Mas a arte não é feita para chocar?
Há um paradoxo embutido na gritaria moralista da chamada “nova direita” contra o homem nu no museu, e na devida reação a essa gritaria esboçada pela esquerda e agregados.
 Por Pedro Rocha de Oliveira.
Por Pedro Rocha de Oliveira.
Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Onde ninguém nos vê
– Belchior
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Onde ninguém nos vê
– Belchior
Há um paradoxo embutido na gritaria 
moralista da chamada “nova direita” contra o homem nu no museu, e na 
devida reação a essa gritaria esboçada pela esquerda e agregados. Esse 
paradoxo diz respeito ao sentido da obra de arte: em especial, à sua 
pretensão de proporcionar a surpresa e o choque.
Tecnicamente falando, esse é um traço da 
arte moderna; porém é possível mostrar que se trata de algo inerente à 
arte em geral. Afinal, o que caracteriza a experiência artística é um 
contraste entre as coisas e ideias apresentadas pela arte – seja cênica,
 plástica, musical, literária – e as texturas usuais da realidade. Mesmo
 quando falamos de uma obra “realista”, o que está em jogo é a percepção
 especial e maravilhosa que o artista conseguiu transformar em objeto 
estético: se não houver maravilhosidade, então a obra fica inserida no 
contínuo do cotidiano, não contrasta com ele em nada, e é indistinguível
 de uma coisa qualquer.
Em grande parte da história da arte – ou 
pelo menos daquilo que usualmente compreendemos como arte pré-moderna – 
essa maravilhosidade, esse estranhamento, aparecia principalmente sob a 
forma da beleza: o corpo pintado ou esculpido era mais belo que os 
corpos usuais, ou, através do gênio do artista, evocava o que havia de 
mais belo nos corpos reais. Mas a arte também tinha uma função 
catártica, segundo a qual a história contada envolvia as dores, 
aspirações e enlevos de pessoas mais ou menos comuns, apresentados de 
tal forma a permitir ao público uma experiência particularmente nítida e
 intensa daquilo que lhe constituía o resto do tempo, quando estava 
vivendo ordinariamente, sem experiência estética. Contudo, mesmo nesse 
caso, em que não necessariamente se tratava de mostrar a beleza, era 
algo da mesma ordem – a superabundância de sentido – que marcava a arte.
Com a arte moderna, a produção estética 
do maravilhoso e do inusual se desvia dessa centralidade da beleza e do 
sentido. É difícil e em certa medida errôneo generalizar o movimento 
moderno; em termos amplos, contudo, podemos dizer que nele saem da ordem
 do dia a realização das ambições pessoais, o bom gosto da classe média,
 o aplacamento sensorial, e, em seu lugar, entra uma atenção ao 
desencaixe, à dissonância, ao inadequado. Fazer arte passa a dizer 
respeito não mais à produção de experiências melhores do que a realidade
 cotidiana, em contraste com as quais a realidade cotidiana podia ser 
melhor entendida, mas à produção de algo que chamasse atenção para a 
maneira como a realidade estava em si mesma caindo aos pedaços. Essa 
compreensão moderna de arte é um fenômeno com data de nascimento mais ou
 menos precisa: das últimas décadas do século XIX às primeiras décadas 
do século XX, época em que o mundo da classe média tradicional – os 
principais consumidores de arte – está desmoronando. O efeito de choque 
da obra de arte é, então, destilado por gerações de artistas agudamente 
sensíveis aos efeitos culturais do colapso da fase livre-concorrencial 
do capitalismo.
