terça-feira, 8 de abril de 2014

Tarantino pós-moderno

Django livre

Conhecido por se apropriar de ideias de outros diretores e pelo uso excessivo de violência gratuita em seus filmes, Quentin Tarantino lançou recentemente seu Django livre, um trabalho bastante insatisfatório e considerado por diversos críticos como racista. Acostumado ao estilo cut and paste, este “artista” pop,por certo, conseguiu arregimentar admiradores ao longo de sua carreira cinematográfica. Mas nesta película foi capaz de desagradar não só à intelligentsia afroamericana como também àqueles que apreciam o gênero do faroeste. O que Tarantino provavelmente chama de “homage”, de tributo, pode ser visto como “cópia”. Mas uma reprodução que fica apenas na superfície e nos aspectos essencialmente estéticos, destituindo sua obra de qualquer profundidade ou sofisticação em termos de enredo e mensagem.
Os filmes de Sergio Corbucci que “inspiraram” Tarantino, principalmenteDjango (1966) e O grande silêncio (1968), podem ser vistos tanto como tentativas ousadas de reinterpretar imageticamente o western tradicional como, igualmente, alegorias para as inquietações “políticas” do cineasta italiano em relação ao mundo contemporâneo. Já o “produto” comercial de Tarantino, recheado de linguagem insultuosa, cenas de tortura e preconceitos, serve apenas como um instrumento (ou veículo) para chocar o público espectador. O fato de a palavra “nigger” ser usada 110 vezes no filme é apenas “um” dos aspectos em consideração aqui. O “colega” Spike Lee, ofendido com a trama, chegou a dizer:“American slavery was not a Sergio Leone Spaghetti Western. It was a Holocaust. My ancestors are slaves. Stolen from Africa. I will honor them”. Em realidade, nesta verdadeira “colcha de retalhos”, não há qualquer mensagem “aparente”. Até irmos mais fundo na história.
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Não custa lembrar que sempre foi comum que diretores de “bangue-bangues” reelaborassem enredos de outras produções, dando seu toque pessoal e reconstruindo as narrativas originais a seu modo. Por isso, filmes como Yojimboou Day of the Outlaw serviriam como pano de fundo para obras cinematográficas distintas de auteurs como Leone, Corbucci ou Solima, que adaptariam, com nova roupagem, clássicos do cinema. Mas a “realização” e a “intenção” daqueles diretores eram certamente bastante distintas das excentricidades de Tarantino.
Recordemos rapidamente os significados implícitos nos longas de Corbucci, para fazer, em seguida, uma contraposição ao trabalho do counterpart norte-americano. A história de O grande silêncio (Il grande silenzio)ocorre no final do século XIX, durante uma nevasca avassaladora em Utah. O cenário em que predomina o branco, frio e desolador, coberto por neve e neblina constantes (também usado em Django livre, no qual se tentou emular a fotografia magnífica de Silvano Ippoliti, sem sucesso) já é em si um símbolo do pessimismo e da falta de perspectivas com a realidade opressiva e estéril que cerca todos os personagens daquela região erma e abandonada do “oeste selvagem”. Num inverno particularmente duro, os moradores do pequeno vilarejo de Snow Hill passam fome e são obrigados a roubar para sobreviver. Assim, homens e mulheres, forçados a transgredir as regras jurídicas pela necessidade de se manter vivos, se tornam automaticamente “foras da lei”.
Para resolver a questão desta afronta contra a propriedade privada, a segurança e a ordem instituída, o banqueiro Policutt (que também era o juiz de paz da cidade), contrata “caçadores de recompensas” para matar ou capturar o populacho faminto. É aí que entra Loco (ou “Tigrero”, na versão italiana, interpretado por Klaus Kinski), um sádico que recebe dinheiro para cumprir essa missão. Corbucci, neste sentido, faz a crítica explícita a Sergio Leone, que colocara Clint Eastwood como o “herói” de sua Dollar Trilogy. Desta vez, o “caçador de recompensas” não é o protagonista, mas o vilão. Junto com Policutt, Loco representa o próprio sistema capitalista.
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Afinal, em O grande silêncio, o Estado (que protege a propriedade) e a lei (feita pelos e para os ricos) são controlados pelo capital, e estão do lado dos assassinosbounty hunters, e não dos mais humildes. Corbucci, assim, ataca ao mesmo tempo os Estados Unidos, o aparato de “justiça” e os clichês do faroeste hollywoodiano. Para vingar o assassinato de seu marido por Loco, Pauline (Vonetta McGee), contrata “Silêncio” (Jean-Louis Trintignant), um pistoleiro mudo, que perdera a voz ainda criança, quando Policutt e seus sequazes mataram seus pais e cortaram sua garganta. Ele é o “povo” sem voz, que tenta lutar sozinho contra um inimigo muito maior e mais forte.
