Estação Perdido – O estranho mundo de Miéville!
23.08.2016
Formiga Elétrica
Daniel Fontana
No campo da literatura de fantasia/ficção científica, a aclamação do
nome China Miéville pela crítica especializada pode dar a impressão de
que o inglês faz parte daquele famigerado ciclo do hype, mas uma rápida
pesquisa sobre o currículo deste escritor peculiar, ainda jovem,
demonstra que não é o caso. A quantidade de prêmios entre os mais
importantes do gênero, mais os elogios rasgados de outros autores
consagrados, merece atenção. Certamente, isso o destaca de alguns, cuja
credencial, alardeada com orgulho pela galera do Oba Oba, é escrever
livros como contratado de alguma franquia bilionária, ou ter os direitos
de uma de suas obras comprados por um grande estúdio ou canal.
Objetivamente, o que esse cara tem de especial? Só para começar, ele
tem um repertório literário vasto, não apenas em torno de ficção
científica e fantasia. Muitas vezes, conhecemos um autor mais novo do
gênero e não demora muito para percebermos em qual dos grandes nomes
clássicos ele se inspirou, mas Miéville é um caso bem diverso.
Encontramos influências de outros escritores em sua escrita, claro, mas
ele cria sua colcha de retalhos a partir de elementos inusitados, como o
realismo mágico latino-americano e o naturalismo, dando origem a um
novo tipo de literatura fantástica. Se em A Cidade & A Cidade encontramos ecos fortes de As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, no meio de um caldeirão eclético, em Estação Perdido (Perdido
Street Station) – lançado originalmente em 2000, chegando agora ao
Brasil pela Boitempo – a gama de influências e a imaginação do escritor
mostram um alcance bem maior.
Imagine algumas criaturas sencientes que parecem saídas de O Livro dos Seres Imaginários,
de Jorge Luis Borges. No meio delas, espécies tão assustadoras como uma
descrição de Borges reimaginada por Clive Barker. Misturados em uma
sociedade com humanos comuns, essa diversidade existe em um cenário
imundo e decadente, lembrando uma tradicional Inglaterra Vitoriana
Steampunk, com a magia (taumaturgia) coexistindo com a tecnologia
rudimentar em alguns pontos e extrapolada em outros, tudo descrito com a
propriedade meticulosa de um Jack London. Adicione também uma pitada da
escrita de William Burroughs. Você pode ter feito um esforço
considerável para pensar em algo com essa descrição, mas, ainda assim,
nem ter se aproximado do grande exercício de imaginação que é essa tour
de force do escritor prodígio.
Primeiro livro do autor ambientado no mundo de Bas-Lag, a história de Estação Perdido
se passa na metrópole de Nova Crobuzon, governada por um parlamento
corrupto e autoritário, que tem como ponto de intersecção a estação que
dá nome ao livro. Essa sociedade retrógrada não vê com bons olhos o
relacionamento interespécies, o que dificulta a vida do cientista humano
Isaac Dan der Grimnebulin, romanticamente envolvido em segredo com a
escultora Lin, uma khepri, cuja particularidade de suas fêmeas é ter um
besouro no lugar da cabeça. Enquanto ele é contratado para ajudar
Yagharek, um desesperado e melancólico garuda, espécie de homem-pássaro,
ela recebe uma proposta irrecusável para criar uma peça única. Ambos
veem suas respectivas oportunidades como grandes chances, mas a pesquisa
de Isaac terá um desdobramento inesperado e trágico que afetará a
cidade inteira e além.
Isso é muito pouco para descrever a torrente de personagens e seres
bizarros que desfilam por seiscentas e poucas páginas, enquanto o autor
vai descrevendo Nova Crobuzon com um detalhamento raro. O cuidado com o
qual ele nos apresenta um pouco deste mundo alternativo, mais o mapa da
cidade no início do livro, traz mais verossimilhança e faz o leitor
passear mentalmente por esse local pouco agradável, porém fascinante.
Esta não é uma história que nos poupa quando é preciso se esconder em um
esgoto ou em um prédio abandonado. Toda nojeira que esperaríamos
encontrar em uma situação como essa é relatada sem medo, tal como os
tormentos que nossos protagonistas, totalmente desprovidos de qualquer
heroísmo glamouroso, precisarão passar.
Falando no grupo principal, Isaac, Lin, Yagharek e Derkhan, uma amiga
do casal, é incrível como a descrição dos locais, das pessoas e dos
procedimentos não impediu Miéville de trabalhar incrivelmente a
profundidade deles. Os sentimentos são tão absolutamente críveis e
intensos, sobretudo no caso de Yagharek, que qualquer leitor vai sofrer e
torcer por eles, comemorando cada pequena vitória nesta jornada, às
vezes, sorrindo sem perceber durante a leitura. Além destes momentos
mais dramáticos, a aparição das tais criaturas medonhas carrega no
incômodo e nos faz sentir o asco, o medo e a tensão, completamente
justificados, que os personagens sentem nestes trechos. Mérito também da
tradução caprichada.
Apesar da relação forte entre o autor e o ativismo marxista, o mesmo
faz questão de rejeitar a associação de seu trabalho com alguma metáfora
mais direta da vida real, conforme entrevistas. A verdade é que Estação Perdido,
com seus políticos corruptos auxiliados por uma milícia violenta,
criticada por um jornal clandestino em um local onde várias pessoas
vivem em condições precárias, parece trilhar um caminho assumido de
crítica, onde seguimos o texto esperando que isso tome uma forma mais
clara, auto explicando-se. Felizmente, é apenas uma impressão inicial
que é esquecida enquanto a leitura avança. A complexidade desta trama é
bem maior do que aparenta no começo e desafia associações desta
natureza.
A única ressalva que se pode fazer sobre o conjunto é um detalhe que
pode até passar despercebido por muitos, o que a torna essa impressão
mais pessoal. A rede de relacionamentos entre os personagens tem algumas
coincidências convenientes demais para o andamento da história, dentro
de um imenso cenário geral. Exemplificando bem por cima para evitar
revelações, a operação por trás do caso – acidental – que muda a vida de
Isaac tem envolvimento de pessoas que ele já conhecia. Em alguns
momentos, o fluxo de causa e efeito também faz um pouco de força para
manter a ligação entre os protagonistas. Isso se torna compreensível
pelo tamanho da obra e o quanto de acréscimo seria preciso para
contornar isso de maneira a parecer mais casual. Não é um problema
grave, mas uma pequena gordura narrativa dentro de uma grande
realização.
Além da quebra das amarras do convencional que caracteriza o New Weird,
denominação do segmento da ficção científica que identifica a escrita
de Miéville, conferir a riqueza e a verossimilhança do mundo de Bas-Lag é
um tipo de experiência rara hoje em dia. Se isso não basta, a
construção psicológica dos personagens de Estação Perdido torna
tudo ainda mais especial, seja para iniciados ou não. Aliás, só para
atiçar um pouco mais a curiosidade, os fãs de William Gibson podem se
sentir mais recompensados durante a narrativa.
Enfim, como todo bom leitor é um pouco masoquista, por mais que esse
mundo ficcional não seja um lugar muito convidativo, é difícil conter a
vontade de visitar Bas-Lag novamente. Que venham os próximos – A Cicatriz e Conselho de Ferro,
já confirmados pela Boitempo – e que um talento como China Miéville se
torne cada vez mais conhecido. No meio do caminho, se inspirar alguns
novos escritores a procurar fontes de inspiração mais alternativas e
evitar o pastiche, é mais um motivo para agradecê-lo.
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