidiana do self).

Nesse sentido, Kornbluh associa a autoficção ao boom dos realities no streaming e à forma memorialística e biográfica de redes como o Instagram, que produz uma espécie de autobiografia em tempo real. O que são as redes socias, pergunta a autora, senão tecnologias de autoapresentação que nos impelem a cultivar nós mesmos como marcas? Como sugere Kornbluh, o modelo da plataforma é absorvido por essa escrita, baseada na velocidade, na falta de reflexão e, mais importante ainda, sem filtros: “encontramos romances tradicionais que nascem digitais, estruturados como twitfic (Black Box, de Jennifer Egan), postagens do Instagram (Sympathy, de Olivia Sudjic), compartilhamentos no Facebook (Komodo, de Jeff VanderMeer) ou autoficções do fluxo de todos os aplicativos (Crudo, de Olivia Laing)” (Kornbluh, 2024: 98). Além disso, outro impacto da imediatidade do capitalismo digital e do binarismo de plataforma em nós, enquanto leitoras, seria que, como tudo nesse meio, tudo deve ser passível de identificação pessoal [relatable] ou de ódio [hateable].

Se um dia a teoria crítica teve que se opor ao gosto como critério de avaliação da arte (gosto, esse, que a sociologia também se esforçou para mostrar que é socialmente construído), hoje, esse gosto é amplamente ligado à capacidade que um artefato tem de produzir identificação. Tudo também deve ser acessível, no sentido de não exigir interpretação – uma vez que essa, por si só, seria um índice de elitismo. Nesse ponto, a imediatidade também aprofunda as tendências contra a interpretação do pós-modernismo, imortalizadas no famoso ensaio de Susan Sontag que leva o mesmo nome.

Ao ler o livro, fiquei pensando em algo que Kornbluh não discute, mas que valeria uma reflexão. Se pensarmos que o “memorialismo” (na forma da autobiografia) foi em geral um subgênero aristocrático e, posteriormente, burguês – a história de grandes homens ricos, brancos e heterossexuais em sua maioria contados por si próprios, um gênero que no Brasil tem uma longa tradição nas classes dominantes e persiste no cinema até hoje (e que poderíamos dizer que Machado de Assis ironiza avant la lettre em suas Memórias Póstumas de Brás Cubas) –, a autoficção pode ser compreendida como uma inversão do gênero, que agora proclama vir de baixo (embora seja uma tendência majoritariamente advinda do centro do capitalismo). Assim como Andy Warhol afirmou que a televisão vinha com a promessa de conceder ao cidadão comum os seus cincos minutos de fama, as redes sociais fazem de cada um de nós nossa própria celebridade – algo que de alguma forma está presente também na autoficção, como uma espécie de auto romance realista do homem e da mulher comum (uma nova forma do que Georg Lukács chamou de “naturalismo” em sua fase tardia). Aliás, o aparente amadorismo dessa escrita também é um de seus apelos: qualquer um pode se tornar um escritor ou uma escritora, um produto da economia de plataforma (que derruba especialistas em todas as áreas), fazendo o mesmo com a literatura e a crítica literária. Mas isso é menos uma democratização, sublinha Kornbluh, e mais um resultado da precarização da literatura sob o neoliberalismo:

“A autoficção, a ficção em primeira pessoa, as memórias, as redes sociais e o ensaio pessoal compõem um contínuo de autoemissão, indicando o quanto da produção literária segue a ideologia do capital humano que transforma o bem-estar cotidiano em um mandato para otimizar o material interior e concretizar o eu, e o quanto da literatura contemporânea se constitui por sua rejeição à mediação. O conteúdo em fluxo contínuo, originado de freelancers, a escrita automática sem ‘a distância entre escritor, leitor e crítico’, a imediatidade do escritor estetiza as condições industriais na publicação, que, como aponta a estudiosa cultural Sarah Brouillette, seguem de perto a gigificação e a precarização presentes em outras indústrias. Na ausência de instituições como sindicatos de escritores e associações de equipe, sem salários para horas de pesquisa, sem protocolos de conhecimento como reportagens investigativas ou sínteses de longo prazo, e afundados em dívidas estudantis, os criadores de conteúdo manejam seu único ativo: a expressão de sua vida interior. Sua história é algo que você deve possuir”(Kornbluh, 2024: 101).

