segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

(do livro: O Amor Natural. autor: Carlos Drummond de Andrade. editora: Record.)
 
 
AMOR — POIS QUE É
PALAVRA ESSENCIAL
 
Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
 
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
 
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
 
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?
 
Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
 
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.
 
E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.
 
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.
 
Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
 
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
 
 
A MOÇA MOSTRAVA A COXA
 
                                          Visu, colloquio
                                          Contactu, basio
                                              Frui virgo dederat;
                                                  Sed aberat
                                          Linea posterior
                                               Et melior
                                                    Amori.
                                                               (Carmina Burana)
 
 
A moça mostrava a coxa,
a moça mostrava a nádega,
só não me mostrava aquilo
— concha, berilo, esmeralda —
que se entreabre, quatrifólio,
e encerra o gozo mais lauto,
aquela zona hiperbórea, 
misto de mel e de asfalto,
porta hermética nos gonzos
de zonzos sentidos presos,
ara sem sangue de ofícios,
a moça não me mostrava.
E torturando-me, e virgem
no desvairado recato
que sucedia de chofre
à visão dos seios claros,
sua pulcra rosa preta
como que se enovelava,
crespa, intata, inacessível,
abre-que-fecha-que-foge,
e a fêmea, rindo, negava
o que eu tanto lhe pedia,
o que devia ser dado
e mais que dado, comido.
Ai, que a moça me matava
tornando-me assim a vida
esperança consumida
no que, sombrio, faiscava.
Roçava-lhe a perna. Os dedos
descobriam-lhe segredos
lentos, curvos, animais,
porém o máximo arcano,
o todo esquivo, noturno,
a tríplice chave de urna,
essa a louca sonegava,
não me daria nem nada.
Antes nunca me acenasse.
Viver não tinha propósito,
andar perdera o sentido,
o tempo não desatava
nem vinha a morte render-me
ao luzir da estrela-d’alva,
que nessa hora já primeira,
violento, subia o enjôo
de fera presa no Zôo.
Como lhe sabia a pele,
em seu côncavo e convexo,
em seu poro, em seu dourado
pêlo de ventre! mas sexo 
era segredo de Estado.
Como a carne lhe sabia
a campo frio, orvalhado,
onde uma cobra desperta
vai traçando seu desenho
num frêmito, lado a lado!
Mas que perfume teria
a gruta invisa? que visgo,
que estreitura, que doçume,
que linha prístina, pura,
me chamava, me fugia?
Tudo a bela me ofertava,
e que eu beijasse ou mordesse,
fizesse sangue: fazia.
Mas seu púbis recusava.
Na noite acesa, no dia,
sua coxa se cerrava.
Na praia, na ventania,
quanto mais eu insistia,
sua coxa se apertava.
Na mais erma hospedaria
fechada por dentro a aldrava,
sua coxa se selava,
se encerrava, se salvava,
e quem disse que eu podia
fazer dela minha escrava?
De tanto esperar, porfia
sem vislumbre de vitória,
já seu corpo se delia,
já se empana sua glória,
já sou diverso daquele
que por dentro se rasgava,
e não sei agora ao certo
se minha sede mais brava
era nela que pousava.
Outras fontes, outras fomes,
outros flancos: vasto mundo,
e o esquecimento no fundo.
Talvez que a moça hoje em dia…
Talvez. O certo é que nunca.
E se tanto se furtara
com tais fugas e arabescos 
e tão surda teimosia,
por que hoje se abriria?
Por que viria ofertar-me
quando a noite já vai fria,
sua nívea rosa preta
nunca por mim visitada,
inacessível naveta?
Ou nem teria naveta…
 
 
EM TEU CRESPO JARDIM,
ANÊMONAS CASTANHAS
 
Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas
detêm a mão ansiosa: Devagar.
Cada pétala ou sépala seja lentamente
acariciada, céu; e a vista pouse,
beijo abstrato, antes do beijo ritual,
na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.
 
 
A BUNDA, QUE ENGRAÇADA
 
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
 
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora — murmura a bunda — esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
 
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
 
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita. 
 
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
 
A bunda é a bunda,
redunda.
 
 
O CHÃO É CAMA
 
O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.
 
E para repousar do amor, vamos à cama.
 
 
A LÍNGUA LAMBE
 
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
 
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
 
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
 
 
MIMOSA BOCA ERRANTE
 
Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delícias 
que fruto e boca se permitem, dádiva.
 
Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereces
a seu volume e jato apaixonados,
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?
 
Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a líquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual se fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.
 
Já sei a eternidade: é puro orgasmo.
 
 
BUNDAMEL BUNDALIS
BUNDACOR BUNDAMOR
 
Bundamel bundalis bundacor bundamor
bundalei bundalor bundanil bundapão
bunda de mil versões, pluribunda unibunda
                      bunda em flor, bunda em al
                      bunda lunar e sol
                      bundarrabil
 
Bunda maga e plural, bunda além do irreal
arquibunda selada em pauta de hermetismo
                        opalescente bun
                        incandescente bun
meigo favo escondido em tufos tenebrosos
a que não chega o enxofre da lascívia
e onde
a global palidez de zonas hiperbóreas
concentra a música incessante
do girabundo cósmico.
 