Um exemplo eloquente disso é o emprego da
 colagem pelo surrealismo, no início do século XX. Tratou-se de uma 
reação à fotografia, que inicialmente aparece como capaz de – através de
 avanços técnicos então recentes – representar a realidade com 
fidelidade praticamente total. Recortando as imagens fotografadas, 
embaralhando as figuras representadas, e juntando-as em combinações 
bizarras, embaraçosas, insólitas – retirando-as do contexto em que 
apareciam na realidade cotidiana, portanto – o discurso da colagem 
surrealista era mais ou menos de que, se as coisas no início do século 
pareciam estar todas em seu lugar, na verdade não estavam. Através de 
corte e colagem, enfiava-se um acrobata curvado sob o nariz de um senhor
 respeitável, como se fosse um bigode, adicionando ainda uma pizza 
gigantesca às suas mãos, e colocava-se tudo pairando sobre um panorama 
de uma grande cidade, no meio de um emaranhado de outras imagens 
igualmente desconjuntadas e rejuntadas. Então, chamava-se aquilo de arte
 – ou seja, algo comparável ao teto da Capela Sistina – e, de fato, 
produzia-se o furdunço visual com maestria, equilíbrio, contraste, 
humor. A mensagem era: quando você olha para o mundo, e vê tudo 
funcionando, lembre-se de que as coisas continuariam funcionando ainda 
que estivessem em total desordem; de fato, essa ordem à qual você está 
acostumado está prestes a ser destruída; e talvez o pior seja que, 
apesar de toda a violência, tudo continuará sendo o que é. Mensagem 
fatídica às vésperas da Primeira Grande Guerra…
A ousadia visual da colagem foi alvo de 
repugnância, crítica, narizes empinados, receptividade vanguardista e 
discussão teórica. Contudo, para entender completamente o que os 
surrealistas queriam dizer, é preciso lembrar-se de que seu programa 
estético – na Espanha, por exemplo – não incluía apenas controversos 
deleites para os olhos, mas também passeios noturnos de carro com a 
finalidade de encontrar e espancar padres e policiais.* Eram, afinal, as
 vésperas do desencadeamento do assassino regime franquista, e não dava 
para ficar apenas fazendo as pessoas “verem o mundo de outra forma”. De 
fato, vários dos surrealistas tinham filiação política com o comunismo e
 o anarquismo.
É claro que, tanto no que diz respeito ao
 fator de choque estético quanto ao contexto político, muita coisa mudou
 desde a modernidade artística até hoje. Em particular, um discurso 
amplamente aceito diz que existe um rompimento entre a arte moderna e a 
estética da performance na contemporaneidade: em especial, a performance
 contemporânea trabalharia com a continuidade entre o cotidiano e a 
arte. É assim que artistas se sentam para fumar, defecam, depilam-se, 
dormem, fecham-se em caixas, despem-se, etc., em praça pública ou num 
canto do museu. Para efeitos do meu argumento, contudo, seria bom que o 
leitor benevolente prestasse atenção na continuidade da pretensão 
estética na arte contemporânea e na moderna. Ainda que – como se diz – o
 “questionamento” entre os limites da arte e da vida esteja posto na 
performance, também está posto o apelo à experiência especial, inusual, 
que, se não encanta, “faz com que você pare e reflita” ou “vivencie”.

No fim das contas, o que está em jogo é 
algo muito simples: na experiência artística tem que acontecer algo 
especial; se não, para quê fazer a arte? Isso se aplica ao caso do cara 
que fica nu no museu, também. A gente não fica nu no museu usualmente 
(não obstante a frequência com que a nudez é tematizada pela performance
 contemporânea). Aí, você está no MAM e, de repente, pimba: um cara 
pelado deitado no chão. Conforme for, você pode se deixar levar pela 
experiência ligeiramente inusitada e possivelmente desconfortável; pode 
se abrigar num sorriso condescendente, assistir de braços cruzados e a 
uma distância segura; pode realmente entrar no jogo e resolver interagir
 com o sujeito. De todo modo, a possibilidade de que alguém se sinta 
profundamente ofendido pela performance não pode ser descartada: afinal,
 toda a graça é justamente que o sujeito está nu, e as pessoas não ficam
 nuas em público, e na frente de desconhecidos, porque possuem inibições
 de ordem moral, sexual, etc. Se, por isso, tais inibições são a 
condição para a performance ser de interesse, a possibilidade da reação 
indignada está posta desde sempre.
Esse paradoxo tem implicações políticas, 
também. Por um lado, é indiscutível o caráter autoritário da intromissão
 do Estado em assuntos de teor moral e cultural; por outro lado, se não 
houvesse forças sociais propensas a objetar com bases morais, e capazes 
de transformar sua objeção em prática, qual seria o barato da 
performance? Nenhum. De fato, quando se pensa nisso, o que parece pedir 
explicação não é o porquê de existir uma reação moralista – que, afinal,
 tem que ser provocada, ou a arte perde a graça – mas sim o porquê de 
haver gente que não se indigna, não manifesta repugnância, etc.
É claro que aqueles que defendem a 
liberdade de manifestação no museu não estão defendendo seu direito de 
ir ao museu para se sentirem indignados e ofendidos, mas para se exporem
 a experiências especiais. Ao mesmo tempo, a tolerância geral ao cara 
pelado deitado no chão significaria que o caráter especial da 
experiência da performance em pauta já desapareceu. Se ninguém sai de 
sua zona de conforto psíquica, estética e moral diante da performance, 
então a performance, na verdade, não está acontecendo: nada está 
acontecendo. Se a classe média culta e progressista leva a performance 
na boa – se existe uma tolerância à experiência que a performance quer 
produzir – então é porque ficar pelado em público já não é o que era 
antes: tornou-se algo pouco especial.
