segunda-feira, 16 de abril de 2018

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Ideias para a luta na Cultura (I). História de uma devastação

O forte movimento de indignação de milhares de trabalhadores das profissões artísticas e da cultura ecoou nos ministérios, mas só uma política consequente porá fim à longa agonia da Cultura.
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Aspecto da manifestação de trabalhadores das profissões artísticas e da cultura no Rossio, em Lisboa, a 7 de Abril de 2018.
Aspecto da manifestação de trabalhadores das profissões artísticas e da cultura no Rossio, em Lisboa, a 7 de Abril de 2018.CréditosElsa / Manifesto em defesa da Cultura
Uma noite, em 2012, numa reunião pública do Manifesto em defesa da Cultura, um jovem pediu para falar. O debate era sobre as grandes questões da política cultural, nos tempos da intervenção da Troika em Portugal, e da necessidade de lhe fazer frente. O jovem queria tirar uma conclusão útil daquilo que lhe ia na cabeça. E perguntou:
«Tenho estado a ouvir-vos e preciso de saber o que fazer. Sou fotógrafo. Os meus pais emigram amanhã. Queria perguntar-vos: vale a pena ficar aqui?»
No final de 2012, o Teatro Fórum de Moura (TFM) era despejado da sua Sala da Salúquia, espaço em que tinha investido seis anos de trabalho árduo e recursos financeiros escassos. Com todo o material na rua, sem espaço próprio, acossado pelo empobrecimento daqueles que a ele se dedicavam, o TFM encerrou dois anos depois. A jovem companhia não tinha visto renovado o apoio público. Acabou assim a única companhia de teatro profissional do concelho de Moura.
Meses mais tarde, noutra cidade, Ana Oliveira, actriz, escreve uma carta a Cavaco Silva, abalando de comoção as redes sociais. Assim:
«Começo hoje o meu caminho de saída. E deixo para trás um país que premeia o trabalho com pedidos de sacrifícios, o esforço de uns com a opulência descarada da vida de outros, os sonhos com frustração e desespero. Deixo um país a lutar pelo futuro e levo comigo a mágoa de não ficar para a luta. Mas a minha vida já esperou de mais; o meu filho de dois anos já esperou demais, já deve demais. Viver neste país tem sido uma teimosia que, para mim, termina agora.»
No final de 2016, o Teatro da Cornucópia anunciava a sua morte. Não apenas por causa do financiamento — que sempre tinha tido — mas porque a política de apoio às artes impunha modelos de gestão incompatíveis com as necessidades da programação artística. Marcelo veio impante ao velório. O ministro da Cultura chegou esbaforido. Marcelo disse que o governo tinha de fazer alguma coisa. O governo não fez nada e Marcelo foi-se a medalhar futebolistas.
Este mês, com os resultados provisórios dos concursos quadrienais, ficámos a saber que, no Porto, o TEP, a Seiva Trupe, o Festival Internacional de Marionetes e o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica podem ser excluídos do financiamento. Em Coimbra, são eliminadas a Escola da Noite e O Teatrão. Cai o Teatro das Beiras, na Covilhã. Cai o Teatro Experimental de Cascais. O Festival de Teatro de Almada está em risco. O TAS e o Teatro Estúdio Fontenova saem da lista de estruturas apoiadas em Setúbal. Em Évora, fica sem apoio público o lendário CENDREV. Aliás, Évora e Coimbra ficam sem apoios. E estamos só a falar de teatro.
Na área dos cruzamentos disciplinares, estruturas com trabalho consolidado, como o CEM, o Circolando, o Chapitô, o festival Circular, a associação Saco Azul, a Cão Danado, a Real Pelágio e o Centro  para os Assuntos da Arte e da Arquitectura também estão entre as entidades que ficam sem apoio.
Na música, deixam de ter apoio a Banda Nova Sinfónica Portuguesa, a Orquestra de Câmara Portuguesa, a Fundação Cupertino de Miranda e o Sond'Art Electric Ensemble. Finalmente, nas artes visuais, podem deixar de contar com apoio público os Encontros de Fotografia de Coimbra.
Estes são apenas alguns exemplos que ilustram o estado a que isto chegou. O governo anuncia «repescagens» e «reforços», mas nada disso tem, no quadro do concurso, efeito jurídico. O mal está feito e a sua história é antiga.