Bundaril bundilim bunda mais do que bunda
bunda mutante/renovante
que ao número acrescenta uma nova harmonia.
Vai seguindo e cantando e envolvendo de espasmo
o arco de triunfo, a ponte de suspiros
a torre de suicídio, a morte do Arpoador
                  bunditálix, bundífoda
bundamor bundamor bundamor bundamor.
 
 
QUANDO DESEJOS OUTROS É QUE FALAM
 
Quando desejos outros é que falam
e o rigor do apetite mais se aguça,
despetalam-se as pétalas do ânus
à lenta introdução do membro longo.
Ele avança, recua, e a via estreita
vai transformando em dúlcida paragem.
 
Mulher, dupla mulher, há no teu âmago
ocultas melodias ovidianas.
 
 
A CARNE É TRISTE DEPOIS DA FELAÇÃO
 
A carne é triste depois da felação.
Depois do sessenta-e-nove a carne é triste.
É areia, o prazer? Não há mais nada
após esse tremor? Só esperar
outra convulsão, outro prazer
tão fundo na aparência mas tão raso
na eletricidade do minuto?
Já se dilui o orgasmo na lembrança
e gosma
escorre lentamente de tua vida.
 
 
A OUTRA PORTA DO PRAZER
 
A outra porta do prazer,
porta a que se bate suavemente,
seu convite é um prazer ferido a fogo
e, com isso, muito mais prazer.
 
Amor não é completo se não sabe
coisas que só amor pode inventar.
Procura o estreito átrio do cubículo
aonde não chega a luz, e chega o ardor
de insofrida, mordente
fome de conhecimento pelo gozo.
 
 
ESTA FACA
 
“Esta faca
foi roubada no Savóia”
“Esta colher
foi roubada no Savóia”
“Este garfo…”
 
Nada foi roubado no Savóia.
Nem tua virgindade: restou quase perfeita
entre manchas de vinho (era vinho?) na toalha,
talvez no chão, talvez no teu vestido.
 
O reservado de paredes finas
forradas de ouvidos
e de línguas
era antes prisão que mal cabia
um desejo, dois corpos.
 
O amor falava baixo. Os gestos
falavam baixo. Falavam baixíssimo
os copos, os talheres. Tua pele
entre cristais luzia branca.
 
A penugem rala
na gruta rósea 
era quase silêncio.
Saíamos alucinados.
 
No Savóia nada foi roubado.
 
 
NO PEQUENO MUSEU SENTIMENTAL
 
No pequeno museu sentimental
os fios de cabelos religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.
 
Apalpo, acaricio a flora negra,
e negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.
 
Os movimentos vivos no pretérito
enroscavam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.
 
Vou beijando a memória desses beijos.
 
 
O QUE O BAIRRO PEIXOTO
 
O que o Bairro Peixoto
sabe de nós, e esqueceu!
 
Rua Anita Garibaldi
e Rua Siqueira Campos.
(Francisco Braga,
Décio Vilares
nos espiando,
fingem que não?)
 
O calçadão na penumbra
andança que vai e volta 
voltivai
a derivar para o túnel
em busca do hímen?
Volta:
banco de praça. Bambus.
Bambuzal de brisa em ais.
 
O bardo e a garota amavam-se
nas guerras da Dependência.
Seria brinco de amor
ou era somente brinco.
 
5 de Julho (fronteira
do reino escuro)
à face
de casas desprevinidas
jogávamos nos jardins
e nas caixas de correio
volumes indesculpáveis
de alheias dedicatórias
pedacinhos.
 
Se salta o cachorro? Credo.
Saltam quinhentos mastins.
Ganem a traça
de amor sem regulamento.
Prende mata esfola queima.
Viu? É dentro de mim, é dentro
do bardo que estão ganindo.
 
Bobeira de bobo besta.
Passa de nove mil horas,
urge voltar ao sacrário
de virgem.
Só mais um tiquinho. Não.
Sou eu, rei sábio, que ordeno.
Ri. Rimos de mim. Ficamos.
 
Dedos entrelaçados
e desejos geminados
no parque tão pueril.
Praça Edmundo, olá,
Bittencourt de berros brabos.
Se acaso nos visse aos beijos
babados, reincidentes,
protestava no jornal?
  
Menina mais sem juízo
rindo riso sem motivo
no jogo de diminutivos,
sabe o que estamos fazendo?
Amor.
Não é nada disso. Apenas
primícias cálidas. Calo-me.
 
Viajar nos seios. Embaixo.
Por trás.
Se vou mais longe, quem vai
me segurar?
Se fico por aqui mesmo,
quem vem
me resserenar?
 
Passo vinte anos depois
no mesmo Bairro Peixoto.
Ele que a tudo assistia,
nada lembra, no sol posto,
deste episódio canhoto.
 
 

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