É importante salientar que Pauline é negra, e ganha destaque na película. A partir do momento em que ela começa a se relacionar com “Silêncio”, temos um casal “interracial” em papel de relevo, rompendo todas as barreiras do preconceito, especialmente se atentarmos para o fato de a história se passar no final do século XIX, período em que as lutas pelos direitos civis eram uma possibilidade ainda muito distante. Pauline recusa o sexo com Policutt em troca de dinheiro e se envolve com “Silêncio” por amor. Ela é, portanto, o símbolo da nova mulher negra, que tem um papel ativo e feminista no destino daqueles personagens.
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Enquanto o racismo é claramente representado por Policutt e Loco, Pauline e “Silêncio” lutam contra a intolerância étnica e social. Mas, ao contrário da maioria das histórias do gênero, desta vez o “herói” não vence. “Silêncio”, Pauline e os outros cidadãos pobres e esfomeados são executados a tiros, numa chacina comandada por Loco. Tudo dentro da lei!
Vale dizer que as mãos de “Silêncio” são inutilizadas, e ele mal consegue sacar sua arma. É o mesmo que acontece com Django, na trama original (nome inspirado, por sinal, no guitarrista Django Reinhardt, que teve alguns dedos paralisados por queimaduras após um incêndio). As mãos quebradas são um retrato simbólico: é a impossibilidade de vitória do homem solitário, da “individualidade”. Por isso, talvez, Corbucci tenha dedicado O grande silêncio a Jesus Cristo e Che Guevara. O mártir do cristianismo, afinal, teve suas mãos pregadas na cruz. E as do revolucionário argentino, cortadas depois de ser assassinado. Ambos eram os campeões do homem comum e foram esmagados. A solução, portanto, seria a luta das “coletividades”, das “massas” em conjunto, e não de “indivíduos”, mesmo que fossem bem intencionados e estivessem do lado dos oprimidos.
Um resultado similar no cinema da época foi, por exemplo, o apresentado emEasy Rider (1969), o clássico road movie dirigido por Dennis Hopper, quando, ao final, ambos os protagonistas, dois motoqueiros outsiders que desafiavam o sistema vigente, também são destruídos. Ou seja, não há espaço para aqueles que saem da linha, que não cumprem o papel que lhes foi determinado, que não seguem as regras impostas. Todos os que tentam, são eliminados.
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A referência mais explícita de Tarantino para seu filme, contudo, é Django,interpretado por Franco Nero, trabalho que inspirou dezenas de outras películas com personagens de mesmo nome (o melhor deles, provavelmente, Viva Django!, de Ferdinando Baldi, estrelado por Terence Hill). Tarantino tirou cenas inteiras da obra corbucciana, a música de Rocky Roberts e Luis Bacalov, o nome do protagonista e muito mais.
Famoso pela violência, o Django original tem como cenário uma cidade coberta de lama, decadente, com personagens desestimulados e sem perspectivas. Dos donos de bares e prostitutas até o ambiente e os diálogos, tudo é cinza. A realidade, estática: o contrário, a antítese da imagem clássica da “prosperidade”, “mobilidade social” e “oportunidade para todos” tão propaladas na “América”. Dali não há escapatória. A única saída é o “dinheiro”.
Por sua vez, Django (um soldado da União desmobilizado) puxa um caixão, sinal claro de tormento existencial, de quem carrega seu próprio destino nas costas. E de que dele não há como escapar. Ainda assim, de dentro do ataúde, o homem misterioso tira uma metralhadora, com a qual massacra dezenas de inimigos. Entre seus rivais, os asseclas do major Jackson, sugestivamente vestidos com capuzes que remetem à Ku Klux Klan (outra apropriação de Tarantino, que fez alusão ao grupo antes mesmo de ele existir, em mais uma total demonstração de anacronismo e desconhecimento histórico, ainda que não designasse a turba encapuzada como tal). No drama de 1966, o racismo é abordado de forma séria, ainda que com muita estilização visual e “coreografia” nas cenas. É novamente o retorno da temática comum nos filmes de Corbucci, a do indivíduo solitário e oprimido tentando lutar contra um inimigo poderoso. Em outras palavras, todo o sistema.
No longa de Tarantino (que se passa em 1858, antes da Guerra Civil, e que foi considerado por ele como um “southern”), por sua vez, Django é um escravo “libertado” por um “dentista” e caçador de recompensas alemão, o Dr. King Schultz (interpretado pelo ator Christoph Waltz). O pistoleiro (Jamie Foxx) consegue a liberdade através da ação de um europeu de caráter duvidoso, e não por sua própria luta. Não há o “sujeito coletivo” contra a instituição da escravidão, nem mesmo o papel protagônico dos negros contra seus opressores. Django, afinal, é um “individualista” (assim como o Dr. King; a escolha do nome, por sinal, uma sugestão infame, de mau gosto). Ele e o bounty hunter de Düsseldorf são, em certa medida, “parceiros”. Ou melhor, essencialmente, Django é um marionete nas mãos de Schultz, indivíduo salafrário que o leva para todos os lugares, que o ensina a atirar, que o apresenta às pessoas, que diz a ele o que fazer e como agir. Na prática, Django não é igual:certamente não tem o mesmo status do “colega”. É, para todos os efeitos, um “acessório conveniente” nas mãos de um homem branco, que controla, de fato, a situação. O fator da “recompensa” financeira é, as usual, acentuado aqui.