A longa agonia da cultura

O movimento que agora se apresenta como uma erupção repentina e surpreendente de indignação, pela eliminação - ainda que provisória - de relevantes estruturas artísticas do mapa dos apoios públicos ás artes, tem na verdade raízes muito fundas numa história de quatro décadas. Esse movimento, de insatisfação, numa primeira fase, e de fúria, na fase que agora atravessamos, cresceu com a aceleração, sobretudo desde 2000, da continuada queda dos valores do Orçamento do Estado para a Cultura, acompanhando uma linha de desresponsabilização do Estado e de profunda pressão no sentido da mercantilização e privatização da política cultural e da Cultura.
Depois, a partir de 2008, por força dos efeitos da crise capitalista mundial no nosso país, as pessoas e as organizações da actividade cultural começaram a sentir o mesmo empobrecimento geral da população, mas com efeitos devastadores numa área particularmente débil e secularmente maltratada em Portugal. Baixos e incertos rendimentos, dívidas, incumprimento de pagamentos vários, aos bancos, à segurança social, ao fisco, a fornecedores, e penhoras foram o primeiro terramoto que determinou a destruição de estruturas e a redução de pessoas envolvidas nesta actividade, pela imensa precariedade dos vínculos, por desemprego, obrigando muita gente a emigrar. Os jovens deixam de ter lugar no destroçado tecido da actividade artística e cultural.
É um movimento de destruição invisível. Abate-se num primeiro tempo sobre estruturas pequenas e pessoas, ao nível local, e é tomado como azar dos tempos, sob a indiferença da comunicação social dominante.
Em 2010, o governo do PS inicia, com os PEC, os primeiros cortes de quase 40% nos apoios às artes já contratados e cancela o concurso para apoios pontuais. As restrições orçamentais também se reflectem nas autarquias locais, com sucessivas transferências de competências nos serviços públicos da educação, da saúde, dos transportes e outros, sem o correspondente reforço financeiro.
Em 2011, a Troika entra em Portugal a convite de PS, PSD e CDS. Segue-se um feroz ataque aos serviços públicos, aos rendimentos das pessoas e aos apoios públicos à cultura. A linha descendente desses apoios atinge um patamar em que já nada se salva, muito menos se constrói, mas em que tudo agoniza até à morte esperada.
Em 2015, a resistência popular, integrada por cada vez mais gentes e forças da Cultura, derruba finalmente o governo da Troika, sem que o PS se dê conta disso. A correlação de forças permite que o PS forme governo. Acompanha-o a pompa de um célebre casamento de António Costa com Joana Vasconcelos, no Mercado da Ribeira, que ofusca algumas almas. Mas para espanto de alguns o PS prosseguirá as linhas de força da política, antes chamada «de austeridade», agora designada «de dificuldade». O governo rejeita as propostas dos partidos à esquerda, nomeadamente a proposta do PCP de reforço de 25 milhões de euros nos apoios às artes. O PS recusa-se a recuperar e actualizar os valores de investimento de 2009, como prometia o seu programa eleitoral.
Favorecendo o grande poder económico, recusando renegociar a dívida externa, submetendo-se às linhas mais agressivas da política orçamental da União Europeia, com a obsessão do défice, salvando, na banca, prejuízos privados, entregando património, recursos e serviços públicos à exploração privada – de que são exemplo vergonhoso os contratos com as PPP –, o governo do PS retira recursos vultuosos do orçamento que podia investir em serviços públicos. Não atende ao estado calamitoso do tecido e da actividade cultural e não responde ao estado de emergência. Em vez de mudar de política e de encontrar os meios orgânicos, logísticos e financeiros para fazer face a essa emergência, concentra-se em resolver a quadratura do círculo: conceber modalidades de apoio às artes que distribuam com justiça e transparência um financiamento que não existe. Como não há dinheiro, não há justiça nem coerência. Fica a transparência do vazio e um monstro burocrático.
O modelo produziu os resultados conhecidos. Mas o que que apontamos ao modelo não são erros ou incompetência. A extrema burocratização das candidaturas não é uma falha. Os absurdos requisitos e critérios de cálculo não são uma falha. As avaliações e pareceres dos júris não são uma falha. Os atrasos na publicação dos resultados e nos pagamentos não são uma falha. São parte do roteiro: empurrar a actividade cultural para o mercado; desresponsabilizar o Estado do apoio às artes e à cultura em geral; condenar a «subsidio-dependência dos artistas»; fazer falhar os mecanismos do Estado, que deveriam constituir um serviço público de cultura; terminar com a noção democrática de direito à cultura, como coisa de todos os cidadãos, em todo o território nacional – os eixos da política de direita para o sistema público de apoio às artes.
Ter consciência desta duração é ter consciência de que os problemas na Cultura e nas Artes não resultam de acidentes de percurso, de incompetência, ou de personalidades – umas, bonecos de enfeitar, outras, tecnocratas de mérito. O processo de devastação do apoio público à Cultura e às Artes é um processo continuado, consistente e resulta de opções ideológicas e políticas.

Este é o primeiro de três artigos de opinião a serem publicados quinzenalmente. O próximo artigo será «1% por todos, todos por 1%»

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