O paradoxo aí é que um público só 
considera de bom gosto deixar-se “desafiar” pela arte quando esse 
desafio já perdeu a maior parte de seu efeito de choque. Como não faltou
 quem lembrasse na polêmica que se seguiu à censura da performance em 
pauta, qual é o grande problema da nudez, afinal, se dá pra ver bunda e 
peito em qualquer novela da Globo? O negócio é que essa pergunta 
retórica também coloca em dúvida a relevância da performance. Se a nudez
 é tematizada o tempo todo – de fato, está no centro do bombardeio de 
imagens que é central à produção contemporânea de mercadorias, insinuada
 constantemente em propagandas de modelador capilar, sabonete, roupa, 
cerveja, etc. – então ficar pelado na frente dos outros está de boa, e 
fazê-lo no museu deixa de ser especial. Exceto, é claro, para aqueles que também reclamam da nudez na novela das dez,
 em geral os elementos tidos como mais sexualmente conservadores na 
sociedade – os quais, contudo, não vão ao museu expor-se de bom grado a 
contatos imediatos de segundo grau com os aparelhos reprodutores dos 
outros.

Assim, quem vai no museu ver o cara 
pelado é porque está vacinado contra a visão de gente pelada. E quem não
 está vacinado não vai ver o cara pelado – como, aliás, também não 
faltou quem observasse, afirmando jocosamente que as estatísticas de 
frequência ao MAM ficariam inalteradas se os elementos conservadores 
resolvessem amanhã promover um boicote ao museu.
Essa piada tem um caráter de classe que 
eu gostaria de examinar em uma outra oportunidade. Por ora, vale a pena 
prestar atenção na questão que acabou ficando no centro do debate sobre a
 performance: o fato de que crianças que visitavam o museu interagiram 
com o cara pelado. É nisso aí que culmina a repugnância daqueles que 
atacaram a performance com base moralista. E é nesse ponto, também, que a
 tentativa de defesa da performance encontra um limite bastante difícil 
de ser transposto por qualquer público. É que, no coração da tolerância à
 nudez no local público, está um gesto estético e psíquico que 
despotencializa a nudez, eximindo-a de seu caráter sexual. Nessa versão 
da história, não tem problema a criança tocar o cara pelado, porque não 
haveria nada remotamente sexual acontecendo aí, nem de um lado, nem de 
outro. Mas então a situação é tal que o público culto de classe média 
pode ir ver um cara pelado se não quiser comê-lo; mas, se o negócio é 
sentir desejo, é preciso ir a locais escusos, frequentar cines de má 
fama, ou assistir pornografia na secreta intimidade do seu lar. E 
vice-versa, porque o público não está – e não estou querendo insinuar 
que deveria ser diferente – preparado para ser encarado como objeto 
sexual pelo sujeito pelado. Suspeito que se, no momento em que a criança
 tocasse o pé do cara, ele tivesse uma gigantesca ereção, a simpatia das
 pessoas cultas pela performance nudista desapareceria bastante rápido.
É assim que, no que tange à defesa da 
performance, sobretudo em face à presença de crianças, os argumentos 
precisam girar em torno do teor completamente dessexualizado do que 
aconteceu. Nesse ponto, os defensores da performance acabam concordando 
com seus detratores numa questão de fundo: é ruim que o elemento erótico
 do corpo esteja sendo tematizado ali. Aqui, grosso modo, os dois lados 
concordam em ser conservadores, e até retrógrados: afinal, foi por volta
 do início do século XX – na mesma época em que o surrealismo estava 
nascendo, aliás – que Sigmund Freud publicou seus primeiros trabalhos 
sobre o que ele chamou de “sexualidade infantil”, a qual não tem nada a 
ver com o coito – é bom deixar isso bem claro – mas tem muito a ver com 
formas complexas, ambivalentes, nebulosas e turbulentas de experimentar o
 prazer em seu próprio corpo e com os corpos dos outros. Mas enquanto o 
discurso dos tolerantes e dos intolerantes orbita a “inocência das 
nossas crianças”, seria interessante cronometrar quanto duraria a 
carreira de um artista performático que tentasse “questionar” esse lance
 num museu.
* Num “estilo” semelhante, o performer Piotr
 Pavlenski, no outro dia, colocou fogo numa agência do Banque de France 
em Paris. Agradeço a Clarice Chacon por chamar minha atenção para o 
ocorrido.
***
Pedro Rocha de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Organizador (em conjunto com Felipe Brito) e um dos co-autores do livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Felipe Brito) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
 
 

 