Kornbluh discute não só as consequências dessa economia da circulação para a literatura, mas sua própria plataformização. O mercado da autopublicação em sites e plataformas, diz ela, já é hoje um mercado bilionário nos Estados Unidos, no qual todo trabalho que era exercido por uma editora passa a ser transferido para os autores e autoras. Nesse sentido, a autorreflexão sobre o próprio processo de escrita e publicação de um livro presente na escrita de autoficção certamente tem algo a ver com isso, assim como o ensaio pessoal tem a ver com a prática do blogging que ascendeu nos anos 2000. O livro apresenta também um comentário interessante sobre a chamada “escrita criativa” nos Estados Unidos, que, a partir da década de 1970, foi incluída como disciplina no currículo de mais de 300 universidades, um mercado que só cresce (inclusive no Brasil). Para Kornbluh, a difusão desse tipo de curso (para o qual a autoficção é central) seria um sintoma da crise generalizada de saúde mental produzida por esse capitalismo demasiadamente tardio, da mercantilização do trauma a ela relacionada (basta pensar como a própria documentação de admissão nas universidades estadunidenses envolve transformar traumas em uma mercadoria consumível – o que, por sua vez, não significa que esses traumas não existam) e que resulta numa noção de escrita que é acima de tudo terapêutica. Nessa chave,

“a economia da circulação molda essa unidade estilística de mediação anulada, em condições que englobam a expansão dos programas de escrita universitária em meio a uma crise laboral no meio acadêmico, a redução drástica nas indústrias de publicação e jornalismo e a ubiquidade de empreendedores freelancers. Profissões sem especialistas deixam os indivíduos à deriva, tentando se autoatualizar sozinhos em uma sociedade que não existe. O abandono contemporâneo da mediação literária simplesmente estetiza essas condições, descartando o potencial da literatura de criticar imanentemente o mundo conhecido” (Kornbluh, 2024: 69).

O livro de Kornbluh apresenta a imediatidade como marca da falta de estratégia da esquerda diante da crise múltipla que enfrentamos, desse estado de coisas que produz uma fenomenalidade zumbi, diz ela, da qual não conseguimos escapar. Não sei se estou de acordo com tudo que está no livro de Kornbluh, mas suas reflexões certamente iniciam um debate necessário num momento em que a esquerda está completamente resignada à indústria cultural a ponto de sequer considerá-la um objeto passível de crítica – um problema do qual seu livro também sofre, ao se perguntar sobre a possibilidade de uma indústria cultural melhor. Mas também num momento em que não temos um projeto cultural de arte, teoria e crítica cultural – não autônomo, pois essa foi uma das maiores ilusões burguesas da história da arte, mas, ao menos, independente das formas que nos são oferecidas prontas pelas grandes plataformas.

É impossível não pensar como a própria palavra “narrativa” está hoje desgastada e faz parte da crise generalizada da noção de “verdade”, que está presente na política, na estética e na ciência. À direita, ela é associada à mentira e à invenção; em círculos progressistas (quando não usada da mesma maneira que pela direita), assume um conteúdo relativista: “narrativa” visa substituir um conceito autoritário de verdade, mas, na realidade, o abandona. Ou seja, ela se distancia cada vez mais da ideia de que continha algo de objetivo que lhe era próprio.

Criticar a autoficção hoje é imediatamente associado ao conservadorismo – e a maioria das críticas a esse tipo de escrita é de fato conservadora, antifeminista, classista, racista. Seria preciso também estudar como essa forma aterrissou nas periferias do capitalismo e como ela funciona nesse âmbito. Em todo caso, é importante sublinhar que analisar a origem dessa escrita não é o mesmo que condenar, mas retraçar a relação entre literatura e sociedade, compreender como as tendências literárias (para além do argumento bourdiesiano mais raso sobre elites e mercado editorial) estão ligadas a formas sociais mais profundas, de um capitalismo que, para ser compreendido, apreendido e destruído, nunca precisou de tanta mediação. Como afirma Kornbluh (2024: 216), “imediatidade é instante, a mediação dilata; imediatidade é urgente, a mediação desloca; imediatidade flui, mediação bloqueia; imediatidade confessa, a mediação entrelaça; a imediatidade desliza, a mediação relaciona”. Seu livro é uma defesa da dialética. E, dessa, nós precisamos mais do que nunca.

Referência

KORNBLUH, Anne. Immediacy or, The Style of Too Late Capitalism. London: Verso Books, 2024.