A mulher de Django, Broomhilda, que deve ser salva do jugo do fazendeiro Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), dono de escravos e proprietário de umaplantation, é inexistente em termos de personalidade. Subserviente, é destituída de qualquer papel ativo na trama. Ela não dá a tônica da história, servindo quase como um apêndice da mesma.
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Por outro lado, o destaque fica para Samuel L. Jackson, interpretando Stephen, um fiel escravo idoso, o típico house negro (aquele que morava com os patrões na “Casa Grande” e se identificava completamente com os senhores brancos) tão criticado por Malcolm X. Só que, neste caso, um “Uncle Tom” que age como um bosse anglo-saxão, que dá ordens e despreza seus irmãos cativos. Assim, dá-se a entender que a figura poderosa “por trás da escravidão”, dando suporte a ela e que queria sua continuidade, é, na verdade, um negro (e não o establishmentpolítico-econômico dominado pelos escravocratas sulistas)! Já o outro afrodescendente, Django, não luta contra o escravismo per se, mas pela “liberdade individual”, pelo liberalismo! As massas escravas, por sua vez, são coadjuvantes para Tarantino, passivas e incapazes de combater seus captores e modificar sua realidade. Essa, a mensagem de Django livre. Não custa recordar que os escravos negros nos Estados Unidos historicamente foram protagonistas de importantes rebeliões e lutas de libertação, como a de Gabriel Prosser, na Virginia, em 1800, a de Denmark Vesey, em Charleston, Carolina do Sul, em 1822 e a de Nat Turner, a “Southampton Insurrection”, em 1831 (o diretor, por sinal, passa ao largo de todas elas).
O tema central do filme não é, portanto, a “escravidão”, mas a vingança – assunto excessivamente explorado no cinema comercial de Hollywood (que também vende, como sempre, todo tipo de memorabilia, bonecos e brinquedos relacionados às suas produções, como no próprio caso desta película, que teve caixas de réplicas dos personagens retirados das lojas após furor da comunidade afroamericana, que se sentiu ofendida e desrespeitada pela insensibilidade dos grandes estúdios). Em última instância, Django é basicamente uma figura decartoon ou de história em quadrinhos, provido de uma personalidade unidimensional, sem camadas dramáticas ou qualquer profundidade emocional.
Mesmo os aspectos formais da produção podem ser criticados. Não só Tarantino utiliza canções de outras películas indiscriminadamente, mas aproveita de maneira pobre o gênio de Ennio Morricone, compositor da trilha original deste e de vários westerns emblemáticos. Morricone chegou a dizer que “é frustrante trabalhar com Tarantino”, já que “ele insere a música em seus filmes sem coerência”. Por isso, “não é possível fazer nada com alguém como ele”. A música de Morricone, de fato, é um elemento central e fundamental no andamento de outras obras cinematográficas, quase uma co-protagonista dos filmes. Em Django livre, contudo, é superficial, secundária e não recebe a devida importância. Aparentemente, a insatisfação do maestro e arranjador italiano foi tal, que ele chegou a declarar não ter mais qualquer intenção de trabalhar com o diretor nascido no Tennessee.
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Tarantino pode ser classificado como o típico cineasta “pós-moderno”. Não custa lembrar que, de acordo com o teórico literário e crítico cultural marxista Fredric Jameson, o “pós-moderno” pode ser caracterizado por uma falta de profundidade e superficialidade, uma cultura excessivamente fixada na “imagem”, o abandono do conceito de verdade, a perda da historicidade, a desintegração do sentido do tempo em uma série de presentes puros e não-relacionados, a prevalência do pastiche e a canibalização de estilos passados. Estes seriam alguns dos traços definidores deste estilo ascendente da cultura capitalista da atualidade. E também, a marca dos filmes de Tarantino ao longo dos anos.
Neste trabalho, só Django é supostamente “livre”, “unchained”. Apenas ele fica sem as correntes. Os outros negros como comunidade e entidade coletiva, não. Mas se Django perde suas correntes “físicas”, ele, mesmo sem se dar conta disso, continua preso pelos grilhões da opressão e da realidade sulista norte-americana, uma realidade de exploração, de trabalho abusivo e de racismo. E dela, por mais que se esforce, não consegue escapar. Ou seja, Django, afinal de contas, não é tão “livre” como pensa.
in Blog da Boitempo

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